Insônia das Almas
Capítulo II
“Por que você está rindo, Raíssa?”, ela pergunta; e a amiga, “Ora, você nunca riu do mundo, dessa comédia humana? Ora, é muito cômico!”, “Não seria tragicômica?”, “Não, cômica. Trágica por ser cômica!”
Assim, pensando em Raíssa, sua melhor amiga, Sônia Regina percebeu-se diante do prédio curvilíneo da Biblioteca Estadual, ao descer do ônibus, onde, de olhos fechados, atravessou a cidade, sob os olhares discretos daquele senhor gentil. Levemente sonâmbula, abria os olhos e lá estava ele, de pé junto a porta traseira, ora cabisbaixo, ora arrogante, com seus quarenta anos pesando sobre os ombros e apreciando a paisagem de concreto e asfalto, ou a face adormecida dessa mocinha deveras interessante, deste brotinho de dezoito anos, transbordando de beleza e inexperiente volúpia.
Estudantes invadem a Biblioteca e percorrem as estantes entre risos e gracejos, até que um funcionário surge de súbito e faça respeitar o decreto de silencio, mas Sônia Regina ainda carrega imagens de seu curto passeio quase sonho, onde abrindo os olhos e descobrindo todo um mundo lá fora, além das janelas tremulas e embaçadas do coletivo, descendo a avenida Augusto de Lima, diante do monumental Edifício Maletta, lá fora, sob às marquises, um casal se beija, um beijo meio a todo o ruído da Avenida, meio às buzinas loucas, meio aos catadores de papelão com seus carrinhos feios de lata e madeira, meio às turmas de estudantes que correm para os colegas, meio a todo o distúrbio do mundo, dois lábios se buscam!
Mil outros enredos encontrará diante de seus olhos, as vidas de inúmeros protagonistas e antagonistas e figurantes, reais ou inventados, isso se o que chamamos “real” também não passar de invenção, em estilos românticos ou irônicos, em perspectivas simbolistas ou naturalistas, tal ensina a professora com aqueles rótulos e “estilos de época”, na monótona aula sobre modernismo, enquanto, discreta, Sônia desenha, distribui traços na folha em branco, pretendo preencher aquele vazio e outros, mais “metafísicos”, como outro professor dizia, o de História, mas era a aula de Português a mais criativa, por ser a mais enfadonha, A porta bate ruidosa. Passos céleres num longo corredor. Ali dispersos armários em paralelo. O homem pára, sabe que deixou uma maço de folhas cair, mas demora para se voltar. Alisa a caça, ajusta o chapéu de feltro, cofia o bigode. Sua maleta pesa, seu reflexo no espelho..., “Mas lembrem-se que a publicação modernista visava...”
Livros e livros, e Sônia Regina ali, tímida diante de tantos. Livros para se degustar, como dizem, quando você se aposentar, lá sentada em sua poltrona, torcendo para não ser incomodada pelos netos, a ler, quando o reumatismo não ataca, ou as vistas não ficam fracas, então ler para quê? Quando já é inútil toda e qualquer leitura... passos ressoam entre as estantes entupidas de romances dos mais diversos autores, lugares e épocas, toda atenta, não percebe o vulto que surge na oura extremidade, somente nota quando ele ali está, e um olhar que ela julga ter visto antes, uma suspeita, “Será que ele está me seguindo?”, e surge todo aquele terror de estar sendo seguida, observada, por alguém que a deseje com obsessão, a ponto de sequestrar e violentar, coisa horrível que aconteceu àquelas pobres mulheres que desapareceram,e que as famílias se desesperam, e os corpos são encontrados na mata da Universidade, e novos desaparecimentos criam pânico, as mulheres não querem mais andar sozinhas, e ainda mais terror depois que em suas mãos caíra o romance de John Fowles, “O Colecionador”, onde o maníaco Frederick Clegg mantinha prisioneira a observadora e desesperançada Miranda.
