segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Parte 3 - Flores no Asfalto (novo blog!)





DESENCONTROS GRAFADOS



PARTE 3 - FLORES NO ASFALTO



A parte 3 do romance Desencontros Grafados

estará disponível online em novo blog


acompanhem a saga da vida comum em


boa leitura!
LdeM

sábado, 11 de dezembro de 2010

Os Bastidores do Romance

Os bastidores


A “história” do romance (seriado)
DESENCONTROS GRAFADOS


O Romance 1 (parte I) Náuseas de Estudante
nasceu de inquietações de fins de 1997, quando de meus
fracassos em BH, quando procurava empregos desde meu
retorno de Araguarí-Uberlândia, em meados de 1996.



Muitos trechos foram rascunhados em 2000 na UFMG e
uma primeira redação foi ousada em fins de 2002.
Mas em vão, ainda não era o momento.



Somente em 2006, de abril a junho, após o trauma de uma
separação amorosa, eu consegui a redação catártica
do texto no papel.


O texto foi digitado (e revisado) de nov/06 a out/07 .


O Romance 2 (parte II), Insônia das Almas, foi concebido
numa redação anterior ainda em início de 1995, quando de
uma perda amorosa, com várias tentativas de narrativas
(“Bola de Neve”, em 1995, e “Vamos fazer um filme”, em
1995-96, ambas destruídas), além de outros esboços em
1999, 2000 e 2002.



Até que o trauma de 2006 gerou angústia suficiente para
escrever este drama sombrio e tragicômico.
Seis capítulos em seis semanas, julho e agosto.


Revisado em abr/07, sendo digitado atualmente.



O Romance 3 (parte III) Flores no Asfalto, foi vivido ao
longo de 2002 e 2003 e esboçado mesmo em 2004, com
outra frustração amorosa, mas sem um enredo definido,
este só me apareceu quando resolvi narrar as vivências
e andanças com os amigos e acrescentando as crônicas
de eventos.



Outra idéia para a narrativa nasceu das paródias e
referências aos estilos de autores e enredos de outros livros.


Somente o trauma de 2006 foi capaz de me animar a escrever
semelhante 'colcha de retalhos' à la Frankenstein!


Fazem paralelo com o Romance 3 as versões resumidas ,
condensadas dos capítulos 4 a 6, o resumé 1, Solidão à Dois,
escrito em fevereiro/março de 2007, e o resumé 2,
Beijos no Asfalto, escrito de maio à julho de 2007.



Com mais meia dúzia de traumas amorosos e eu ganho
o Prêmio Nobel de Literatura!



Leonardo de Magalhaens
http://leoleituraescrita.blogspot.com

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em breve a Parte 3 aqui no blog............

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sábado, 4 de dezembro de 2010

Plano do Romance

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DESENCONTROS GRAFADOS
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Plano do Romance
(2006-2008)


Parte 1 – Náuseas de Estudante

Época: 1997 a 2001 (+ as memórias)
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A visão masculina, a literatura, o dia, o coletivo,
a política, a fisiologia...

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Parte 2 – Insônia das Almas

Época: 1999 (+ memórias)
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A visão feminina, a música, a noite, o indivíduo,
a religião, a metafísica...

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Parte 3 – Flores no Asfalto

Época: 2003 a 2006 (+ memórias)
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O dia X a noite, coletivo X indivíduo, sexo X amor,
ação X meditação....
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E mais: as versões reescritas
(e alternativas)
do enredo
dos cap. 4 e 6 da Parte 3
(com diferentes perspectivas)

(podem ser lidos independentemente)


Résumé 1 – Solidão a dois (em 1ª. pessoa)

Résumé 2 – Beijos no Asfalto (em 3ª. pessoa)
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LdeM

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sexta-feira, 19 de novembro de 2010

