quarta-feira, 1 de setembro de 2010

cap. 6 [cont] de Náuseas de Estudante


(do diário de HD)


março/2001


Andando na Praça, sábado à tarde, observo os garotos de skate. Indiferentes ao medo, na ousadia das manobras arriscadas, nada de hesitação, só aquela vontade de provar para si mesmos (e para os outros) que pode fazer: tornar-se um-com-o-risco. Salto, giro duplo. O skate é um membro de seus corpos magros e acrobáticos, artistas do circo das ruas.

Contagiado pela coragem e ousadia deles, levantei-me e desci a avenida Brasil. Sol e sombra se alternam, céu nublado. E a boca seca. Casas fechadas, janelas cerradas. Cidadãos se abrigam, temerosos da insegurança cotidiana. Atrás de alarmes, correntes, cães bravos, cercas eletrificadas, portões eletrônicos. Condomínios com seguranças particulares, cabines e câmeras. Circuito interno de TV, o velho olho-mágico, a tranca dupla, tripla, acionada à cartão-magnético, e de novo o cão bravo.

Os muros e as grades nos protegem de nosso próprio mal.” (Engenheiros)

os assassinos estão livres, nós não estamos.” (Legião)

O medo no olhar, na voz hesitante (apreensiva!) ao interfone, “Quem é?”, “Sou eu, querida. Apenas eu.” Mas o que sou eu? Devo me apresentar, “Aqui o meu cartão, madame” Pois não. Meu olhar lhe agrada? Meu sorriso lhe enternece?

Somente os skatistas em ousadia. No mais, medo e ruas vazias. Ou madames levando os poodles para um saudável passeio. Mas deixando as jóias no cofre, claro. Este senhor, na parada do ônibus, leva a mão a testa, úmida em suor nervoso, num alívio quando não o abordo, Quem ele pensa que eu sou? Mas não importa, há apenas o medo de viver. Eu invejo a ousadia dos skatistas. Em manobras impossíveis, ainda que o resultado seja aquela horrenda casca de gesso, coberta por centenas de assinaturas. Em constante risco, sem hesitar, nem que isso custe aquela cicatriz profunda e explícita!

Cheguei à Lagoinha num entardecer cinzento, de nuvens baixas que são até opressivas. Uma hesitante promessa de chuva.

A polícia só funciona quando assassinam delegado...”

A voz se eleva diante de uma banca de revistas e jornais, debaixo da passarela. Um senhor, no respeito que exige seus cabelos brancos, é ouvido por um interlocutor que poderia ser seu neto. O jovem está mais preocupado é com as modelos das capas obscenas.

Sigo, ferido pela arquitetura em ruínas da Lagoinha, bairro que Naína dizia ser o “mais feio que ela já conheceu”. Tudo aí abandonado, essas fachadas com adornos que mais parecem arabescos (alguma tradição ibérica?), que, imaginemos, lá anos 20, 30, eram a jóia da capital.

Na avenida Antônio Carlos, avenida estreita para tanto tráfego, os ônibus passam com os torcedores ensandecidos que descem da farra do Mineirão, em pleno carnaval sobre rodas!, num entardecer úmido de sábado, beijando a camisa com o símbolo do time do coração, seja alvinegra ou azul celeste, ou mesmo, vermelha e branca, o time do coração, nem sempre o campeão, todos adeptos do pão e circo do futebol.

E então percebo um vulto que solicita um trocado, a incomodar-me, com sua roupa suja, sua fala sem nexo, seus fonemas embolados. Estendo negativas, mantenho a distância, minha frieza o intimida, e ele desaparece nas ruas estreitas.

Inútil esperar policiamento.

Lembro de outras tardes de sábado, quando voltava do Campus e ainda saía na noite, ao lado de Darío, ou de Naína, deixando o cansaço na brisa noturna. E vou pisando em poças d’água e alma. A chuva vai se animando. Mas tudo bem, um bom banho quente vai aliviar o cansaço do corpo (e quiçá da alma).