Mas o homem passou sem impertinências. E sobram os livros. Se eu abrir um livro destes, qualquer um, todo um universo se abre para mim, estarei em outro lugar, outra época, vidas e experiências que possuirei, mundos que conquistarei, como sugada para universos paralelos. Se eu abrir este aqui, essas vidas passam a me pertencer, desfilando diante de meus olhos, quando estou acima deles, posso me sensibilizar, ou julgar, este aqui, ambiente britânico, no século passado, um Lord e um pintor no ateliê, conversam sobre um belo jovem, modelo do pintor, que trabalha em impressionante retrato, mas o jovem é atemorizado pela idéia de envelhecer, e num voto sinistro transfere tal horror ao retrato; ou este aqui, onde eu encontro um jovem que ama a glória militar, mas é obrigado a vestir o hábito de seminarista e esconder sua admiração pelo herói nacional agora desprezado; e com este ouro, eu volto dois séculos e vejo o jovem que foge da vida no meio comercial de sua família para viver meio a atores e atrizes, em encenações e aventuras de aldeia a aldeia, com o pretexto de estar cuidando dos interesses da família; ou a filha de negociante de província e desgostos de família; e outro, aqui uma mocinha, no início do século atual, ajuda a mãe a escrever a biografia do avô, poeta famoso, mas se dedica, às escondidas, à matemática, envolvendo-se num noivado, apoiado pela família, com um funcionário, aspirante a poeta; ou se abrir este, um homem foge na noite, chega à uma fazenda onde fica trabalhando, analisando a dona da fazenda, a cada cerca que conserta, estrebarias que limpa, atraindo o interesse da irmã da dona, Quem é aquele homem? Um criminoso?, de suspeitas nasce a denúncia, ele é preso, ele assassino da esposa, mas que ao fim descobre que ela não morreu...
E o que são estes nomes ali grafados, OSCAR WILDE, STENDHAL, GOETHE, BALZAC, VIRGINIA WOOLF, CLARICE LISPECTOR, que assinalam como marcas de qualidades as capas dos volumes? Quem foram, de onde vieram, o que sofreram? E o que importa o autor? O importante é o testemunho da obra? E o que cada nome grafado testemunha? Quero saber o que ocorre agora com o personagem tal e no livro tal, vou abrir e está ele ou ela à minha disposição, para o meu entretenimento ou instrução, cada personagem então somente a mim pertencem, e nada seriam sem mim, sem um eu-humano a desvendar mundo em miríades de letras e sinais gráficos.
Sônia Regina abre um volume na estante de Literatura Inglesa. “Wutherings Heights”, ou “O Morro dos Ventos Uivantes”, da genial Emily Brontë, e as páginas, com suas letras e sinais gráficos, exibem uma cena de discussão, ali o intempestivo Heathcliff discute com a jovem Catherine, e livro aberto fica ali interrompido e congelado, quando os olhos de Sônia se levantam, a cena voltando a ser coisa morta: letras e sinais gráficos, traços inertes; mas basta o seu olhar pousar sobre os tais sinais e traços – e a emoção de um gesto é transmitida, e a força de um grito faz nascer um arrepio, um olhar que atravessa eras e oferece ternura e desfio. A existência das personagens depende da atenção dela, a consistência dos mesmos se deve a ela estar imaginando cada um, e de súbito, desaparecem, pois ela os abandonou, e Heathcliff ainda discute com Catherine?, ficaram congelados num gesto de irritação, um abrindo a boca para replicar, numa pausa de vídeo?
Mas ela já leu este livro, genial, mas não estava pronta para releituras, queria novidades, experimentaria outro de Clarice Lispector, “O Lustre”. E deciciu sentar-se oprimida por tantas vidas e existências enclausuradas em encadernações e brochuras, edições luxuosas e coleções de bolso, na sala de leitura, a lembrar do colégio e sua biblioteca, onde matava aula, lendo romances franceses, até ser interrompida por Raíssa, a única que ousava perturbar o seu sossego, “Ah, querida, é sempre aqui que eu te encontro!”, a mesma Raíssa que se aproximava dela, quando sentada na arquibancada da quadra de esportes, perdia-se em meditações sobre sua nova vida, em colégio novo, em bairro novo, em vivências novas, “Por que você está tão cabisbaixa, colega? Assim tão sozinha?” e ficou ali, mesmo em silêncio, agora uma companhia.