fim do c. VI de Insônia das Almas



continua...
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Onde deixei o robe escarlate?, aquele da Grande Besta do Apocalipse! Porque eu com meu robe escarlate, e só de calcinha, pareço a "Grande Meretriz do Apocalipse”, mas o que é isso?, é só eu puxar uma gaveta para cair um livro!, “Hamlet”, tinha de ser! E do Henrique!, e que eu já li e não devolvi até hoje!, e pobre da Ophelia! Morta nas águas, e o Hamlet com aquele blá-blá-blá, “words, words, words”, tenha paciência!, mas é Shakespeare, como diz o Henrique, que é fã do Bardo, que vivia lendo uns livros difíceis, igual aquele “Montanha Mágica”, que eu nem terminei de ler, o cara num sanatório, cheio de tuberculose, ai, que depressão!, e esse Anathema, com esse “Under a Veil (of a black lace)”! Que deprê! Acho que vou é ouvir este CD do Duran Duran, o presente da Raíssa, que me deu também aquele do Legião, “O Descobrimento do Brasil”, que eu ouvia sem parar, mas é a mesma coisa, fala muito de perda e morte, e já sei todas as letras na ponta da língua, ai, mas eu preciso devolver este “Hamlet” para o Henrique!, que vive me emprestando livros e às vezes nem devolvo, pô!, ele vai pensar o quê?, e ele deve ler muito tudo isso, por que fala e fala pra caramba, igual ao Hamlet, que fica dias caladão, mas quando começa a falar fica então horas falando, é uma enciclopédia em viva voz, igual aquelas aulas em CD-Rom, e vou trocar esse CD do Anathema, senão eu me atiro pela janela!, deixa rolar o Duran Duran, e esse pó na palma da mão, já que não tenho merecido outras carícias, outros prazeres, e o Henrique falando, ah, como ele falava, meu deus!
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Eu estava na casa do Oto, esperando o cara, lendo, pensando, no meio daquele gatos, orgulhosos e estufados, e ouço um ruído no portão, uns rangidos, uns passos, seria o Oto, enfim?, mas fui surpreendida! Ali o Henrique, todo sombrio, imaginando que o Oto estava em casa, e aí nem se dera ao trabalho de chamar, “Não, ele não está”, eu respondo e, estranho, ele não parece decepcionado, e seu olhar é fixo e mergulha dentro da gente, “Posso entrar?”, ele pergunta, com um quase-sorriso gentil, e os gatos passeiam pela sala ou escapam para o quintal, quando atravessam a cozinha, e um gato preto salta no braço da poltrona, derruba um livro, e eu recoloco o livro na estante, e percebo que o Henrique acompanhou o movimento, e ele se senta e folheia o volume, “Espumas Flutuantes”, de Castro Alves, e ele lê um trecho por acaso, “Oh! Jardim solitário! Relíquia do passado! Minh'alma, como tu, é um parque arruinado!”, e sorri, “O que foi?”, eu pergunto, “Você aqui sozinha, entre versos e felinos”, e eu, toda sem jeito, ele diz, “Estudando para o vestibular?”, de surpresa assim, quase balbucio, “Estava lendo...”, “Ah, você já está na faculdade?”, “Não. Devia, mas não estou. Levei bomba no primeiro ano, quando mudei pra cá, quero dizer, pro Santa Tereza. Estudo pro vestibular, sim. Mas agora é só leitura mesmo.”, “Sei. E qual faculdade te interessa?”, “Ah, quero fazer psicologia, e na Federal.” “E o medo do vestibular?”, “É difícil, não é? E imagino o estresse da carreira acadêmica...”, “Sim?”, “Pois a minha amiga Raíssa estuda Administração e sempre lendo uma pilha de livros...”, “pois então! Estude!”, “Preciso me animar.”, “E isso?”, “É uma antologia do Baudelaire.”, “Ah, interessante”, folheia e lê um trecho de um soneto, “Que dirás, esta noite, ó alma solitária, que dirás, coração, peito outrora insensível?”, e eu toda atenta ao deslizar dos gatos, o que dizer?, e o Henrique percebe, não mostra timidez, desde que entrou ele domina e intimida, “Leu aqueles livros?”, sim, e dele o “Hamlet”, e o “Macbeth” e um do Lord Byron, “Manfred”, e um do Goethe, “Fausto”, onde a Margarida morria gritando “Henrique! Henrique!”, e eu comento isso, e ele se limita a sorrir, e também um diálogo de Platão, que ela levemente entendera, mas se ao menos fossem em versos, “Sim”, e não completa, engasgada?, e inclinada na poltrona, encolhida, a evitar seus olhos, mas atenda, e um odor pesado de lama úmida, e volto o olhar para a porta que está aberta, e lembro que chovera à tardinha.
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Uma questão de sentimento”, “a matter of feeling”, diz o Doktor Duran Duran, e naquela noite eu ouvia Cocteau Twins, e aquela voz divinal da Liz Fraser, a faixa “Lorelei”, e o Henrique folheava ora os meus livros, ou os dele mesmo, emprestados a mim, ou as revistas do Oto, todas sobre Rock, Hard Rock, Heavy Metal, Doom, esses estilos angustiosos, essa futilidade do Oto de se preocupar com tantas bandas, pois quer ser músico famoso também, e a querer saber quem são os músicos da banda tal, e ficar marcando endereços de sites na internet, e endereços de outros fanáticos, JACK, O SOMBRIO, existencialismo dark, ouço My Dying Bride e Melacholic Metal, segue o endereço, ou SIDNEY VAN DRAKUL, vampirismo, ocultismo, decadência espiritual, seres da noite, fã de Moonspell, ou ainda, SUELI DOCE AGONA, letras mórbidas, filmes de terror, documentários sobre a morte, movimento gótico, fã de Dead Can Dance, Anathema, Lacrimosa; e ele folheia as revistas, aqueles caras de preto, com jaquetas e coturnos, e pose de brutais, com cabeleiras enormes, e o Henrique no maior tédio, em gestos mínimos, eu pergunto então, para quebrar o silêncio, “Então vai esperar?', “O mesmo você, não?”, “É, eu também”, ele sabe, mas é discreto, “Ele virá, não é?”, “Espero”, e eu deixo escapar um suspiro, “E se ela vier também?”, eis, aí, Carol, amor e ódio, “Pode ser. Mas ele disse que terminaria tudo”, não sei por que confesso isso assim, e o Henrique diz, abandonando as revistas, “Se ele disse é porque não pensa em fazer. Oto, quando quer, vai e faz. E se quisesse...”, ele numa pausa, “Já o teria feito, não é?”, e eu completo, “Ele só fala e fala, e nada!”, e o Henrique se aproxima, “Não é assunto meu, mas uma coisa eu digo: Oto não mentiu. Eu sei, pois ele não promete fidelidade a garota alguma. Você sempre soube”, e ali estava o tapa na cara, também quem mandou deixar o fantasma entrar, “Tá, eu sempre soube disso. E daí?”, “Ele nunca te prometeu nada. E assim, ao menos, não mentiu. Ele é cruel, não um cínico”, e um gato saltou no colo do Henrique, em arrepios, a lamber o focinho, “Les chats puissants et doux, orgueil de la maison” e eu entendo o sussurro sobre gatos meigos, em versos de Baudelaire, e deixo passar, e observo os gatos, agora reunidos, a aguardarem, em aparente fila, uma quota de carícias, e o Henrique adora os gatos, o andar felino sob o trono da majestade egípcia, “em amor você acredita?”, eu ouso perguntar, e ele olha-me atento, “Depende do que considera amor. Viver e se unir ao outro, sob a perspectiva da Eternidade, é Amor?”, “Ah, que seja 'eterno enquanto dure'”, eu até esboço um sorriso, e continuo, “Viver com alguém cinquenta anos, bodas de ouro, é isso Amor? Não será hábito, resignação?”, “Vejamos então! Pra você, Amor é paixão, chama. À primeira vista, hein?”, “Não, não é isso, Amor sem contato, sem conhecer? De cara é mais uma curiosidade, um fascínio, enchantment. Amor envolve uma convivência. Mas por toda a eternidade? É o cárcere das almas!”, e um gato cinzento derruba a cesta de maçãs e persegue as frutas que rolam, “Levadinhos! Filhos-da-puta!”, às vezes irritam, esses esfregares, esses olhares brilhantes, de leiais nada, profundezas do capricho!
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E enquanto o som viaja pelo quarto, “Light a candle...”, lembro o vulto do Henrique, diante da porta aberta, a encarar a noite úmida, “Acha que somos capazes de amar?”, eu pergunto, sob a sombra dele, que responde, sem se virar, “Se soubéssemos o que é amar. Você se confunde, notou? É encanto? Ou é convivência e apego? Tudo isso? Um desejo desviado da pronta satisfação? Amar o distante? Tudo delírio? Transar é amor? Amor é transar? Daí ser o tema universal, a pergunta milenar: o que é o inferno de amar? Não sei, mas deixo os indagares nos versos.”, eu deixo o silêncio, e ele se volta, estamos lado a lado na porta, lá encima estrelas e seus brilhos pálidos, “Mas, sabe?, o seu problema não é o amor. É o ressentimento.”, e me pega de surpresa, novamente, daí o meu silêncio inquebrado, “O ressentimento apodrece por dentro aquele que o nutre. Se sentíssemos ódio e, assim, explodíssemos o objeto de nossa ira! O caso é que tal não ocorre, e o outro continua a viver, a rir às nossas costas, e nós a envenenarmos a nós mesmos!”, “Explodir o outro? Não ia sobrar ninguém!” e ele estranha a minha explosão, e pensei na guerra, nos soldados que descarregam suas frustrações e medos sobre as pessoas indefesas, sobre uma mulher e uma criança, estas coisas horríveis de guerra, aquele horror na Iugoslávia, na África, ou as rebeliões nas cadeias, os massacres, mas não comentei, nada mencionei, tudo num flash!, e eu queria perguntar sobre quem havia magoado o Henrique, que mulher ousara tal infâmia, e hoje eu sei que não foi uma mulher, foi um homem, e acabei não perguntando, e deixo-me a olhar as estrelas, e o fascínio pelo brilho das estrelas, sempre ali no céu noturno, quando vemos, no déu diurno, quando fogem ao olhar, no esplendor do dia, as estrelas num símbolo de permanência, as “estrelas fixas” dos antigos sábios e estudiosos, nas torres, nos telescópios dos observatórios de suas majestades, anotando, noite adentro, as posições dos astros, e comento tudo isso com o Henrique,o mesmo que desabafei ao Stevam, lá encima do telhado, uns meses antes, e o Henrique, não exatamente para me magoar, mas em nome da Verdade, com a qual ele tem um pacto, “Elas não estão mais ali.”, e sei que me limito a olhar com uma decepção nauseante, “Não estão lá?! Como? Eu vejo...”, “Sim, você vê. Só a luz que elas irradiam. Só a luz ainda vemos.”, “Só a luz?”, “Lembre-se que estrelas são sóis, até maiores que o nosso mais próximo, mas estão à distâncias longínquas, e a luz move-se rápida, rapidíssima, mas não é instantânea. Estes sóis, os globos de fogo, estão à anos-luz daqui, assim a luz chega com anos de atraso. O que você vê é uma foto do passado. Talvez nem mais existam!”, e não consigo esconder minha frustração, esse cara conseguiu desencantar o universo!, então não há Permanência!, pois tudo se transforma, tudo morre, até as estrelas!, e começa a recitar Rainer Maria Rilke, que eu sei que o Stevam adora, “A estrela que sigo a brilhar, / eu creio, neste instante / há milênios é morta.
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Então folheio, arrasada, o “Espumas Flutuantes” do Castro Alves, “Sentir que a vida vai fugindo aos poucos / Como a luz, que desmaia no Ocidente...”, e o Henrique passeia pela sala, dedica carícias ao cortinado, e sabia que se a decoração andava em ordem, ali, era devido aos cuidados da dona Telma, a viúva, a abandonada, a mãe do Oto, com seus dedos senis e zelosos, a patrulhar o acumular da poeira, as nódoas nas cortinas, os arranhões nas almofadas, “Sônia, Sônia. Nome de heroína de romance.”, “De romance?”, “É. De um romance russo. Sim: Sônia. Um rapaz mata uma velha, e a irmã desta, e sofre uma crise de consciência, uma paranóia... Salva o pai de uma moça, uma família miserável, o homem vive bêbado, e a moça se prostitui. Aí o rapaz passa a visitar a moça, nada de malícia, sim? É um assassino e uma jovem prostituta, unidos na indignidade, diante de uma sílaba. No fim, ele confessa o crime e vai para a Sibéria, preso.”, “Eles ficam juntos? Digo, o assassino e a prostituta?”, “Sim, ela o acompanha, enquanto ele busca penitência.”, “Nossa, você já leu muito! Também, anda tão só! Lembro de um livro, um romance que li no colégio, no primeiro ano, sobre uma garota, que procura alguém pra brincar, vai para o jardim, onde um grupo de anões de pedra estão numa ciranda, e, por mais que ela deseje e tente, não abrem a ciranda para que ela entre. Poxa, mas é estar muito só!”