Estava aqui a escrever, quando apareceu o Flávio. Ele e o tabuleiro de xadrez. Insiste em ensinar-me o mais cerebral dos jogos. Anoto que comecei com um peão e depois o peão da rainha. Ele move o peão do cavalo do rei e depois o bispo do rei. Flávio está agitado. Trabalho, faculdade, família. O namoro com Stella. Que ela é um doce de garota, mas às vezes falta empolgação. Mas amor é assim, uma chama que vai se apagando. Para ele tudo é um peso, tudo pesa e o esmaga. Enquanto eu vivo na leveza, a insustentável. Ele sob o peso (as muitas toneladas) da vida social, das convenções. Eu às voltas com minha liberdade, áspera, de tempo livre, vivendo de Bolsa estudantil, de aulas particulares. O Flávio ainda sufocado na prisão acolchoada.

O que aflige o Flávio é o seguinte: “o saber e não poder mudar”, ou “saber não causa mudança, a menos que todos saibam”, ou ainda, “Ou a mudança é social, ou não há mudanças; se você propõe mudança e não há alcance social, você está sozinho. É declarado subversivo, e será isolado, quando não eliminado.” E o Flávio move o peão do bispo da rainha DELE.

Ora”, eu disse, “o cara precisa saber a quem tal conjectura de ‘desordem e regresso’ é lucrativa. Mas quando descobre, logo se alia aos ‘manda-chuvas’, pois é assim que se recheia o cofre. Afinal, você vai remar contra a maré? Você, pobre pulga, vai desafiar o elefante?”, e ele, “Pois é, o cara sozinho nada significa. Fica louco, ou dizem que ele é louco. Ou mete uma bala na cabeça. Seria mais individualismo, e o que importa é a mobilização social.”


Eu, meio que recriminando, “E você que continua a andar com esse Augusto! O indivíduo perfeito, enquanto consumista! Individualismo, quando? Só vejo a ‘massa de manobra’. Antes indivíduos íntegros, plenos de si mesmos, e não seres fragmentados, incompletos, que precisam consumir para se satisfazer. E jamais serão satisfeitos! E também o problema não é o materialismo, como aí pregam os religiosos...”, e eu movia o cavalo do rei.

Ele, “Sei o que você vai dizer. Que espiritualismo é regresso, que é esperar o mundo-do-além, num resignar-se agora. E o materialismo? O que o Everton dizia? O materialismo é o trabalho, a transformação, o progresso. Que nunca se produziu tanto, mas também nunca se concentrou tanta riqueza para alguns.”

Eu, de olho no bispo da rainha DELE, “O bolo cresce, mas na hora de dividir, alguém carrega cobertura e recheio.

Ele, prevendo minha jogada, “E aqueles sujeitos, lá na faculdade, todos cheios de si, prontos para apontar o dedo, filhos da burguesia, ou sociólogos de classe média arruinada, enquanto sociologia burguesa legitima a desigualdade.”

Eu, “Você criticaria a estrutura que favorece a sua classe? Se o jogo favorece os seus interesses, então mascaram a falta de oportunidades. Imagine os tantos Einsteins que podem surgir caso houvessem bons livros, cursos e professores! O garoto nasce com um cérebro calibrado, mas jamais vai abrir um livro de álgebra! Entende? Os homens são desiguais pois desiguais são as oportunidades e suas posições na sociedade, esse imenso tabuleiro de xadrez!”

Ele, de olho na rainha, “Mas as pessoas não são iguais. Algumas são mais simpáticas, até carismáticas! Gênios! Outras são apagadas, ‘sem sal’. Comuns. Uns mais líderes e ambiciosos que outros. As pessoas não são iguais. Os serviços prestados também não. Digamos que os meus restaurantes têm um melhor atendimento ou um melhor tempero ou um menu mais exótico... ou uma atendente mais jeitosa.... Isso fará com que o restaurante lucre, afinal será mais bem freqüentado do que outros. Eu ficarei rico e os concorrentes em apuros. O que o Estado social poderá fazer para impedir a desigualdade?”, e moveu a rainha, “Pois nesse Estado, de ideal marxista, não há lugar para os ‘golpes de mestre’, onde não encontraríamos um Henri Ford, por exemplo. Um sujeito para pensar além do seu tempo e criar algo novo, um empreendedor! Pois se o Estado fornece tudo e acomoda todos...”