No colégio é encontrada pelos cantos, os rapazes não estranham, mas trocam sorrisos às suas roupas escuras, sua pele pálida de horror ao sol, batom preto marcando os lábios nada sorridentes, os cabelos curtos e negros, isso quando ela não arriscava uma tinta rubra, e a andar sonâmbula, a desenhar paisagens esqueléticas ou ambientes medievais, com excessos de teias de aranha, e então um convite de Raíssa para uma festa, ali mesmo no bairro, e ela não queria recusar, afinal era uma oportunidade, mas quando chegou sábado à noite, viu-se deslocada meio aos convidados, ainda que muitos de roupas pretas e algo pálidas, com batons roxos e brilhos metálicos nos narizes, meio aquela decoração com morcegos de papel, suspensos no teto, e uma coruja empalhada, personagens de “O Corvo”, o filme, e sem sequer ser “Dia das Bruxas”, até Raíssa desaparecera, e os músicos se prepararam para o show ali ao vivo, um som ríspido e cru que a atordoou, acostumada ao depressivo, às baladas, agora jogada ao mórbido, aos gemidos e palpitações, aos gritos e imprecações.
Perdida meio aos estranhos convivas, em estranho lugar, é socorrida pela colega que emerge da massa sombria, “Raíssa, estamos no Dia das Bruxas?”, “Ora, Sônia, divirta-se! E você sabe muito bem que a pouco acabaram as festas juninas! É dia do Rock, pode agitar e rolar!”, e dedica-se apresentá-la aos jovens, e se ela não gosta de dançar, ainda que dançar não seja o caso, pois ninguém dança exatamente, se sacodem, se agitam, quase como epilépticos, histéricos, até se cansarem e prostrados ficarem ao lado das caixas de som, se ela não quer dançar, não importa, há um círculo de vultos em volta de um aparelho de som e uma garrafa de vinho barato, e Sônia é conduzida por Raíssa a uma dessas rodinhas, onde ela acomoda-se junto as garotas, prostradas diante do som, e que passam umas às outras um compact disc ou uma garrafa. Logo aparece um rapaz, que conhece inglês e passa a traduzir a canção para aquela mocinha mais pálida ali junto a caixa de som, e ele traduz, “Somente os Céus sabem o quanto estou miserável agora”, e as outras se limitam a olhar as fotos do encarte, e outra recém-chegada acende um incenso, e todas indiferentes a presença e ao silêncio de Sônia.
Sozinha, ao longo da festa, Sônia bebe, fuma, agita-se quando duas bandas tocam, o namorado da amiga é baixista de umas das bandas, a mais 'cultuada', mas ela não se entrega a rapaz algum, mas observa um em especial, pois quando da primeira banda ele cuidou da montagem e teste da bateria, com golpes técnicos, ainda que pesados, mas ela só observa, e acaba por dormir tarde, num dos quartos, ao lado de duas garotas, caídas de bêbadas, e acorda lá pelo meio-dia, com a cabeça pesada, e desce a escada, e escuta, “Pô, me amarrei no seu penteado, Sônia!”, e é a Raíssa gritando, ali na poltrona, abraçada ao namorado, observando Sônia a descer os degraus, pois Sônia sequer se lembrou de um pente ou escova, após seu primeiro porre, a ser inesquecível, mas outros se seguirão, “Ah, sim, uma bela juba, de leoa”, graceja o namorado da amiga, o do cabelo todo arrepiado, e Sônia, sem graça, nada responde, enquanto, assaltando a cozinha, os rapazes lancham uns sanduíches, e Sônia descobre que os pais de Raíssa viajaram e que o irmão é quem ajudara a montar a festinha, e alguém tocava bateria lá no salão, ela segue o ruído, ELE está na bateria, no mesmo palco improvisado, Sônia o observa, ao lado de outros rapazes com olhares de ressaca, e se aproxima, ousando abordar o músico quando ele silencia, ele sorri, os rapazes observam, ela está ao seu lado, ele estende a mão, “Víctor Marçal, minha bela! Você é a amiga da Raí, acertei?”