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Depois lembrei que era o “Ciranda de Pedra”, da Lygia Telles, quando vi na Biblioteca, hoje à noite!, mas o Henrique já dizia outra coisa, ali a pegar um livro ou outro, “Heathcliff. Ele é mais triste, do que mau.”, “Hã? Quem?”, “Heathcliff. Digo que ele é um cara triste, oprimido. Não era para ele ser mau... Sofreu muito.”, “Ah, deste romance da Emily Brontë? Não era muto cortês, o cara...”, “Mas foi abandonado pelos pais, nas ruas de uma cidade grande, um bom-coração o resgata, e o filho do fazendeiro o espanca, é privado da companhia de quem mais ama. Se a história dele fosse outra, não seria mau. Foram as circunstâncias. Algo de Ortega y Gasset, um pensador espanhol, e penso naquele menino, também abandonado, um órfão, em “Os Miseráveis”, que recolhia as balas dos revoltados, ele defendia as crianças menores, queria sempre ser útil...”, e às vezes parece que o Henrique fala mais para si mesmo, até esquece da gente, “Já leu este conto da Clarice Lispector? 'Tempestade de almas'? Perceba este trecho, 'Nada mais tenho a ver com a validez das coisas. Estou liberta ou perdida. Vou-lhe contar um segredo: a vida é mortal. Nós mantemos esse segredo em mutismo cada um diante de si mesmo porque convém, senão seria tornar cada instante mortal.”, e tudo nasce disso, sabe, o auto-engano, o afastar a mortalidade, evitar pensar no fim, enquanto para outros é uma obsessão, e um exemplo, o clássico, claro, é Hamlet.”, “Que é muito complicado.”, “Nem tanto. Mas o problema é a distância: de idioma e de tempo. E começamos a ler com certa impressão de dificuldade e acabamos não entendendo. Há muito medo, mas gerado pelo academicismo. Shakespeare é para os espíritos livres, e para o povo! O caso é que ele foi usurpado pelos acadêmicos, e virou assunto de 'scholar', 'lecteur'! Como se só se entendesse o Bardo quem for devidamente 'iniciado' pelos intelectuais, devidamente 'formados', digo 'formatados'.”
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E o Henrique deixa sua amargura vazar, não que queira, mas não pode evitar, enquanto eu folheio “Espumas Flutuantes”: “Mas ai! Que treva interna – a dúvida constante – Deixaste assoberbar-me em funda escuridão!...”, e não posso sufocar um lamento, “Sempre cercados por dúvidas sempre.”, e não devia me expor assim, mas preciso saber!, diante de toda essa fleuma que ele transpira!, “Nada sabemos daqui, e ainda indagamos coisa de lá, do nevoento Além!”, “Nevoento Além, Misty the Beyond. Hum. Tétrico. Já esboço um preconceito na pergunta. Nevoento? Para alguns é claro como o dia, fulgurante sob o trono do Altíssimo! A menos que caía no Orco, no Umbral, no Aqueronte, no Astral Inferior...”, “E isso não te surpreende, não te assusta?”, e não posso evitar o assombro, e ele, todo pensativo, “Sim, muito. É um muito questionar. E não alcançar resposta alguma.”, “Nenhuma? Ninguém voltou, jamais? Nenhum relato?”, “Ora, isso há! Muitos. Mas, confiáveis? E depende da religião de quem relata, e de quem ouve o relato. Pois a resposta depende de como se faz a pergunta. Os mortos sabem ou não? Sabem mais do que nós, ou perambulam cegos? Nada sabem? Dante insinua que os mortos conhecem o futuro e ignoram o presente. Da pitonisa de Delfos, passando pelos sábios da Lemúria, pela bruxa de Endor, até as mesas dançantes do Kardec, os fenômenos não param. Mas em quem há sanidade suficiente para compreendê-los acima de perspectivas em nós entranhadas desde o berço e a água benta, desde a circuncisão e o incenso?”, “Acho, ah!, quando penso, quando me pergunto sobe tudo isso, acho que vou enlouquecer!”, “Realmente. A maioria das pessoas não pensam, e se, por ventura, pressentirem tal incômodo, se apegam às filosofias, ideologias, doutrinas, dogmas. Eu comecei a me interessar realmente por teologia – pois antes eu seguia a tradição da família, com um catolicismo severo – depois de ouvir uma discussão: entre o meu pai e o meu tio – o meu tio Valmir, antes seminarista, depois se dizia ateu, e depois espírita – e o meu tio com aquelas perguntas sobre sobrevivência da consciência e vidas passadas e vidas futuras e eu estava perturbado, e o meu tio também, pois era um anto alcoólatra – e acabou morrendo de complicações do fígado, a religião não foi cachaça o suficiente, veja – e ele, o meu tio, alternava períodos de ceticismo com outros de puro espiritualismo, quando conversava, ele dizia, com os espíritos sob as árvores, e quando o meu tio morreu, calmamente em seu leito, deixou a sua biblioteca para o meu pai, que vivia discutindo religião com o irmão, sem nunca chegarem a uma conclusão, um acordo mínimo, e assim meu pai recebeu o baú de livros, e não gostou, severo com o 'lixo' que o irmão lia, 'coisas demoníacas' sobre espíritos e reencarnação,e na noite seguinte, ele, o meu pai, fez uma fogueira no quintal, com os livros do tio Valmir, e observei a tristeza – misturada com o senso de dever cumprido – do meu pai, ao atirar cada livro na fogueira, e, no dia seguinte, fui contemplar as cinzas, os restos de palavras, e penso que meu pai vai fazer o mesmo com os meus livros.”
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E com que tristeza o Henrique contou tudo! Ai, eu hoje 'tô horrível, só outra carreirinha mesmo, mas não vá cheirar numa noite o pó da semana toda, hein!, você não quer ir pro inferno, quer, Soninha?, mas nem o Duran Duran pra me animar, da próxima vez eu coloco um samba!, ah, não! “Ordinary World”!, e não esqueço aquela cara do Henrique, ah, isso arde o nariz!, não posso deixar sangrar, hein!, e aquela noite, na porta do bar, o do Santa Efigênia, o Henrique dizendo que o “gótico é um cristão que perdeu a fé, e manteve o sentimento de culpa, tendo perdido a esperança, e uma justificativa para o sofrer”, esqueceu de dizer que só sobrou a estética!, mas na casa do Oto, o Henrique continuava, após lembrar do tio, e da fogueira com os livros, aqueles espíritas, logosóficos, sei lá!, e ele dizia “A religião mata a religiosidade, a doutrina inibe o questionar. Você tem as respostas ants de esboçar as perguntas.”, e eu disse “Ora, é consolo antes de tudo. Evita o sofrer. Eu queria crer em algo. Mas é tão complicado, tantas voltas no caminho, e o destino se distancia tão logo nós chegamos”, “Tântalo.”, “Quem?”, “Tãntalo. E sua maldição. Ter fome e sede, e ter diante de si fartas macieiras e água pura de uma fonte, e não poder alcançar. Nunca.”, “Pô, cada suplício que esses antigos inventaram! Cruéis!”, “cruéis, realmente.”, o Henrique todo solene, “Um tem o fígado devorado por um abutre. Outro empurra uma rocha ladeira acima, para quando chegar lá, a rocha cair novamente. Um tal voa até às alturas do céu e a cera das asas derrete, e ele cai no mar. Outro enlouquece de remorosos e fura os próprios olhos. Outra enlouquece de ciúmes e mata os próprios filhos. Para lembrar alguns...”, “Mais violentos que os videogames do meu irmão!”, “E eu ainda não te emprestei a “Commedia” de Dante, “Nenhuma dor maior do que se recordar do tempo feliz na miséria”, e eu que lia Dante em minhas caminhadas no campo, para resguardar a minha sanidade, isto é, para evitar o maior distanciar entre o idealizado e o que sou obrigado a viver, e o tio Hélvio, marido da tia Antonieta, irmã do meu pai – veja que família! - tem um sítio lá em Betim, e eu andava até as colinas, e uma em especial me agradava, e eu a chamava de “A Colina de No More Tears”, e me deitava sob uma árvore enorme, de sombra imensa, a “Árvore do Mundo”, e ouvia “Serenades” do Anathema, e batizei a árvore de “Serenades”, mas também ouvia Joy Division, ao entardecer, e chamei o lugar de “campina de Ian”, e assim eu batizava o meu mundo, o novo mundo, onde descansei por quase um ano, uns dez meses, antes de ficar louco de vez, nas salas e corredores da faculdade, e lia toda a obra do italiano, que volta da Morada dos Mortos”, e eu ouvi tudo, como um sonho, e disse “Não me empreste! Deve ser horrível!”, “É um desfile de horrores, mas com uma poesia magistral!”, “E pessoas que viraram árvores!”, “Loucura, não?”, e o Henrique parece ironizar o meu horror, “Onde leu isso?”, “O Stevam me disse. Tem um RPG com esse tema...”, “Jogam com o tema do poema?”, “Sim. Jogam com tudo! Uns loucos. Quanto horror! Por isso vivemos, insistimos em viver: não sabemos se do outro lado é pior!”, “Vivemos por medo da morte.”, “Da morte eterna?”, “É. Deus esquecerá de ti.”, “Deus: a Memória Absoluta?”, “É.”
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E cai o silêncio, pesou mesmo. E eu ofereço água, ou bebidas, mas o Henrique se limita a fechar os olhos e recusar, e continua, em tom de monólogo, “A vida não tem sentido. Um acaso: e existimos. Só os fortes aceitam tal afirmação, e seguem em frente, e reafirmam o acaso que são! Aceitar o estar-vivo! Mas os fracos não aceitam o acaso, e precisam de um “Sentido” para assumirem suas vidas, seja religião, fé, dogma, ideologia, doutrina, psicoterapia, missão divina, pois sem tais justificativas, se sentem num “vácuo”, eles se matam, por falta de sentido. E às vezes não sei o que é pior: o desamparo diante da gratuidade, do acaso, onde seguimos à deriva, em livre desordem, um sem-sentido, OU a suspeita de um cosmos ordenado, criado, com uma intenção, havendo uma luta entre forças antagônicas, luz e trevas, bem e mal, onde há uma 'narrativa'. O que será mais indigesto? O Caos ou a Ordem? Para muitos o mundo é mau, então uns se afastam, vão para os conventos, monastérios; e outros querem interferir, pregar a Boa-Nova da Redenção, ou da revolução social, e outros querem aumentar o “mal” do mundo, a cultuarem o lado sombrio de si mesmo, e ainda outros se abstém de atuar, de serem cúmplices, e se matam, ou vivem de luto, ou em melancolia. Sim, e lembro do tio Valmir, quando dizia essas coisas, e mesmo quando se dizia 'ateu', não era materialista, e dizia 'Mesmo se somando todas as teorias materialistas, de Darwin, Marx, Nietzsche, Freud, Einstein, isso tudo, ainda não explica a somatória de forças, Há algo mais a interferir. Coisas sobrenaturais? Não sabemos. Até os espiritualistas, os religiosos, alegam que tudo é natural, isto é, obedece às leis físicas, e quando a religião recorre à ciência, então é porque ambas estão capegando', dizia o meu tio, e eu queria saber quem eram aqueles, cujos nomes ele citou, e encontrei os agnósticos e os gnósticos, digamos. Os primeiros pensam que o conhecimento é inacessível, as respostas são inalcançáveis, não se pode se afirmar nem negar. E os segundos, mais numerosos, acreditam no conhecimento, que há respostas para as velhas perguntas “Quem somos? De onde viemos? Para onde vamos?”, e o mundo material faz parte de um imenso mundo espiritual, e não importa que nome eles ostentem, julgam que só entre eles, com seus livros, seja Bíblia, Alcorão, Sutra, Evangelho, Doutrina, Teosofia, Revelação, está a Verdade e a Salvação.”, e o Henrique lembra de uma pausa, em carícias no gato preto de mancha branca na orelha esquerda, e lembra-se que eu existo, “E então eu li aqueles citados, e muitos outros. Eu entendo pouco Nietzsche, mas consigo senti-lo. E é diferente com Marx, o qual consigo entender, mas não sentir. Nietzsche fala de um libertação dionisíaca, e Marx, de uma mudança social. Mas ambos se mostraram incomprendidos – e sistemas sociais foram erguidos em nome deles, e sistemas cruéis, assassinos, e homens sem escrúpulos usaram os nomes dos pensadores, e mancharam, agora e para o futuro, toda a real compreensão do que disseram”, e o fôlego dele acabava, e eu li no livro de história que Mussolini citava Nietzsche, que o Oto lê muito, não sei se entende, sei lá, e que Lênin, e o tal Stálin, liam e diziam ser discípulos de Marx, e depois o Oto disse que o louco do Hitler lia e citava Nietzsche, e só aí, então, é que entendi o Henrique, pois naquela noite ele flava mais para si mesmo do que para mim, que não li nem um quinto dos livros que ele já leu, que o cara é rato de biblioteca, e eu sei só falta sair comendo papel, há há!, imagina que louco! o Henrique entrando numa biblioteca e agarrando os livros e rasgando as folhas e enfiando na boca e mastigando com os olhos assim esbugalhados, há há, muito louco! E falta o Henrique começar a cantarolar “God” do John Lennon, “I don't believe in Jesus. I don't believe in Hitler” ha ha! “I don't believe in Elvis!”, em Elvis, é demais! Eu não acredito em Elvis! rebolando na casa do Oto! em cima da mesa, em cima da pia da cozinha! há há! Elvis é demais!