Eu, preocupado com a rainha DELE, “Olhe, Flávio, muito cerebral esse seu argumento. Coisa fina. Mas você está muito preocupado com o Estado! Como se o Estado fosse o ‘grande Pai’, sei lá. O Estado só coordenaria, apaziguaria... Nada daquele Estado totalitário. Agora, se o tempero do seu restaurante é melhor do que o da esquina, então merece ser mais bem freqüentado. O Estado interviria se você quisesse comprar o restaurante da esquina e começasse a monopolizar o mercado de refeições, ao formar um cartel, algo assim...”

E eu percebo que há um bispo ameaçador. E que tenho o rei em maus lençóis. É sempre assim! Eu m empolgo com a discussão, e descuido da defesa, “não se deixe corromper por quem ‘puxa os cordões’”. Ele prepara o grand finale, “E fique longe da banda podre.” Preciso aceitar o xeque-mate.

Abril/2001


Medidas de segurança em Quebec. Cúpula das Américas. Chefes de Estado, e diplomatas, e funcionários, e delegados, e jornalistas, e muitas outras sempre ocupadas autoridades, entre miríades de documentos e propostas aguardando assinaturas.

Os manifestantes parecem que saíram daqueles filmes dos aos 70, naquela paranóia do Vietnam, com sua juventude de brados heróicos, em roupas coloridas, cabelos revoltos, em pregação por valores ditos alternativos, em vontade de deitar no verdejante relvado da natureza e declarar o entranhado ódio a todas as máquinas.

E enquanto estimam a multidão (ou multidões!) de quinze mil manifestantes, as autoridades movem as peças do tabuleiro e deslocam a infantaria de oito mil policiais para a área de segurança.

A-20. Lojistas protegem as vitrinas com medo de quebra-quebra. Quebec se transforma numa cidade sitiada. Governantes prometem ouvir representantes de ONGs, numa esperada Cúpula do Povo. Coitado do povo, não podemos deixá-lo sempre excluído! Mas os ativistas não querem migalhas e denunciam que o tal tratado de livre comércio visa a estabilidade apenas das empresas, que seriam garantidas contra ações sociais e medidas governamentais de seguridade social. Ou seja, nada pode limitar os negócios, nada pode barrar os lucros!

Mais multidões com macacões de operário, óculos de natação, capacetes de pedreiro, máscaras contra gás e botas militares.

Mas para quê, meus caros, se a própria cúpula reconhece não ser relevante, para quê? Gostam tanto assim de balas de borracha? Ou das lágrimas lacrimogêneas? Ou das carícias das forças policiais?





A camisa de flanela esvoaçando ao vento, HD foi descendo para a parada do ônibus, que logo apareceu (e sorte maior!) vazio.

Parando junto a roleta, para pinçar as notas da carteira, ele viu à sua direita, uma garota com cabelo pintado. Face pálida e vestida de preto. Ao seu lado, uma amiga. Inusitadas as Maria-chiquinhas no cabelo curto.

Equilibrou-se, atento ao corredor a sua frente. Sentou-se lá no fundo. O ônibus vazio. Nada demais. Devia ser umas onze horas da matina. E ele devia estar na faculdade. Mas sem comentários.

A cobradora gracejava com uma mocinha sentada junto a roleta. Um senhor abraçava uma mochila e uma valise. Uma parada, brusca frenagem. Uma bela mulher que entrava. Óculos escuros, vestido até os joelhos, blusa branca, realçando as curvas dos seios. Morena, cabelos pretos lisos.

Aproximava-se, olhar altivo, a escolher um lugar, e HD torcendo mentalmente para que ela se sentasse ali ao alcance da mão. Nada. Sentou-se antes do homem com as malas.

No segundo ponto da ladeira, entra uma mulher com um menino, ágil em passar sob a roleta. A mulher já gastara seu dote de beleza e não fulgurava mais em encantos. ‘Depois que consegue encantar o homem e agarrá-lo, e assim procriar, a mulher começa a perder seus atrativos. Deixa-se relapsa, descuidada, e engorda, ou abusa na maquilagem.’