E a sala de leitura do colégio, que até fora o seu refúgio, agora se tornara quartel-general de estratégias, com aquela solenidade de biblioteca de colégio de classe média, e numa parede, à entrada, junto às enciclopédias e os dicionários, está um crucifixo, com o ensaguentado Crucificado, ali obscenamente exibido, e uma Bíblia Sagrada, daquelas católicas, toda aberta, num pedestal, volumosa, um calhamaço solene, e quando ela se aproxima, entregue à poesia, está o livro de Salmos, único livro que esse povo lê, apesar de toda aquela ostentação, como se abençoando o ambiente, como se fosse um Alcorão aberto numa mesquita, numa instituição árabe, mas acontece que não estamos num colégio muçulmano, num Irã, ou num Afeganistão, mas num país que se diz “laico”, onde religião e Estado não se misturam, e pense bem o que sentiria um muçulmano, um budista, um protestante, um ateu diante daquela ostentação apostólica romana, pois todos os símbolos, todas as relíquias, todos os estandartes, enfim, de todas as religiões deviam estar ali, todas, ou nenhuma, pois esta é a pátria de todos, não distinguindo religião, ou religiosidade, mas ela já começa a sofrer de alucinações, e desfilam cavaleiros com longas cruzes costuradas nas vestes, longas espadas, tingidas de sangue denso, em horrendas carnificinas, de homens brutos invadindo mesquitas, massacrando monges, em procissões entoando hinos, ou judeus com os corpos em chamas, ou senhoras distintas traçando o sinal da cruz em prostrada persignação, de protestantes protestando vitimados por massacres noite adentro, e das chagas do Crucificado goteja um líquido rubro a derramar-se sobre a Bíblia Sagrada, e estender-se em nódoa sobre o piso, uma poça de sangue a se formar, e ela se afasta, “E se o sangue escorrer até os meus pés?”
Mas agora Sônia Regina se acomoda, após encontrar uma cadeira disponível, em tantas mesas ocupadas. Ali diante dela, uma moça de não mais que vinte anos, concentrada meio aos livros sobre História da Civilização Ocidental, mas o olhar dela não é lá muito amistoso, e acontece que a moça logo reúne seu material e se levanta, assim sem mais nem menos, e com uma expressão (provável!) de desprezo. “Será que ela já estava preparada para ir embora, quando eu cheguei? Ou será que não gostou, não aprovou minha presença? Talvez se eu tivesse dito “Licença”... mas ela é que não foi gentil! Será que não gostou das minhas unhas? Também este esmalte preto! Ou será que ela não gostou do meu cabelo? Séculos que não vê um pente! Ou será que ela não gostou da minha roupa? Se ela perguntasse, eu diria que estou de luto! Se não gostou, podia ao menos ser delicada, não digo que prefiro a hipocrisia, mas será que o problema é comigo? Por que essa neura? Se eu estivesse incomodada, e raramente me incomodo, eu me levantava discretamente, cordialmente. Será que ela se sente mais cidadã do que eu, só por seguir a moda?”
Um dia, na biblioteca do colégio, uma professora novata perguntou-me, se por educação ou hábito, não sei, se eu daria licença para que ela se sentasse à mesa que eu ocupava, aí não entendi, ou antes, pensei ter ouvido ela perguntar se o lugar estava ocupado, e eu disse “Não”, e não imagina o quanto ela ficou perplexa!, agitada mesmo, nem desculpou o fato de eu explicar que eu poderia ter entendido a pergunta como “Esse lugar está ocupado?”, a droga do ruído de comunicação!, mas é que vivemos nos protegendo numa rede de relações e hábitos e que se rompidos, ou mudados, provocam um vazio, uma lacuna, um imprevisto, um desconforto, onde a percepção, a explicação deve ser eficiente, senão eis mais pacientes para os analistas.
“Onde o amor ao próximo?”, balbucia Sônia Regina, cabisbaixa, olhando a capa do livro, “O Lustre”, Clarice Lispector. Na parede, o Crucificado. Por que aquela cruz exposta? Não por amor a Ele, certamente. Por que o ensino religioso nas escolas? Para insistir em que os religiosos que são mais piedosos e humanitários que aqueles que não professam religião? Mas se conheço não-religiosos que são mais humanitários, altruístas! Pois os religiosos precisam de Deus para “amar ao próximo”, considerando-o “filho de Deus”, assim um “irmão”. O não-religioso aceita o outro do jeito que é, respeita a integridade do outro assim como quer ser respeitado, sem qualquer temor por uma divindade. E eu não preciso de uma autoridade divina para aceitar as pessoas, por mais que me incomodem. “Amar ao próximo”, dizem, principalmente se o “próximo” está bem longe, de preferência lá na Somália ou lá na Indonésia.