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Ah, eu preciso de água, água no rosto, beber água, joga água no corpo, molhar os peitos, molhar as pernas, deixar a racha molhadinha, ai que falta faz um homem em cima da gente! e o Oto não estava em casa, aquele bode, encima de mim! Eu toda aberta, e ele... que falta faz um homem! Lá dentro... mas essa água fria vai me sossegar, tem muito tempo que não cheiro, por isso então... pensando no Oto... porque o Stevam nem pra armar aquele troço, todo frouxo, pode até ser um gênio, igual ao Henrique, mas são uns frouxos! Não dão conta de uma mulher! Enquanto a toupeira do Oto enraba quantas quiser! Ah, água divina!
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Mamãe diz que beber água da torneira faz mal! Que me importa! Pra essa velha tudo faz mal, tudo é horrível! “Não faça isso, não faça aquilo! Não e não!”, ela só sabe dizer não e não, a velha!, ai, mas ela não é velha, não diz isso, filha ingrata! não diz isso da sua mãe! Ai, que vontade de chorar! E eu me jogo na cama assim... e cadê a almofada, ninguém deve me ouvir chorar! Não vou dar espetáculo! “I just believe in me... the dream is over”, ah, só faltava o Henrique cantarolar essa, pois o Henrique não foi embora, ele está ali diante de mim!, oi, Henrique! Como você está pálido, o quê?, você acha que eu estou louca, que eu estou ficando louca, que eu estou morrendo?
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Se a vida é desventura, por que para nós dura?”, o Leopardi, que o Henrique leu! Um louco lendo outro louco! Eu só ando no meio de loucos! E eu me ajoelho aos pés do Henrique, aos pés da Sabedoria, e eu ouso pedir um conselho, “como é que a gente faz para se dar bem na vida?”, e o Henrique todo pensativo, calou a boca! Agora cheio de pausas, assim “Tem muitas respostas. Depende de para quem você perguntar. Uns vão dizer que é preciso agradar a todos, e outros que você não deve tentar agradar gregos e troianos, e outros que você deve fazer o que quiser e desprezar os demais, e outros ainda vão ressaltar a ambição e o egoísmo como mola-mestre, um trampolim para a ascensão social. Ainda uns vão procurar te distrair desse esforço e outros vão te sufocar antes que comece”, e depois e ele falando e falando e tudo se embaralha, às vezes parece que vejo um gato preto caindo da manga da camisa dele!, não é – o gato saindo da barriga dele! Um alien-oitavo-passageiro saía miando aos pulos do senhor umbigo dele! E ele dizia “As pessoas não gostam de extremos. Vivem na média, na mediana, desprezam os devotos e os libertinos. Querem viver tanto na devoção quanto na libertinagem. Não admiram nem Francisco de Assim nem Marquês de Sade, não são iguais ao Goetz, da peça do Sartre, que queria fazer o Mal totalmente, fazer o Bem totalmente. Estão em cima do muro. Servem aos dois senhores, não servindo a nenhum deles.” e dizia “A Bondade é não pisar no outro? Bondade é algo passivo: tipo não fazer o Mal, não prejudicar o próximo? Digamos que isso foi tão repetido, e não contestado, que gerações, mil gerações, creram nisso, o Bem é lucro, o Mal é prejuízo. Então rogar aos deuses é desculpar-se, insistir que não fez o mal. É negação, assim a Bondade é negação da maldade. Sou bom pois não sou mau. Assim está no Livro dos Mortos, aquele livro de orações egípcias, “Não provoquei sofrimento entre os homens. Não usei de força ou violência para com os próximos. Não... Não...” e ele recita e recita e eu vejo um gato na barriga dele! Um gato sabichão igual aqueles diante da sabedoria do Henrique, “Henrique, eu te contemplo!”, Henrique eu não te reconheço, e gatos brotam do seu corpo, do seu corpo de corvo, do seu corpo de abutre, “Henrique, estou horrorizada!”
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E o Henrique não percebia os gatos brotando de seus braços e de sua barriga, pois continua falando “No mundo em que vivemos, encontramos os que se adaptam e os que se excluem, uns são a favor, outros são do contra, uns encima, outros embaixo, uns excluídos horizontalmente, conscientes ou não, voluntariamente ou não, muitos excluídos verticalmente, curvados sob o peso da Máquina, ah, claro! Uns poucos, bem acima, que julgam mover e puxar os cordões, no comando das rédeas da Aberração” e olhava a porta, e o Oto não chegava, e não chegou! “Henrique! Henrique!” eu grito e grito, “Henrique! Henrique!” mas eu dizia “Henrique, você pode me ajudar. É tão conhecido. Tem amigos.” e eu preciso de um emprego, um homem decente, um homem sério, não esses loucos que me rodeiam! E o pai do Henrique é advogado, renomado advogado, e a família é tradicional: os Avelar, “Henrique, você pode me ajudar.”, “Não, Sônia. Não é comigo. Sou um marginal nesse mundo.”, “Você, um marginal?! E eu, então? O que eu sou então? Eu sou alguém? Diga!” e gritos inúteis, “Henrique, Henrique!” ele vai embora, cheio de tédio, farto de esperar o grogue do Oto, que chegou de madrugada e quis cair pra cima de mim e eu joguei ele no chão, onde ele acabou dormindo, é que eu não queria, hoje eu quero! Mas aquela noite, não! Cansei de ser humilhada! E quando eu vou pedir ajuda as pessoas se afastam, igual ao Sr. Thales Henrique Avelar, filho de advogado, fugindo para dentro da noite, o vulgo TH, o sempre insatisfeito, “Somos seres de insatisfação”, o sempre morto de tédio, “Agarrei uma gótica e morri de tédio”, quando eu vou pedir ajuda, ele se afasta, mergulha na escuridão, não espera, mesmo que eu grite “Henrique, Henrique!” e nenhum coro angélico, nem mesmo um único anjo! me responde!
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Notorius! Notorius!”, Uau! ei: não posso gritar! mas fodas! mas não grite, por favor! enfie esta almofada na boca! almofada? mas isso mais parece um polvo! uma barata gigantesca! Cruz-e-credo! Olhe a sua car no espelho: e nem ouse pular na cama e se você aumentar o som a S.W.A.T. vai invadir o quarto e te encher de porrada! E vão pisar na barata gigantesca! Ai, ela anda! ou é eu que estou chutando? “Notorius! Notorius!”, olhe-se no espelho:o seu nariz! Sangue! o seu nariz sangra, Soninha! E você vai morrer! Ora, deixe disso, nada de pânico! quer acordar a casa toda? quer levar tapa na cara? Olha a sua cara no espelho? cuidado para não pisar na barata, isto é, na almofada! não bagunça a roupa de cama, ai, preciso parar de dar ordens a mim mesma! Ai, acho que molhei a calcinha, deixa eu sentar... quem é aquela ali no espelho? O corpo tão jovem, a alma tão complicada? O corpo envelhece mas a alma se renova: a cada nova edição revista e ampliada, e o mundo ainda não acabou, velho bruxo, todo mundo dizia, o mundo acaba em agosto! E já estamos em setembro: primavera e o mundo ainda não acabou – esta pôrra de mundo não acaba nunca! e eu é que vou morrer? Ah, eu vou gritar! foi o pó: nunca cheirei tanto! A alma, o ser-consciente, não nasce pronta, mas vai se evoluindo, imagine se alma começasse pronta! e ela se desgastando e ficando velha, igual ao corpo! Que horror! “Tu és pó e ao pó voltarás!” e vou virar cinzas! será que vão mesmo me cremar? para quem mamãe vai doar as minhas roupas? e os meus livros? o que vai acontecer comigo? eu vou gritar!
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Oh, Henrique, por que sofremos tanto? você que é tão sábio devia saber! você que já leu tantos livros, bibliotecas e bibliotecas, e não sabem responder uma questão simples, mas alegam que existem muitas respostas, e “cada cabeça, uma sentença”, grande novidade! isso minha avó já dizia, e não precisa ficar um Henrique todo abutre deixando gatos em brotos na sua perna direita para me dizer isso, e eu dispenso! não adianta nada esses livros todos! Ai, acho que vou puxar a coberta, tá frio, de repente, e as pernas moles – deve ser o sono, mas e se for a morte? e eu conto pra minhã mãe sobre o pó na gaveta? ela me arranca a pele, igual aquele gato arranca a pele do Henrique e o Henrique é um esqueleto! Ha ha! um esqueleto! e o gato arranca a pele da barata gigante, gigantesca, ciclópica, ai, que sono! Mas que nada, não é sono – é como se fosse pancada na cabeça, e vou seguir com as folhas da praça, que caem e caem, e ninguém dá a mínima, não percebe! Um corpo desses, novinho, e vai mudando, enrugando, é horrível, é horrível ver os velhos, com suas doenças, peles medonhas, encurvados, se arrastando, e então é morrer jovem, die young! pra não aceitar, pra não ver a beleza murchar! antes ver a minha donzela morta, igual no poema do Henrique, “Junto a ela fenecem esmaecidos botões Lágrimas orvalhando as pétalas murchas Límpida beleza jovem a se perder Envolta no manto de sombrio sono”, ai, lembrei, lembrei! e eu tinha esquecido! mas por que agora? por que sou bonita, eu me acho bonita, os caras me olham com aquela cara de sacanagem, e sou bonita, talvez nunca seja tão bonita, talvez nunca mais tão bonita, talvez agora só me resta envelhecer – após o ápice, vem a queda, não? Cair, cair, isso, não consigo me erguer! Preciso de água – vou gritar! Mas quem vai me ajudar? E preciso de outro beijo, “another kiss”, antes de cair na inconsciência, esse cover do Doors, eu sei, um barco de cristal, tão frágil! vai zarpar do meu espelho, que é o meu ESPELHO, e quem é aquela toda pálida flutuando no espelho? sou eu mesma? Viagem! não sou eu, sou uma folha, e vou caindo caindo caindo sobre uns caras sombrios, todos de roupas pretas, e sou folhas, todas as folhas, e todas as flores, não importa se mortas se murchas se sem forma, caindo num bosque de galhos torcidos, e a lua cheia invade os meus sonhos – ou serão pesadelos?, e em cenários de outonos de cinema com trilha sonora de violinos gementes, e folhas caindo, e eu vou caindo, “and filled with pain”, isso!, dias tão brilhantes e cheios de dor! a gente aí jovem e cheia de dor, e devemos esperar mais dor e mais reumatismos? mas morrer jovem é apagar-se cedo, e “os bons morrem jovens”, mas não morro jovem, estou num barco de cristal, não! Sou uma chuva de pétalas roxas a cair sobre uns caras numa banda, e todos com a cara do Ian Curtis! Há há há ! todos iguaizinhos ao Ian Curtis com crise epiléptica, todo vestido de luto e no meio de um bosque de folhas secas, e vôos de borboletas, ou estou no barco de cristal – e quem vai comigo? Ó Ian Curtis, você está me acenando? nós vamos nos encontrar de novo, “We'll meet again”? e o morrer é findar uma navegação, hein? Poético isso! Eu preciso de água, “Oh diga-me onde jaz sua liberdade”, onde eu vou? para onde? Preciso de água! vou ficar esperando a morte chegar? “sentado esperando a morte chegar” e o Raulzito também está no barco de cristal? Não sou as folhas? que bóiam no mar do barquinho de cristal brilhante, onde me acenam! acenam pra mim! até Raíssa com seu vestido escarlate, o meu robe de Puta Sagrada, de Besta Escarlate, de Grande Meretriz, até a Fla, quem diria! com seus vestidos de decotes de seios à mostra e biquinhos rosados e arrepiados e só falta a boca cheia de dentes do Erik para morder e deixar um riozinho quente de cor rubra que goteja num barco de cristal sem rumo nem destino, e quando eu chegar lá eu envio lembranças e todos acenam quando eu estou tão perto e podem jogar um bote pra mim mas eu não passo de uma folha ou uma flor seca boiando pra lá e pra cá e quem vai me recolher para o barco de cristal onde o Oto suspende a âncora com toda aquela força onde o Stevam comanda o leme com toda aquela incerteza onde o Germano procura um jovem pescoço para sangrar onde o Henrique consulta mapas e mapas e acaba por queimar todos e chamas e chamas se alastram no cristal em mil reflexos e ainda bem que o barco é de cristal e não tem mais mapas de navegação e nada mais de mapas e sinais e rotas e caminhos e direções e cruzinhas de tesouros e tracinhos de recifes e o cristal em reflexos e reflexos e vai indo indo todos acenam Henrique! Henrique! não há mapa! é só amadurecer para logo apodrecer numa lívida caveira no espelho no cristal amadurecer e apodrecer na palidez no cristal e indo indo sem mapas sem sinais sem rumos eles sempre morrem indo indo indo e então as trevas