Antes da avenida, desce uma mocinha acanhada, agarrada a sua bolsinha amarela, a qual HD nem percebera. Ninfas anônimas no transporte coletivo.

Seguindo para o complexo dos viadutos, o lotação parou, a esperar um caminhão que despejava areia, diante de uma construção, até muito adiantada, com vultos pendurados em andaimes assobiando para as passageiras. Logo, o ônibus seguiu viagem, em espasmos.

Com a rodoviária à esquerda, o homem com as bagagens preparava-se para descer. Alçou a mochila aos ombros e agarrou a valise, a seguir meio trôpego. Desceu ainda meio às tontas.

Aí HD viu a cabeleira roxo-laranjada da garota lá adiante, que o homem eclipsara. ‘Ah que belo arco-íris, minha querida!

E a cabeleira radiosa tal um sol virava-se, ondulava, voltava-se para o colega ao lado. Trocavam risinhos. Cabelos soturnos-iridescentes. Roxos, mas luminosos, fios que irradiavam, brilhavam, num arrepio de cores.

Atraído, ele pensava em mil abordagens, ditos picantes, frases dúbias, mas nada fazia. Aí quem ia descer era a morena de óculos escuros. Pernas que mereciam estudo, uma monografia inteira, um tractatus philosophicus! E os pés, então! Em sapatilhas negras, em... Não, não! E as unhas?! Um esmalte levemente róseo, mas num tom de pele, um polimento...

HD viajava na beleza daquele corpo, mas não esquecia a fragilidade que convivia com aquela beleza. Sim, era frágil a mulher! Bela, belíssima. Mas uma fragilidade no vestido esvoaçante, nas pernas bem torneadas, nos braços que se agarravam as argolas pendentes do teto. Tudo fragilidade.

Ela desceu e ele ainda a seguiu com o olhar, inclinado para a janela (ela quase tropeçou na calçada...) E depois ficou suspirando à falta dela. Restou um perfume.

Amores anônimos. Algum dia será que vejo a bela morena de novo? Mas as duas pequenas feiticeiras continuavam a bordo. Lá fora as multidões da avenida Afonso Pena. A que ele palmilhara, entre atento e fantasista, quando viera visitar o amigo Darío Sabine.

- Você devia ter ido, Michelle! Foi uma festa do caramba...
A colega patricinha com aquele ar de normalista de butique. O olhar faceiro da pálida de cabeleira arco-íris. E os corpos carregados de desejos desceram para a calçada tumultuada e ele ainda pôde segui-las com o olhar. Belas musas urbanas, que entravam justamente numa ... butique!

Ah, Michelle ma belle, par gentilesse, um poco de votre attention... Que bela luz pálida tua pela irradia.’

Um ponto antes do Parque, ele desceu. ‘Será que ainda reencontrarei a bela e pálida Michelle?’

E aí entrincheirou-se na primeira casa lotérica que encontrou. A opção (o plano B) seria aquela fila do banco, a quinze passos voltando. Mas (falência do plano A) na lotérica, o sistema (que unia os computadores) estava fora do ar.


Fora do ar? Imagine todo aquele dinheiro lá! Se é que há, de repente tudo não passa de dígitos no circuito integrado, uma moeda puramente eletrônica, cybergrana! Dinheiro não circula, pois encalha no banco. E se precisar dele – enfrente as filas! Aí o sistema fora do ar? O dinheiro todo digitalizado e o povo sem um vintém!

Se tivesse um papel qualquer no bolso, escreveria um poema sobre o cyberdinheiro.’

O incômodo era geral. Um senhor, a sua frente, comentava seu extrato. A atendente ao balcão esclarecia que ali não. Só aceitam pagamentos e saques, nada de outras movimentações. A mulher, às suas costas, coçava distraída a unha encravada do pé direito e, esbarrando nele, pedia insistentes desculpas. Comentava com a vizinha o preço do sacolão popular. Duas crianças brincavam, com apitos, dentro da loja. Uma mais pequenina chorava, tentando se evadir do colo protetor da mãe, a última da fila.