Sônia Regina tem diante de si um romance e não consegue ler. Como conseguir se concentrar? Há todo um borbulhar abafado de sussurros de presenças humanas e quando olha ao redor, a admirar a concentração das mãos que escrevem e dos olhos que rastejam nas páginas, percebe a presença da faxineira a esfregar o chão com um pano, reclinada e indiferente ao que se passa ao redor, ela que possivelmente pouco se entrega a leituras, mais vitimada pela novela das oito, e aquela simples presença a perturba. Nada contra a mulher, que Sônia sequer conhece, mas aquela condição de serviçal, a lembrar ela que alguém precisa trabalhar pesado para que outro alguém esteja confortável, em civilizado “bem-estar”.
Mas a faxineira passa, atarefada, nem incomoda. E o que Sônia agora percebe é a figura de um jovem, duas mesas distante, a retirar os óculos e limpar as lentes com um lenço, e deixá-los, em seguida, sobre os cadernos, e olhar adiante, além das janelas, a coçar um resquício de barba, numa carícia, a massagear as bochechas, numa pausa, a observar a paisagem às escuras da avenida sob o brilho dos postes, o transito refreado diante do semáforo, a acariciar o peito sob a camisa fina, depois o dedo indicador raspando o discreto bigode, sem desconfiar o prazer “voyeur” que certa mocinha sente explodir dentro de si no mero e singelo observar.
Que Sônia Regina encontre prazer em observar, não significa que obtenha algum ao perceber-se notada. Na verdade, ela vive traumatizada pelo olhar alheio, ela a sentir como se roubassem algo dela, como se a imagem pudesse ser roubada, e mais incomodada ficara quando, aos doze anos, foi surpreendida nua, ao banho, pelo primo de quinze, que se apoiara na porta, que ela esquecera aberta, e ela jamais esqueceria aquele “olhar estranho”, como se apenas com o olhar ele sugasse todo prazer do momento desejado, de súbito realizado, diante da nudez da prima. E aquele olhar a magoou mais do que se ele tivesse entrado e ...
Mas o que a incomoda tanto? Ser o “objeto” do desejo? Ser um corpo a ser conquistado e invadido? E se ela fosse um homem, adoraria quando olhares de mulheres convergissem sobre ele, o seguissem? Corpos femininos, esses corpos a se oferecerem, a desejarem o seu, para senhor e dominador?
“Ela seria fluida durante toda a vida.”, foi a primeira frase que leu ao abrir o romance de Clarice Lispector, e a frase congelou os murmúrios ao seu lado e fez desparecer o jovem a recolocar o óculos, duas mesas distante, e só havia imagens de uma garota deslocada, “fluida”, que não se prendia a nada, mas sempre a deriva, sempre inconstante, sempre querendo saber o que a vida significa e o que estaria fazendo ali. E um funcionário passou a recolher os livros deixados sobre a mesa, e silenciosamente se afastou. “Porém o que dominara seus contornos...”, estava ali no romance, qual o nome?, “O Lustre”, ah, sim, “... e os atraíra a um centro, ...”, mas sua inconstância, sua e da protagonista que ainda nem conhecera, nascia de um muito indagar ou de um profundo não-entender? Certo que Victor sempre a levara à sério, o que não era o caso do Oto, sempre a pensar que convivia com uma completa idiota, “o que a iluminara contra o mundo e lhe dera íntimo poder fora o segredo.”, mas qual segredo poderia uni-la a arrogância de um Oto ou a timidez de um Stevam, e uni-los contra o mundo?, “Nunca saberia pensar nele em termos claros temendo invadir e dissolver a sua imagem.” Sabia é que a sua imagem é que se dissolveria se ficasse ali mais um minuto! Nem se daria tempo para saber se seria aquele romance a ser escolhido e sobre o qual se debruçaria uma semana de existência. Deixou o livro sobre a mesa e saiu como que fugindo, mãos vazias.
Ela, alcançando a noite de vento, lembrou-se que TH, ai, que TH?!, ora, o Henrique!, lembrou-se que Henrique também sentia claustrofobia em bibliotecas e que sua sensibilidade não permitia leituras em convívio coletivo, preferindo ler “A Tempestade” de Shakespeare no Alto dos Mangabeiras, ou folhear antologias poéticas na ilha do Parque Municipal, o Henrique que quanto mais lê, mas sofre, e mais sem sentido parece-lhe a vida, o Henrique em visita, meio aos gatos do Oto, e recitando Castro Alves e indicando literatura inglesa, “Vou emprestar-te Byron e Shelley. Creio que serão boa companhia.”