(fim do Capítulo VI)

romance
Insônia das Almas
Parte 2 de DESENCONTROS GRAFADOS
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escrito em jul e ago 2006
revisado em abr 2007
datilografado em jul 2007
digitado em dez 2007 e jan 2008
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by Leonardo de Magalhaens
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quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Início do cap. VI de INSÔNIA DAS ALMAS





Insônia das Almas

Capítulo VI

A chave gira na porta e um grito lembra que mamãe Clara Selma está é toda alerta, e descendo os degraus, com um roupão daqueles fora-de-moda, mas é um presente da vovó e não importa se vai completar uma década de uso, visto que Clara Selma não pôde jamais digerir a perda da mãe, a quem ela se julgou sempre muito dedicada, e por isso ficar assim acusando a sua filha Sônia Regina de ser uma “filha ingrata” e outras considerações nada elogiosas, com uma mágoa acariciada por ter sido abandonada por seu marido Marcos Dalmas, sem nunca reconhecer o quanto tem sido possessiva e dominadora.
- Minha filha! Você não sabe dos perigos que corre chegando da rua uma hora dessas! É quase meia-noite! E com esse monte de depravado neste mundo de merda!
Ela, a mamãe Clara Selma, diz, enquanto desce a escada, com seu roupão que vovó presenteou, e Sônia Regina, com seus dez anos, acariciava o roupão e puxava uns fiozinhos que se destacavam, um roupão numa cor indecisa entre o bege e o laranja, sabe-se lá!, e ela desce, os passos ecoam degrau a degrau, parede a parede, e de cabelos soltos, ela toda gestos, está cada vez pior, e nunca perdoou a filha por seu abandono do lar, quando, uma ano antes, Sônia morara três meses com a amiga Raíssa.
- Minha filha! Você não me ouve! Depois eu sou a mãe chata e que não sai do seu pé, mas estas mulheres atacadas por aí, depois acham os corpos das coitadas no meio do mato, meu Deus!, como há gente cruel neste mundo!, os corpos daquelas coitadas, todos cobertos de sangue, com roupas rasgadas, com marcas de violências horríveis, os Céus me defendam!, os homens são uns brutos! Uns covardes!
E quase começa a chorar, a praguejar, ela, a mamãe Clara Selma, que apanhava do marido, o novo marido, o respeitado senhor César Souza, empresário do ramo de tecidos, estamparias, peças têxteis, ela agora toda angustiada porque a filha chegara do colégio, almoçou calada, e saiu depois, e nem disse um “até logo!”, e muito menos o seu destino e propósito, “Meu deus, uma filha ingrata que nem diz para a pobre mãe aonde pretende ir! Será que eu mereço isso?”
Sônia Regina guardou a chave no bolso da calça jeans e encarou a mãe, “Estou cansada, muito cansada. Será que eu posso me deitar?”, e a mãe olhava, indignada, “Mas o que é isso? Você tem que me ouvir, Sônia! Ah, quando eu tinha dezoito anos, e olhe que você logo vai fazer dezenove!, eu dizia tudo à minha mãe, que Deus a tenha!, e não ficava pelos cantos, com cara de quem chegou de um velório, ó, como sou coitada, como eu sofro!”, e Sônia, ainda em pé, diante da mãe, repetiu, “Mãe, dá um tempo! Estou cansada! Quero dormir, tá bom?”
E Sônia passou pela cozinha e encontrou uma luzente maçã no escuro e subiu a escada, mastigando voraz, rumo ao seu quarto. Sei que ela quer me assustar, e ela sempre faz isso, e ela consegue!, pior ainda, e aquele cara me olhando na Biblioteca da Praça, eu fico lembrando do “O Colecionador”, do Fowles, e a coitada da Miranda, lá , prisioneira daquele demente, o cara pensa que é dono da mulher, os homens pensam que são donos das mulheres, e pagam uma mulher, uma mulher sem outro recurso que não abrir as pernas, e eles se aproveitam e fazem as coisas mais bizarras!, e o cara estava me seguindo?, porque eu acho que já vi o sujeito antes, e a pobre Miranda, prisioneira de um colecionador obcecado, o cara, e ela igual a uma borboleta, e eu não estou com “síndrome de perseguição”, NÃO ESTOU COM PÔRRA DE SÍNDROME NENHUMA, o cara estava apenas procurando a estante de Literatura, e eu também, e assim quase de cara um com o outro, e ele se assustou e por isso me encarou daquele jeito, não é nenhum depravado, como mamãe diz, ela toda apavorada com homens, que amanheceu com uma marca vermelha, em forma de dedo, na base da orelha esquerda, e eu nem insinuei, nem pensei que ela tivesse levado um bofetão cara afora, que o senhor César, o respeitado e tal, mas eu preciso parar com essa paranóia de achar que estou sendo seguida e vigiada, por alguém louco por mim, querendo me sequestrar, ai, que ridículo, Soninha, e ai, deixe eu tirar este coturno, a meia maldita, já desfiando, ai, descasquei a unha, vou passar um rosa discreto da próxima, mas para quem vou mostrar estas unhas de preto luzente?, e minha toalha caiu atrás da cama – de novo!, mas será que o cara estava me seguindo?

(arrepios)

Ai, mas será que gostamos de ser pisadas?, pois o cara fica no pé, eu desprezo, mais ou menos assim, o Stevam, todo na minha mão, mas o desgraçado do Oto acha que faz um favor só em olhar pra mim!, e quanto mais o filho-da-mãe me pisa, mais eu fico arrepiada se eu encontro o tipo na rua, num bar, bebendo e enfiando a mão sob a saia da Carol, e ela sorrindo, e a mão se demorando lá embaixo, a puta sorrindo, com aquela mão maldita alisando a xana dela, aquela puta, mas sorrindo, em êxtase divino, angélico, arrebatada em glória!, malditas meias que desfiam, e vou comprar daquelas vermelhas de cabaré, só pra escandalizar, believe it or no!, e o Stevam vai cair aos meus pés e beijar minhas pernas, talvez assim ele consiga, porque daquela vez, que negação!, mas minha toalha caiu atrás da cama, de novo!, e sujei a calcinha de novo!, esse sangue vazando, vou vazando, parece que vou sangrar todinha, e a pôrra do absorvente não absorve!, ora!, e preciso parar para lavar a mancha na calcinha, não!, jogo fora no lixo!, não vou ficar lavando isso, e também não vai sair, e que cólicas malditas aquelas no cemitério, não conseguia nem ler direito e se aparecesse alguém ia querer saber o motivo das caretas, onde está a toalha verde?, na segunda gaveta? Foi onde eu guardei o livro dois de “As Brumas de Avalon”, com a pobre Morgause e a forte Viviane, sua irmã, e tem também a fada Morgana, que mulheres eram aquelas!, não essas submissas, todas cadelas, ou essas estressadas, uns “cão-de-guarda”, do tipo da Raíssa, que vivia falando que teria mais tempo para o noivo, para as amigas, mas trabalha o dobro de antes e ganha só um pouco mais, “Cadê o tempo livre? A hora do lazer?”, ela vive em ironias, “Com tanto barzinho, shows, diversão à beça, um milhão de lugares e festas e eu fazendo hora extra, trabalhando até 14 horas por dia, imagine só!”, e é mesmo, tudo doido!, é estresse para uns, é desemprego para outros, e eu preciso de um emprego, e a Raíssa aí, sob a “ditadura do relógio”, não pode nem gozar direito, de olhos nas horas, e são quase meia-noite, será que eu ligo pro Stevam?, mas ele deve estar no RPG , com aquele louco do Elias, e uma hora dessas!, com velas acesas e fantasiados de vampiros, uns ridículos!, Raíssa é quem tem razão, “eu perco meu valioso tempo” com esses caras, o Morrissey é quem tem razão, e se eu fico aqui dentro, olhando as paredes, é o puro tédio, aí eu saio é pra passar raiva, e encontrar ninguém, só desprezo, então sair pra quê? Pra sentir ódio? Maldito sabonete! Precisava cair?, também vou tomar a ducha mais quente, isso aqui vai virar uma sauna!

A gente sai e a única pessoa, com quem conversa na noite, nada significa pra mim e nem sei o nome dele, será Filipe?, e quem era aquele rapaz lendo aquele romance alemão?, e quem aquela jovem no ônibus? E aquele casal que se beijava diante do Maletta? E aquele casal que tocava no barzinho?, e eu toda por aí, a me perguntar “A quem eu vou entregar tudo o que sou?”, e volto pra casa e nada mudou, a mesma mãe, o mesmo quarto, a mesma toalha caída atrás da cama, e minha meia-irmã dorme, e meu meio-irmão dorme, e eu preferiria o outro sabonete, mas já acabaram com ele, é que caiu água, aí derrete todo, é um saco!, e amanhã mais exercícios de química, que eu sei que mamãe vai ficar de olho em mim, e ai de mim se ligar a pôrra da TV!, ai, que vontade de chorar!, mas ...

Mas eu vou ficar bem quieta, assim, a água quente faz arder os olhos, entra nos ouvidos, quente, e escorre, ai, entre as minhas pernas, e quanto sangue, ai estou vazando!, mas é quente, e nunca transei debaixo do chuveiro, será que é bom?, o cara ensaboando o meu corpo, o meu peito, a mão massageando minhas coxas, minhas pernas, o dedo deslizando na minha racha, entrando de leve, e eu suspirando, mas agora está áspera, muito sangue, ai, detesto isso!, e será que esse cara, debaixo do chuveiro, é o Oto ou o Stevam, ai, será o Oto, sim, o Stevam é muito sério, sei lá, ia ficar pensando que eu sou depravada, enquanto o Oto entrou em mim e eu apoiada numa árvore do quintal da casa dele e ele dentro de mim, e folhas caíam, e ele levantou o meu vestido e desceu a calcinha e entrou e nem ligava, só abriu o zíper, e dentro de mim, mas vai o Stevam fazer isso!, há há!, e eu nem contei isso pra Raíssa, imagine se eu ia contar!, ela com papo de feminista e que mulher não pode ser humilhada!, mas ele queria, me encostou na árvore, me amassou toda, e eu queria, e ele entrou, nem ligava, em pleno quintal!, e isso de feminismo é a mulher ser inimiga do homem?, aí eu estou fora!, desde quando eu fico escandalizada com uma cantada?, o que não suporto é aquele olhar de safadezas, o cara pensando que a gente faz o que ele viu no filme pornô, onde viram a mulher de cabeça pra baixo, e abrem a racha dela e entram sem dó nem piedade ou invadem o traseiro da coitada!, que faz tudo isso porque o cachê, a grana, é irresistível!, e deixam os caras cuspirem nas rachas delas, pois entram rasgando, e elas nem molhadas ficam, as mulheres e suas xanas secas e haja lubrificante e eu não faria isso nunca!

Ah, se fazer sexo não fosse tão grotesco! Podia a gente tocar no corpo do outro e sair uma luz! Ou um gozo de corpos fundidos numa névoa prateada! Sei lá! Ah, que viagem! Ah, Soninha! Mas não é? E se a gente fantasia é porque quer coisa diferente, do jeito que é não satisfaz, humilha um, deixa o outro neurado! O lance não satisfaz então a gente fantasia mesmo – é uma forma de fuga!
A ducha mais quente do Hemisfério Sul!, e abaixo da linha do Equador, que corta a América do Sul, a África, a Oceânia, a Indonésia, e que mais?, e acho que estou estudando demais!, e a Raíssa quer que eu apareça na festa da irmã dela, a Paola, no domingo, e quem disse que mamãe vai deixar?, e eu digo, “A vida sem festas é um longo caminho sem pousadas”, e a Raíssa quer saber onde eu vi isso, e eu digo que se trata de um grego louco, e Paola vai fazer quinze anos! Nossa! E a minha festa de quinze anos, e o beijo do Hector, e aquela fuga, ah, meu deus!, que fuga o quê!, e o corpo branquelo da Helena, e muito bonito, e eu beliscando os peitinhos dela, ela toda arrepiada, e nem tinha cabelos lá embaixo, com aquela racha toda exposta, e quando o sabão escorria, ficava inchada, estufada até, uma racha linda a dela, mas por que lembro dessas coisas?, ah, Soninha, você está muito safada hoje! Não, não! É que estou no fundo do poço, e lembro de sacanagem só pra ver se me alegro um pouco, mas confesso que nem isso, viu?, e mais louca que a Helena, só a Carol, a vadia!

Por que se lembrar da Carol? Por que – se ela era aquela pedra no seu sapato?! Não foi a Carol quem acabou morando com o Oto? Que jogou e tramou até conseguir? As meninas de mãos dadas! Na praça! Uma ruiva e gorda. Uma morena e magrinha. A ruiva em exigências. Lembro agora. Aí pensei na Carol. Nunca liguei para a Carol, verdade! Ela queria ver a cor da minha calcinha? Acho que foi na festa dos “metal”, no casarão da Contorno. No banheiro. Disse que eu devia retocar o batom, juntinho assim de mim. Um cheiro forte de mulher. Os dedos na minha boca, Queria que eu mordesse? Quase mordi. E ajeitei a saia – ela viu a calcinha - “Que cor?”, e deslizou o dedo entre o elástico e a minha pele – em arrepios! Ela percebia? Riu lá com ela. Eu, presa fácil. Desconheço. Queria deslizar a mão toda – o peito arfando – mão na minha bunda! A Carol! Como eu saí dessa? Não fiz gesto brusco. Aceitei – até gostei. Como será beijar uma mulher? Namorar outra menina? Ah, aquela cena da orgia no castelo, do filme com a Nicole, onde as mulheres se beijam e se esfregam, num ritual, coisa assim, num sonho de luxúrias!