A fila, que mais parecia um caracol, uma serpente enrolada sobre si mesma, os últimos incomodando os primeiros, era uma verdadeira aula de antropologia social. As filas de pagamentos e as de jogos se interpenetravam, e ninguém entendia mais nada. Um segurança surgiu, insistindo em impor ordem.

Será que todos os cidadãos num raio de um quilômetro vieram pegar grana logo aqui?’ Mas uma aparição desviou seu desconforto, com imagens mais agradáveis. Algo de indígena, morena clara, mais sensual que a mulher no lotação. Linda de causar tremores – e acompanhada! Se apoiava em seu homem tal uma serpente ao redor do tronco, toda entregue e toda insinuante, provocante. Mas uma escandalosa fragilidade. Para que ficar sempre se apoiando no homem? O homem que mantém sua atitude de senhor. ‘O macho se excita com a fragilidade submissa da fêmea? Ela submissa ao furor do desejo dele?

HD ali na fila a conciliar as lições de antropologia neodarwiniana com o desejo que o invadia. Só a espera de uma sorriso, uma aprovação? Mas ela nem o notou! Só olhava para o homem! O homem naquela superioridade: há uma mulher dependurada em mim! Ele tolerando a mulher como se ela rastejasse aos seus pés pedindo atenção e apreço. Ela percebia? Sentia prazer, sabendo? Ela se esfregando, sem pudores, com aquele olhar de serva entregue, aprovando todos os gestos dele, toda a autoridade dele!

Mas HD estava com inveja! Alucinada inveja! Ele queria ser o homem a quem aquela mulher submissa se agarrava! Ela a ajeitar a roupa coladinha ao corpo sensacional! E ele, o homem, como a dizer que era comum a situação: ele andar com belas mulheres, que trocava como quem trocava de camisa de flanela. Pois o homem estava ali tal uma estátua de indiferença, como alguém que come um prato fino como se fosse arroz-e-feijão e ovo cozido. Um mulherão daqueles e o cidadão olha de cima, como se olha um animal de estimação!

E ali diante do casal da aula de antropologia, o sedento, o faminto de desejos, Hector Dias, estudante, vinte e quatro anos, que há três meses está sem sua garota, consumindo-se em punhetas cotidianas e vespertinas! E ainda mais indignado porque queria ser o homem! Aquele cidadão ali com seus trinta, trinta e cinco, respeitável carreira e suntuosa conta bancária! E com aquela fêmea sedenta (dezoito? vinte anos?) grudada nele! E ele, HD, olhando para ela do mesmo jeito!

E lembrou-se (enfim!) do olhar de Sônia Regina, na noite da fuga, quando ousou enlaça-la pelo ombro com aquele sentimento de posse! O homem exibido sua mulher, indicando a todos – ela é minha!

O olhar da Sônia! Ela sabia! Ela estava rindo dele. Ela sabia! O papel que representava aquele homenzinho de dezoito anos. E ela não aceitou o abraço. Ela o afastou com um sorriso irônico. Pois ele não beijava tão mau como garoto de quinze? Para que então ousar abraçar a menina? E no ônibus, depois, não foi o mesmo? Ele insistira, e ela dessa vez nem sorrira, Por favor, Hector!


Sim, ele devia ter se comportado. Nada de abraços para os outros. Se ele era o homem: que isso ficasse entre eles. Importava que ele fosse homem para ela – apenas. Não para toda a turma de colegas dele.

O casal logo se foi embora e as imagens de Sônia e Naína se misturavam. A mais remota e a mais recente! As pernas da morena do ônibus se confundiam com as da morena da lotérica. Os vestido se diferenciam – um claro, meio cinzento, e o outro, negro, escuridão luzente – mas o mesmo vestido, o da fragilidade, o do esmagamento da mulher, da submissão da fêmea. O macho só consegue gozar se dominar a fêmea. Tem que ver a mulher abaixo de si para dominar e saciar-se nela. Gozo de macho que se sacia e deixa saciada a mulher.