E, no entanto, o mesmo Henrique dissera que a Literatura podia salvar, não se sabe se com ironia, mas dissera. E lembrara de um romancista francês do século dezenove, ex-oficial de Napoleão Bonaparte, que sem ganhar dinheiro, com a literatura, resolve matar-se, escreve um testamento e deita-se, decide a solução final, o “ato inevitável”, no dia seguinte, mas eis que um amigo o visita no dia seguinte e vê, sobre a sua mesa, um maço de papéis, um romance sendo manuscrito, mas do qual desistira, então o amigo o anima e daí surge o livro que o tornará célebre, e Henrique sorria, coisa rara! E será que surgirá algum amigo, ou amiga, para me animar, com palavras para me incentivar, antes que eu.
Sentiu uma vertigem e por pouco não cai nos braços de um vulto que vem da Praça, camiseta preta, cabelão solto, olhos vermelhos ousados, então finge não ver, toda indiferente, mas, de repente, os passos atrás de si, o cara em voz imperativa, “Ei, garota!”, e ela se volta e enfrenta o rapaz, um tanto ébrio, intimidante, e Sônia Regina se lembra, um ensaio, um solo de guitarra, trata-se de um amigo de Stevam Lucena.
- Ah, você me conhece daquele ensaio da Tenebrae! Você era o guitarrista...
- É, tem um tempo, hein? Você não mudou muito, aliás, está mais gatíssima!
E o olhar dela não é de agradecimento nem de modéstia, já incomodada com esses caras empolgados que não podem encontrar uma garota andando sozinha, e ele continuou: - Tem um tempo que não vejo aqueles caras.
Ela faz um movimentos para seguir caminha, mas o olhar dele é daqueles pesados, ela precisa dizer qualquer coisa: - Mas você tocou com eles, não foi...?
- É, mas não fiquei... Eu é que resolvi sair. Muito sinistro, os caras...
- É, tem um tempo. Uns seis meses, não é? O Stevam que me chamou. O ensaio na casa do Victor... Mas, a Tenebrae até acabou.
Ele deixou escapar um lampejo de lembrança.
- É, eu sei. O Oto conseguiu o Raul, sabe, o batera da Crepuscular, e contrataram um baixista, acho que será o novo super trio em cena.
Ela só oferece o silêncio, espera que a interferência dele tenha fim, mas em vão, pois ele tira duas baquetas da mochila.
- Nem toco guitarra mais. Estou aprendendo bateria, e quem sabe até entro pra alguma banda...
Ela perde a paciência. - Espero que sim, mas tenho que ir. 'Té mais.
Ela perde a paciência. - Espero que sim, mas tenho que ir. 'Té mais.
Sônia sabe que precisa telefonar, achar alguém interessante nessa noie de lua, de vento, de estrelas, de promessas. E atravessa, sem cuidados, a Bias Fortes, a avenida, e quase é atingida por um veículo de faróis baixos, mas chega viva ao outro lado, diante daquele prédio que em tudo destoa da arquitetura clássica da Praça, como se fosse uma imensa peça metálica de remendos, feita de sucatas, e, entre nauseada e entorpecida, alcança um orelhão.
Primeiramente, Oto. Vejamos se o nosso ruivo está em casa. Chama até cair.. dormindo? Duvido muito. Talvez, então, o Stevam, mas cai na secretária eletrônica, e Sônia deixa um recado. E a terceira tentativa será com os números de Raíssa, e ninguém atende. Longa espera. “Nobody Home!” e desiste, “Antes tivessem me atropelado!”, bate o fone contra o aparelho, que não tem culpa alguma, “Assim alguém se ocuparia de mim, nem que detrás das lentes frias do IML!”
Mas percebe, parando diante da praça, o ônibus que atravessa a Francisco Deslandes, no bairro da Raíssa! Não custa nada insistir! O ônibus acelera, e Sônia Regina senta-se ao lado de uma senhora adormecida. Em breve, ela também fecha os olhos.
(fim do Capítulo II)
LdeM
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