E a Carol com a mão na minha, a chupar no meio das minhas pernas! Mais carinhosa que homem – sabe onde tocar, como fazer. Sem pressa. Devagar. Sem aquela pressa de homem, logo dentro, com fúria e pressão, e a gente nem pronta, eles passam cuspe, os nojentos! Não, mulher é mais manhosa – de enfiar a língua lá dentro! Ah, a cara da Carol no espelho – que máscara! Juro por minha alma! Ela queira era me humilhar! Eu precisava reagir – foi por isso aquele beliscar nos peitos dela, as pontinhas estufadas no corpete. Foi só um apertão, e ela gostou. Os peitos logo de fora. Carol tem belas mamas – que o Oto deve chupar toda noite. De boa! Chupar e chupar, lamber e morder. O bebezão! E a Carol sentada no colo do Oto, a bunda grande no pau do Oto! Ah, e eu aqui sozinha! Nem um vírus me quer – de olhar de homem: aquele cara na Biblioteca – me seguindo? O guitarrista da banda – me comendo com os olhos? Esses safados! Deviam se aliviar com as, ah, pobres, pobres mulheres vultos noturnos de pernas abertas! Não, não desejo isso pra ninguém! Nem pra inimigo! E eu tenho inimigo? Ia quase a dizer “Carol”, mas ela é minha inimiga? Desconsidera. É irmã. É vítima. Sofremos igual – eu na ausência de um corpo, e ela sob o peso de um corpo. Mas e as putas? De pernas abertas, dando o de dentro delas, para quem pagar a conta, a hora do programa? Nem do corpo são donas? Ou ao contrário: nada têm além do corpo? Um corpo: única fonte de renda. Ah, tenho é dó! E eu mandar os carinhas para um bordel, a zona da Guaicurus, ah, de dar nojo, elas são vítimas, de todos e de si mesmas, alugam os corpos com promessas de prazeres, a quem enganam mais?

E vamos à toalha verde, que nem é tão felpuda quanto a rosa, agora toda empoeirada, de novo!, e festas e festas, como passar sem as festas, mas o Stevam é a pior companhia numa festa, gente, que deprê, o cara!, e o Henrique então!, nem vou comentar!, e foi quando comecei a sair com o Stevam, nem tinha aparecido na casa dele, pois quando eu fui a gente subiu ao telhado, e depois a mãe dele,a dona Nádia, me atendeu, e depois, o quê?, ora! depois foi aquele vacilo na biblioteca, não?, mas na festa, que era o máximo, porque ele estava na rede comigo, na varanda e me beijava, e a gente tinha saído de um ensaio, e o Oto 'tava fora, e o Erik apareceu e também o Henrique, que chegara com o Erik, e depois chegou o Víctor, e claro que todo grogue, quase caindo, e anoiteceu e desceu todo mundo pra casa do Toni, porque o estúdio era alugado, a família do Víctor não suportava mais, e ele saiu de casa, e o Oto nem queria saber, e descemos todos, pros lados da ferrovia e o Toni mora ali na Niquelina e era noite escura, nada de lua, só escuridão, e eu de mãos dadas com o Stevam e depois o Henrique em conversa com o Erik, e depois o Víctor e o Toni, e uma garota que o Toni encontrou, uma amiga, ele dizia, sei lá, ela é até bonita, e o Víctor blasfemando contra as igrejas, e o Erik com suas imprecações, e o Henrique, na dele, e o Víctor dizendo que os góticos são inertes quanto a “protestarem contra os cristãos de merda” e o Henrique, num tom de voz monótono e frio, gravado no mármore, dizia, “Os góticos são materialistas”, e eu não entendi, por que?, e fiquei irritada e não me segurei: joguei um olhar hostil, e ele, se percebeu, não sei, ficou indiferente, e eu pensando, Será assim, materialistas, capitalistas, consumistas?

Passamos as trevas da ferrovia e seguimos rumo a Niquelina, e agora o Henrique e o Erik à nossa frente, e depois o Víctor e o casalzinho Toni e Alice, lembrei o nome dela!, e chegamos ao casarão do Toni e logo ele arrumou vinho e ligou o som, e fiquei na rede, abraçada ao Stevam, e circulava vodka e um 'baseado' e o Víctor voltou com mais cachaça e chegou dois amigos do Toni, todos com poses de brutais, e o Henrique ficou à entrada, conversando com um deles, enquanto o outro aproximou-se do Erik, e a rede balançava, e eu abraçava o Stevam e olhava o Henrique, que se aproxima da luz da varanda e começa a escrever num caderno, o Stevam diz que é letra de música que estavam ensaiando, e o Henrique vai rabiscando o esboço de letra, e entrega o caderno, e o Stevam comenta e elogia, e eu quero ver também, estava assim, lembro até hoje, “Vertendo lágrimas de sangue / Sugando o soro – o fluido vital / Na boca um gosto amargo / até o vórtice das entranhas / Uma tendência ao abismo / engolfado nas trevas” e observei o Henrique, o autor de tão densas, sombrias, depressivas linhas, ele que não fuma, não bebe, ou raramente bebe, e só bebe vinho, que eu saiba, não se agita, sempre alheio, mas é só a casca, ele é o mais sensível ali, acima de todos, e eu e o Stevam, abraçados na rede, lendo a sua poesia macabra, e o Víctor caindo de bêbado junto ao som, e Alice bebendo, comentando, de olho no Henrique, “Ele solta um palavrão, uma ofensa mesmo, mas com a mesma entonação de uma citação em latim!”, e logo o Toni e um amigo, o que conversava com o Henrique sobre justamente letras de músicas, entre um copo e outro de 'batida', e o Henrique alheio, exceto um momento, quando Toni ou Erik, sei lá, ironizam uma música nova de uma banda, não sei mais qual, e o Henrique defnde os músicos, e o compositor tem o direito de fazer o que quiser, e que se não gostam, que mudem de disco. E o Víctor ironiza, “Liga não, ele é assim mesmo! Sempre do contra!”, e o Toni parou, olhou bem nos olhos do Henrique, e disse “É que é um cara sério, logo vi! É que hoje eu já 'tô bêbado, mas um dia, nós vamos conversar numa boa”, e o Henrique foi gentil, e não sei se algum dia, ou noite, eles conversaram, afinal.

Henrique que fez de tudo para salvar a banda, porque o Víctor, agora só bem mesmo, não podia fazer é mais nada, e o Oto não leva, nem nunca levou, o Víctor à sério, e na verdade que diálogo é possível entre o arrogante e o zombador?, e assim só mesmo o Henrique para mediar, ousar uma ponte, e eu ouvi, atrás da porta, o Henrique, todo calma, “Você vacilou com o Víctor. O cara oferecia um local, e você só despreza, com essa sua rispidez”, e o Oto, todo cínico, “Ó, eu magoei os sentimentos dele!”, “Não seja irônico. Não é isso. Foi agressivo. O cara ficou ofendido. Poderia ser mais delicado...”, “Quer que agora eu comece a distribuir gentilezas? E é você quem vai me ensinar regras de etiqueta?”,Custa assumir a grosseria? Basta propor outro negócio. Não precisa ofender.”, mas o Oto não quis conversa e a banda acabou, e o Stevam arrastou o Erik, e o Oto ficou sozinho, e o Henrique ainda veio visitar o Oto, mas só encontrou a mim e ficamos conversando, a esperar, e o que eu poderia esperar, a banda era um sonho, e “the dream is over”! O sonho já era!

E onde deixei os cotonetes?, acho que esta aqui é mais macia, ou aquela azul?, acho que vou ficar nua, cadê o meu celular?, quase meia-noite, acaba-se o vinte e quatro de setembro, esta noite de lua mórbida e ventos gementes, “Alô, desculpe, dona Nádia, desculpe, Nádia, mas o Stevam está? Não? Saiu com o Elias? Ah, sei... Pro RPG... Sei... Ele não levou o celular... Tá bom então... Obrigada, viu? Tchau!”, e estou aqui deitada e nua e de calcinha bege e ninguém em casa, “nobody home”, na casa de quem eu ligo, porque aqui está todo mundo e ressonando, zzzzzzzzz, ou se amando, loveluvlove, se o senhor César estiver em cima e dentro da senhora Clara Selma, ai, que gosto ela tem, hein!, eu que nunca deiei ele chegar perto de mim!, e o meu pai é muito mais bonito, não é?, mas fazer o quê?, meu pai não suportou, e eu é que vou suportar?, a mãe do Stevam é que é um amor de mãe, nem gosta que a gente seja formal, e diga “dona Nádia”, “Dona, o quê, menina!”, e eu lia os livros do seu marido, o jornalista, deixados sobre a mesinha da sala, enquanto o Stevam não chegava, e ele não chegou, e ficou tarde, e fui embora, mas eu lia, folheava, diante dela, e ela corrigindo umas provas, e descobri que ela é professora de francês, e ela anotava, copiava, reescrevia, folheava um imenso dicionário Larousse, e ainda conversava comigo, em comentários sobre os gatos, igual a mãe da Helena e do heleno, a tanto tempo atrás!, a Joana, toda simpática, mas a comentar sobre os cachorrinhos no quintal, e heleno preparava misto-quente e falavam que o Hector era o menino mais “certinho” que conheciam e ele fazia uma dessas, “fugir assim”, mas eu disse que eu é que queria fugir de casa, e tal, mas com a Nádia, eu não falava do Stevam, mas dos gatos que pulavam no sofá, ou derrubavam os anjinhos na mesinha, e era estranho imaginar o passado hippie daquela senhora ali, ainda que se vestisse com vestidos longos, e ainda queimasse um incenso, saudosa dos tempos esotéricos, quando nos anos 60, em passeatas de estudantes, conheceu o socialista Olavo Lucena, do Partidão, e passaram uma noitada na antiga FAFICH, com muita viola e 'baseado', e Nádia é dessas que conversam francamente, nada dessas mães reprimidas que ficam despejando amargura vida afora, e fiquei imaginando isso, a mística, a roupa cigana, naturalismo wicca, e Stevam dizia que ela fazia horóscopo e jogava tarot, rodeada de anjos e duendes, em meditações, em mantras indianos, tudo isso ao lado de um jornalista, socialista, ateu convicto, materialista!

E logo o pai do Stevam chegou, sério, todo evasivo, e foi para o escritório, aliás, a biblioteca, que eu só conheceria, e como!, na próxima visita, e notei nos olhos da Nádia uma frustração, uma dor íntima com a amargura do marido, que quando ela o conheceu, o Olavo, era muito gentil, muito animado, queria mudar o mundo, fazer a “revolução”, até mexeu com política, nos anos 80, ao lado dos Trabalhistas, e aí nada mudou, veio a amargura, e o Stevam assistia brigas ridículas e se uniu à uns rapazes estranhos, todos sombrios, gente sem calor humano, mesmo meio místico, o Stevam, ela achava, e é o Alfonso quem ficou racional igual ao pai, e quer trabalhar na área de comunicação, fazer jornalismo, e literatura, “E espero que ele não acabe frustrado igual ao Olavo”, e Nádia voltava aos textos, e o Stevam não chegava e os gatos não paravam, e derramavam o pires com leite ou destruíam uma estopa velha e o Sr. Olavo foi à cozinha requentar um café e nem trocou uma palavrinha com a esposa, e eu fiquei sem jeito, e fui embora.