Ele, o indignado Hector, era homem e não iria longe em suas meditações. Mulheres! Seres de saias que só eram completas se tivessem um homem do lado. E a desculpa-mor: é a natureza que as fez assim. Desamparadas. Um vazio a preencher.Mas ele sentia um ar fétido de sociedade naquela sujeição das mulheres. Mas ele não era feminista e logo voltava a deseja-las, mentalmente sempre rebaixando-as. Ele sabia que tendo uma mulher ao seu lado, ele a trataria como aquele homem enlaçado pela morena submissa. Olhando de cima para baixo. Assim como se um homem forte olha um homem fraco.

Mas finalmente o sistema estava operante e nos abismos dos desejos de HD precipitavam as morenas, a inteligente Selma, a sardônica Sandra, a desamparada Sônia, a caliente Naína, a loira do casarão do jardim de orquídeas, a loira da loja de flores, e muitas outras, ninfas desconhecidas, musas urbanas, que ele não ousara se aproximar, interferir em suas vidas, puxar um papo, pegar na mão...

Mas aí chegou a sua vez, passou o cartão magnético, confirmo a senha, e novamente o processo todo, e sacou a grana, mas já foi ao guichê o lado pagar as contas. Luz, água, prestações da máquina de escrever, o sapato de fim-de-ano.

Saiu pensativo, mãos nos bolsos, resguardando as notas remanescentes e na calçada seguiu contra o torvelinho turbulento dos transeuntes. Ele nunca aprendia, jamais aprenderia a andar naquelas calçadas de metrópole , pensando, tropeçando, colidindo, desviando-se apenas par colidir novamente, em bêbados, mendigos, cães sarnentos. Sentia rasgar suas entranhas as estridências de buzinas. E olha os outros. Não pareciam ligar a mínima. Viviam bem na Babilônia. Eu estranho tudo isso. Nasci aqui, mas não fui criado aqui. Não cresci em cidade grande. A periferia é uma praia de tédio. Mas e tantos que nascem, crescem, se formam em ruas entulhadas de urbanas neuroses, e ainda estranham?

Se os nossos amigos da ‘tábua rasa’, Locke & Cia, estivessem certos, com aquele papo de formamo-nos aqui, são estes aí aqueles que são um-com-o-mundo, formados na cidade grande à sua imagem e semelhança, um-com-a-cidade. Por isso andam por aí como se nada os surpreendesse. A cidade é uma extensão de suas mentes...

Pensamento interrompido por uma colisão, Mil desculpas!

Mas e aquele lance do Heidegger: estar-aí? Como se prontos fôssemos jogados no mundo? Mas pode ser assim: Um-com-o-mundo e de repente um estranhamento! Quantos estrangeiros em sua própria cidade! Se fôssemos meros produtos do ambiente em que nos formamos então não haveria deslocamentos, inaptidões, seres desadaptados – a não ser por problemas orgânicos, cognitivistas...

Nova interrupção: um cão latia para um caminhão que passava. Sim, mas daí a dizer que os desassossegados são doentes? Meio segregação isso? Mas a cultura liberta ou aprisiona? O individuo só é autônomo (e não autômato!) se desperta meio ao que o formou (o que fizeram dele) e assume a direção de sua existência.

Agora um gari de lança a sua frente visando recolher os sacos de lixo, voltando à rua, quase sendo trucidado por uma carreta. Pô, esses caras arriscam a ida para sobreviver! Enquanto isso, jovens em flor seguem fascinadas pelas calçadas diante dos atrativos das vitrines.

Onde eu li isso em Sartre? O caso é cheio de poréns. Aquela ali não larga o celular. O óculos escuro até combina. Mas se os desadaptados não são doentes, são o quê? Não somos todos iguais por efeito de temperamentos e educações diversas, mas se fôssemos todos os produtos do meio seríamos identificados com esse meio, não seria um exterior estranho nem o sujeito estrangeiro na própria terra. Pois não nasci formado. Ser-no-mundo dá a idéia de que algo-não-do-mundo-se-encontra-no-mundo! Sou ser-igual-ao-mundo, formado no mundo? Ou alguém-algo que caiu de repente no mundo?