Perdi o sono, só pode ser!, lá encima o teto todo branco, uma escuridão me agasalhando, está quente e estou nua e não fecho os olhos! Talvez um som relaxante, mas com volume bem baixo, senão a casa cai!, e cadê o botão, ah, este abajur é uma droga mesmo!, cadê o meu CD do Theatre Of Tragedy, o “Velvet Darkness”? Inclusive um presente do Stevam!, tem dois meses que eu ganhei e já está arranhado de tanto eu ouvir, e estes violinos são lindos, e a voz dela é encantadora, e a voz dele é um horror! Nesse escuro a beleza tão áspera e golpeante! Como é que eu consigo ouvir isso?, mas tudo me invade, ou eu deixo me invadir e o que eu posso fazer?, e claro que vou me lembrar da outra visita ao Stevam, pois quando cheguei ele ouvia o álbum, este!, que eu conhecia, pois a Carol ouvia sempre, e ela até queria fazer o vocal feminino na banda, mas eu sei inglês, e ela não sabe, e aí pronto!, sem olhares de ódio, ou algo assim, sempre numa boa, o que não significa que ela seja minha amiga, e o Stevam me mostrou o CD e o encarte, e “Quer de presente?” e não recusei, afinal é um presente e o irmão dele chegou, bateu na porta, colocou a cabeça pra dentro do quarto, “Ei, Steve, o-quê-cê-tá-fazendo?”, ele, o Alfonso, é dois anos mais moço e é um poço de ironia, ainda que seríssimo, no geral, ótimo estudante, segundo dizia o Stevam, que o respeitava, pois o mais moço era o mais decidido, mais engajado, “Vamos fazer e tal!”, e o Stevam fazia!, mas é na fineza da ironia do Alfonso é que está o seu charme, e o Stevam sabia, e nada tinha daqueles irmãos mais velhos que se julgam os sabidos, os experientes, os veteranos, era o oposto: é até possível o Alfonso dar “lição de moral” ao Stevam!, coisa que nunca presenciei, mas não duvido nada!, onde está o álbum do Anathema, o “Serenades” é o mais deprê, mas é sonífero para mim, com cantoras angelicais e guturais macabros das criptas dos pesadelos! E o Stevam também ouvia no mais altissonante som!, mas o Stevam a atraiu por seu olhar de “preciso-de-vossa-piedade” e não tinha nada da arrogância do Oto ou a frieza do Henrique, pois o Stevam nutria o sonho maluco de entender as mulheres!

Esse é o problema do Stevam: o de querer entender as mulheres! De ver o mundo a partir da perspectiva das mulheres, e por isso ele é tão fraco, e por isso ele falhou aquela noite, quando o irmão saiu, e não havia mais ninguém, pois o Sr. Olavo Lucena levara a esposa Nádia Cristina Lucena ao teatro, pois tratava-se de uma peça de Bertolt Brecht, e logo imperdível, e era noite de domingo e o silêncio, pois o CD do Theatre tinha rodado e o Stevam a convidou para conhecer a casa, e saímos da reclusão do claustro do quarto onde ele se exilava dentro da própria casa, igual eu fazia na minha, e o Stevam soltava aquela fumaça toda, e eu apontava o cigarro, “Stevam, você está morrendo!”, e ele se voltava, todo magro, todo inofensivo, “E quem não está?” e continuava o fumacê, e o quarto antes até parecia uma sauna, igual a que deixei no banheiro, tudo branco, um fog londrino!, e imaginei uma neblina, e, branco por branco, o que encontro?, uma cheiradinha, por que não?, só uma unha, ora, Soninha!, uma unha só, isso: uma linha fina, e o Stevam é que não dispensa, até tenho medo dele, e aquela mania de pentear a cabeleira e deixa ros fios arrebentados, ajuntados, em algum lugar, e o irmão podia gritar, “Não é que fui atender ao telefone e em cima do aparelho aquele monte de cabelo embaraçado!”

Ah, a frustração amorosa, em “Lovelorn Rhapsody”!, e naquela noite Stevam comentava o filme “O Corvo” (The Crow), onde Eric Draven presencia o estupro e a morte de sua namorada Dana Shelley e é jogado pela janela, de um sexto andar, e sua última sensação, os fragmentos de vidro cortando seu corpo, e no mundo numa superfície aquosa, e num tronco de árvore, uma ponte sobre o nada, ele reencontra Dana e um corvo, “um corvo pode trazer a alma de volta”, e Dana diz ao amado que volte afim de “endireitar as coisas”, e o Stevam vai falando, e mostraa a sala, e na estante a fita com uma cena do filme, um corvo de asas abertas, e então Eric Draven, na noite de Halloween, volta à terra, isso após um ano, e vai vingar-se, é um gótico, e tem uma banda, e anda de luto, todo maquilado, e suga as memórias das pessoas, e eu dizia que preferia “Ghost – o outro lado da vida”, por ser mais romântico, mas acho que ele ficou decepcionado, e ele lembrou que Eric, em momentos difíceis, é consolado pelo espírito de Dana, entrando em sintonia com o Além, e aí ele abriu a porta da bilbioteca e avançamos na atmosfera de ar seco cheirando à papel antiquíssimo.

Será que vou ouvir o álbum todo?, é tão triste, tão mórbido, só animo se experimentar mais do branco, que nem lembrava mais, e esse vocal feminino de “J'ai fait une promesse” é m sonho, antes do funeral de “They (will always) die”, e aí o Stevam abriu a porta da bilbioteca e aquele ar de papel velho, e havia uma pilha de discos, vinis mesmo – as bolachas! Que o pai dele nem ouvia mais, The Beatles, Rolling Stones, The Who, Greatful Dead, Joan Boaz, o clássico Bob Dylan, o nacional Mutantes, e outros, que nem me lembro e o Stevam gostava de alguns, tipo Velvet Underground ou Frank Zappa ou Nick Cave, e o Stevam lembrando um sonho, que ele estava atrás de uma parede, onde, através de um furo, ele observa uma jovem, muito charmosa, deliciando-com a leitura de um denso in-folio, e que ela, antes de sair do quarto, coloca o livro sobre o criado-mudo e ele pôde ler “Salomé – Oscar Wilde”, e eu não entendi, e ele apontou o livro na estante, “e foi assim que comecei a frequentar a biblioteca do meu pai, e descobri qe ele escreve, ou escrevia, olhe os originais, muitos poemas, é um literato, quem diria!” e todo orgulhoso mostrava uma pilha de folhas já amareladas, com poemas datadas de 1975, 1980, 1986, e coisas entulhada que, impressa, daria uns três livros, e o Stevam entendia a frustração do pai, que nunca passara de jornalista, quando abrigava dentro de si um poeta, “preciso mostrar tudo isso ao TH!”, o Stevam se empolgava e soltava nuvens de fumo, e eu contei um sonho, onde se via uma procissão de mortos, onde eu estava morta e saía a procura do meu corpo, e acordei toda arrepiada, e os olhos dele bem abertos, em silêncio, e estende um volume de poesia simbolista francesa, e eu vi na estante uma coleção, uns sete livros do autor MARCEL PROUST e era “Em Busca do Tempo Perdido”, e folheei o primeiro e eis o protagonista acordando, achei o máximo e por isso fui a Biblioteca Pública procurar o livro, pois não ousava pedir emprestado aquele ali, coisa sagrada, e só hoje terminei de ler a tumultuada e irônica paixão de Swann, e naquela noite, diante da mesa e a máquina de escrever e das pilhas de papéis, eu desejei o Stevam.

Ai, “no more war!”, seria tão fácil se não houvessem disputas e guerras, se pudéssemos nos entender, sem traumas e agressões! E o mundo seria menos estressado, e eu sei que desejei o Stevam, e não sei se foi o lugar, o silêncio, o romântico diálogo meio aos livros, as pilhas de narrativas e beijos em papel que nos envolvia, ali na segunda estante á direita, a “Anna Karenina”, de Tolstói, e acima da minha cabeça, “Madame Bovary”, de Flaubert, e do outro lado, também em cima, “Helena” e “Dom Casmurro” de Machado de Assis, e ainda havia um volume de “Eugenie Grandet”, de Balzac, e um volume de “O Idiota” de Dostoiévski, e outros, muitos outros, que o pai dele é fanático por literatura, nisso influenciou os filhos, que ambos vivem lendo, e eu sei que eu desejei o Stevam, e o Stevam desejava o mesmo e ele se inclinou sobre mim e me prensou contra a estante, e eu soltei um gemido, e esbocei uma resistência, coisa feminina e teatral...!

E o problema foi que ele não entendeu assim, ou ao contrário, tentou me entender, não queria de forma alguma me forçar, ou me constranger, e se preocupou tanto comigo, e me respeitou tanto, que falhou!, pois eu me esfreguei e o apertei e fiz ele se sentar na cadeira do pai e sentei em seu colo e beijei toda desesperada e ele não tão empolgado como eu esperava, pois ele parecia temeroso quanto da chegada do pai!, não sei o que aconteceu, mas ele não respondia, nem quando exibi os meus peitos palpitantes, e ele beijou e quase mordeu, e quase mordeu a minha língua, mas o pau não subia, só inchava e inchava, ms não se decidia e ele já estava tenso e eu tirei a minha blusa e ele lambeu os meus peitos e beijou o meu pescoço, mas eu queria mais ação e puxei a calça dele e abri o zíper e puxei pra fora e tal, mas não muito animado, diga-se, e apertava e tal, e o troço inchava mas não subia de todo e não entraria em mim e ficamos em mudo desespero e ele olhando a porta, temendo que esta se abrisse de súbito e não transamos e ele cabisbaixo me convidou para um lanche.

Lanchamos, constrangidos, e não voltei a visitar o Stevam e depois o Oto me agarrou, me jogando contra a árvore e foi uma viagem! E o Oto nem se importava, ele poderia transar em plena rua, sob um poste apagado, ou no mictório da rodoviária, enquanto o Stevam não se atrevia a transar dentro da própria casa, vazia, no escritório empoeirado do pai, o literato frustrado, e o que eu posso pensar de tudo isso?, que o Stevam me respeita, porque me ama, ainda que um fraco, um hesitante,e que o Oto nada sente por mim além de tesão e por isso ele transa comigo onde quer?, e nada tenho contra o Stevam, mas ele é que me evita, ele é que me encontra junto ao Oto e abaixa os olho, cheio de vergonha, mas eu nunca disse nada, nunca comentei, nunca acusei, fico na minha, não o procuro, e acho que se arrependeu, que me julga uma vagabunda qualquer, dessas que ficam por aí sentadas no colo dos caras nas portas de bar ou atacando os rapazinhos na reclusão solene de uma biblioteca.




continua...







LdeM



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domingo, 24 de outubro de 2010

Insônia das Almas - Capítulo V





Insônia das Almas

Capítulo V

Aqueles jovens que se perdem entre veículos e buzinas, afugentados, quando o frio desce sobre as palmeiras e os ipês floridos, e a escadaria da Secretaria da Fazenda não é mais um abrigo acolhedor, e transitam entre sonhos de eras perdidas, com as mentes cheias de lendas nórdicas e canções medievais, em cartas brilhantes com silhuetas de castelos enevoados e chamas rubras de dragões estilizados.

Ocupam o coreto e jogam suas cartas com desenhos, paisagens de sonhos, e ostentam suas vestes de cavaleiros medievais ou de vampiros aristocratas, em desfiles entre as palmeiras, na sombra das alamedas, no brilho difuso das fontes borbulhantes, enquanto pálidos, desprezando o sol e a luz, vivem a fantasia de uma noite eterna.