Descobriu diante do Palácio das Artes, e resolveu subir para a avenida João Pinheiro, alcançando a avenida da escola de Direito. Andar é a melhor forma de pensar...

Cheiro de incenso. Bancas na calçada e garotas com vestes indianas. Incensos de todos os tipos e para incensar nossa ida ocidental moderna.


Lista de leituras: Hume, Locke, Heidegger, Sartre, “Mal-Estar na Civilização”, Freud! Se eu-fosse-um-com-o-mundo-que-me-formou não haveria mal-estar! Eu aprenderia desde o berço a controlar as minhas pulsões, minhas renúncias instintivas... História tem um montão! Quem? Ora, desde Heródoto, e Gibbons, e a Queda de Roma, os dramas históricos de Shakespeare. Também a Escola de Annales... Le Goff, Lebvré, as formações urbanas no século 19. historiadas mentalidades, estruturalismodescontrutivismopósmodernismo.

E seguia pensando pesado! Três mil anos de História goela abaixo em dez anos! Atravessou outra fila de banco, que se derramava quarteirão abaixo, dir-se-á um transbordar de gente, de vestes da moda, de gestos irritados, de faces transtornadas. Mas todos exemplarmente mui civilizados!

E as ‘renúncias instintivas’? Uma hora de pé, ali, aquele monte de mulheres encantadoras a passarem, oh, angústia existencial! Ver todas aquelas vitrines abarrotadas diante de seus olhos e nada poder comprar! Nada poder levar para casa e ser diariamente bombardeado pela TV que só se é bacana com tal e tal produto, essa e aquela marca, de confiança inabalada! Abraçado todo sorrisos com uma mulata folia nacional! E ele ainda a perguntar-se sobre o mal-estar na civilização?

Os homens não são iguais, ‘uns mais iguais que outros’, letra de música isso. Grande novidade! Aqueles ali babam, seguem com olhares ávidos as garotas com suas coleções de cartões de crédito. Mas tudo isso porque quero me integrar ao jogo e não posso! Eu tenho que me resignar! Fingir que não é comigo. O sistema segue assim: a fazer-me crer que serei feliz em lutar para estr lá – no topo! E em reproduzir essa correria até o pódio, onde alguns sempre correm na frente!

E nisso, HD alcançou a parada de ônibus, após ter se desviado da banca de revistas. Outras elegantes ‘Michelles’ desciam a avenida. A hora do almoço se fazia anunciar pelas fragrantes iguarias dos self-services com balança, e pelo sutil tilintar de talheres na ladeira acima. Engravatados afrouxavam gravatas, casais em sutil acasalar.

O ônibus frenético desce da Praça e quase atropela um catador de papel que acaba de ‘estacionar’ seu carrinho de papelões e frascos descartáveis.

Depois da irritação (devido às renúncias instintivas, como visto) vem o tédio, e eis que, uma vez dentro do ônibus, ele reclinou-se e caiu numa letargia. Coisa de semi-cochilo. Onde a imagem da moreninha ao seu lado flutuava junto com o perfume, com a alça do vestido, não, não era vestido, era a blusinha, ela estava de calça jeans, com a alça a cair e logo sendo reajeitada. Outra frenagem e outra arrancada, e a alça caía, e os dedinhos deslizam a ajeitar a seda sobre a seda do ombro bronzeado. O tempo todo.

Êta alcinha chata, hein! Teimosa que só ela! Vai bem, a garota? Mas era só miragens, imaginação! A alça no lugar, o sorriso da garota, a mão sobre o ombro, o gracejo entre ambos.


Não se tratava inda da dama da lotação. Talvez ela existisse apenas na mente de um Nelson Rodrigues.




Junho / 2001


Protestos marcam a reunião da União Européia em Gotemburgo, Suécia. Praça de guerra no centro da cidade. Barricadas e depredações. Tumulto por mais de doze horas. Multidões! Dez ativistas para cada policial!

Para Noam Chomsky, a problemática é social, não política.
[...]
LdeM

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