Divertiam-se em bosques fechados com bruxas sem face, num terror difuso onde o que apavora é o que não podemos ver, um terror de sala de cinema, arrepios em poltronas confortáveis, com bruxinhos voadores e vampiros com maquilagem e guiando carro-esporte, ou lobisomem com cara de vocalista de banda de rock pesado, onde o desejo de tortura psíquica é fetiche e explica os orgasmos de terror e os sucessos de bilheterias das salas de cinema dos shoppings. Terror “verdade” desde que bem editado e com trilha sonora de TV musical. Arrepios com acompanhamento de pipoca e coca-cola. E gritinhos quando um garotinho diz que vê pessoas mortas.

Sônia Regina volta, lentamente, ao longo do muro e das grades do Palácio do Governo, observando, do outro lado da Avenida, os vultos sobreviventes de antiga arquitetura. Florados alpendres, colunatas retorcidas, fachada em leve tom rosado, vitimada pela fuligem na plena modernidade dos carros. Sônia, que não suporta as inovações arquitetônicas, acha ridículas as curvas daquele edifício ali do Niemeyer, Nada contra o criador, mas, convenhamos, não posso deixar de admirar os belos traços de outrora.

Já não encontrará conhecidos na Praça, pois os jovens fazem o trajeto contrário, a descerrem para a Savassi. Os poucos, que permanecem no coreto, são neófitos. Exibem bandas novas, em suas camisetas escuras, ostentam novos saberes, com seus quinze, dezesseis anos, e pouco dispostos a compartilhar.

Não exatamente a sentir-se bem, ali entre os canteiros, mas Sônia deixa-se ficar, a adiar o retorno para a sua distante casa, para a sua íntima cama, para o seu descanso, abraçada a si mesma. Cada jovem que atravessa o seu caminho é um olhar de brilho desconhecido, e cada novo desconhecimento revela o abismo de uma solidão. E se casais passam, em amoroso abraço, não é inveja ou desconforto, o que ela sente alfinetar sob as suas unhas negras, mas tão-somente uma regurgitada tristeza.

Tristeza que se derrama a cada passo, afastando folhas secas, sementes enrugadas, restos de lanches e embalagens coloridas, reluzentes, que amanhã um funcionário, que sobrevive de seus serviços de limpeza e conservação, cuidará em remover os excessos dos que destratam os locais públicos, um oásis tão agradável meio ao deserto dos males urbanos. Mas cavando, em si-mesma, lembranças de risos e frases, de momentos não pagados de completo, ela encontra certa companhia. E andando permanece estática em monolítico passado, que não pode ser mudado, mas aceito e interpretado, acalentado e suportado.

Um estudante, alto e magro, oculto no brilho dos óculos, atravessa diante da área de segurança, com sua mochila de volume notável e uma camiseta de faculdade. Respira fundo quando atinge a Praça, como a se livrar de toda a poluição que antes respirara. Sônia pode distinguir o nome da faculdade (UFMG) e do curso (Ciências Biológicas), e segue, com o olhar, o vulto do rapaz que se perde na alameda.

Muito sério, parece em busca de sossego, Aqui até que se pode andar, o vento batendo lá encima e derramando estas folhinhas de verde maculado ou florações do ipê ou raminhos que se agarram no cabelo da gente, assim, uma semente aqui na ponta do nariz, e ele anda encurvado, com todo o peso daquela mochila, será que carrega espécimes mumificadas? Claro que não! São livros de anatomia, imagino. Ai, que horror, aqueles cadáveres no laboratório, que formol nauseante, que castigo!, e a Lídia levantando o lençol para ver a cara do moro, um negro com jeito de morador de rua, pois claro que o sujeito morreu indigente, debaixo desses viadutos e depois enviam para a gente estudar e retalhar os coitados! Ah, Biologia! Eu mereço! Quantas vértebras? Quantos nervos raquidianos? O que são angiospermas? Explique a Segunda Lei de Mendel, descreva o ciclo do oxigênio, dê exemplos do Reino Fungi, eu mereço!, mas ele é jovem, talvez da minha idade, tem cara de calouro, exibindo a camiseta assim, “Ciências Biológicas”, numa caligrafia artística, Ei, garoto, poderia me explicar a síntese de proteínas?

Deve ter a minha idade, mas eu perdi tempo, droga!, repetir um ano inteiro, e logo o primeiro!, e se tomo bomba de novo, lá se vai outro ano todinho!, e ficar neurada com esse troço de vestibular, que a Raíssa ficou um estresse só!, mas 'tá lá estudando “Administração”, cheia de estatísticas e tabelas nos miolos, querendo ser executiva e todo elegância, porque, mas ela tem lá as ambições dela, cada um tem a sua, e eu queria cantar, ser famosa, uma Morissetti, uma Dolores O'Riordan, mas nunca dá certo, pô!, eu “perco o meu valioso tempo com pessoas que não se importam se eu estou viva ou morta”, ah, chegar em casa e ouvir os Smiths, mas amanhã mamãe me quer diante dos livros, afogada em polinômios, que o trabalho é para segunda-feira, fora a pesquisa sobre o “Período Regencial”, aquele tanto de revolta, aqueles regentes cheios de pompa e solenidade, minha nosa!, e ninguém para trocar um “oi” ao telefone!

Mas se eu passar no vestibular, já é época de inscrições, que é uma competição fodida!, se eu conseguir a vaga, significa que outra pessoa ficará sem, deixada de fora, morrendo de frustração, coitada!, e por que não pode haver lugar para todos?, assim eu não me sentiria tão culpada pela minha conquista, com mamãe Clara Selma toda sorridente o senhor César todo orgulhoso, “Pelo menos nisso ela é competente!”, ele diria, oferecendo um mais de mesada, todo generoso, ou um presentinho, daqueles 'simbólicos', sempre avarento, e diria ainda “Você mereceu! Deixou os maus estudantes, esses preguiçosos, para trás!”, mas por que assim? Por que isso de um-leva-e-o-outro-chupa-o-dedo? Por que uns pisando os crânios dos outros? Claro, que se digo isso ao Oto, o cara logo vai zombar, Que o mundo é assim mesmo, só os fortes sobrevivem, e eu já li isto no livro de Biologia que trata da Evolução e está cheio de frases de um certo Sr. Charles Darwin, que embarcou num navio e se dedicou a coletar uns pássaros, catalogar uns répteis, comparar uns com outros, e a dizer que o homem veio dos primatas – coitado dos macacos!

Mas ele some no escuro, e ele parece o Oto, só que o Oto com aquela cabeleira viking, um bárbaro, minha nossa!, que cita Darwin, não só porque dia o tempo todo que o mundo é assim mesmo, um imenso triturar de ossos alheios, e que viver é competir, é guerrear, e que uns, os filhinhos-de-papai, ou as madames, já tem tudo na mão, e que sem luta e esperteza não se tira nada deles, e oto, o mesmo que de tanto 'lutar' afundara a banda, a própria banda! Pobre Oto!, agora a dizer, “Como você anda melancólica!” ou “Não tenho medo de cara feia!” ou “Não tenho tempo agora, liga depois!”, e o grandíssimo filho-da-puta!, e o que ele faz? Desliga o telefone, sai de fininho, finge que não ouviu, vai rabiscar uns versos, que ela, a coitada, só escreve quando 'tá deprê na fossa mesmo, “De flores o opressivo odor / (Fenecendo jazem os botões) / lágrimas orvalhando / as pétalas que caem”, essas coisas, que dizem nada dizendo.

Por que dependemos da pessoa amada?, ali ao nosso lado, para ser nosso apoio e sempre um incentivo?, mas é a pessoa que escolhemos amar, depois de seleções e seleções, iguais as do tal Darwin, selecionando a pessoa depois de critérios e estéticas, atitudes e gostos, que apreciamos, e se damos atenção ao que tal pessoa pessoa diz é porque nós demos um valor a ela, nós é que delegamos o poder que ela tem sobre a gente, ou seja, pense bem, Soninha, o poder de elevar nossas auto-estimas vem de nós mesmos, não é assim?, eu nem preciso ler Freud, se quer saber, com isso de Ego tal e escolhe Outros tais e reforço do Ego e tal, sei que não é qualquer um que ouvimos, que deixamos nos afetar, mas escolhemos e depois como se livrar da escolha? Ah, minha nossa!, aquele que desaprece na escuridão é mais bonito que o Oto! E quem sabe até seja mais legal!

Não adianta adiar. O retorno para casa é certo. Sônia Regina tem em si dolorosa lembrança daquela vez em que ficou fora de casa sem permissão. O regime 'draconiano' que se seguiu. A mudança de bairro e de colégio. A perda das amizades e a difícil conquista das novas. Se não fosse a mão amiga de Raíssa, ou o aparecimento súbito de Víctor, não teria saído de sua sólida solidão.

Mais palmeiras na descida da Avenida Brasil, onde charmosos e charmosas descem de seus caros carros importados, rumo às promessas de diversões em boates e restaurantes. Sônia não está muito atenta a estes vultos de endinheirados em busca de prazeres. Ela percebe e aceita, não ficará acrescentando rótulos e rótulos, não se deixará corroer por ressentimentos nascidos de viperinas invejas, e se está andando a pé é porque assim deseja, uma vez que tem dinheiro mais que o suficiente para um táxi.

Uma melodia foge de uma casa de shows e derrama-se sob as palmeiras, envolvendo os passantes, um gemido de saxofone, uma trilha sonora de sensualidade requintada, soundtrack de filmes noir da década de 50, e Sônia deixa a melodia passear em seus cabelos e repetir-se em seus lábios, no tremor da língua e no estalar dos dedos.

Onde eu ouvia um sax assim?, na casa do Stevam, acho que o irmão dele... mas estas meninas com tanta vontade de diversão, olha a moreninha que desce do táxi, olha os grandes vultos da recepção, e eles querem saber o que ela quer, mas nem ela sabe, com aquele ar de perdida, o mesmo olhar daquela menina que num banheiro de show destas noitadas meio anos 80, um show tumultuado, a casa pequena para tanta gente, e a garota no toalete, quando a luz se apaga no salão, não é muito seguro, mas ela quer sair, e não era boa idéia, e ela não ouvia conselhos, a reclamar da falta de segurança, nada ouvindo, dizendo que em outros shows a segurança é bem melhor, eficiente, organizada, e menciona umas bandas pop, e estranha continuar ali num show de bandas melancólicas, meio às faces pesarosas, mas diz estar acompanhando uns colegas, que são uns 'posers', com aquelas 'caras de maus', mas são iguais a todo mundo, cheios de 'ideias-furadas', e que só está junto deles para curtir a noite e aproveitar a qualidade do 'pó', e aquela 'patricinha' mergulhou na escuridão, e me deixou ali preocupada.

Isso antes de frequentar aqueles shows com o Oto, todo atenção mas com arrogância, fazendo um favor, mas numa força. Força. Uma força que vai arrastando. Oto pode ser um idiota que tira força da própria burrice. Uma mula. Ao contrário de Henrique, pois o Henrique, inseguro, todo pensamento, até admira e se intimida diante do Oto, todo segurança, todo arrogância, sólido igual uma pedra que rola da montanha, e ai! de quem estiver lá embaixo no caminho, pois o Oto pode até ser um idiota, mas jamais duvida de si mesmo, e até por isso mesmo, enquanto todo pensativo o Henrique fica se explicando, se justificando, sem perceber que é de todo inútil, diante de uma força que vai arrastando, igual àquela noite em que o Oto ajudou a desatolar o carro do irmão da Fla, que era namorada do Erik, lá no sítio, depois da Pampulha, onde depois quebraram o espelho do banheiro, aquele monte de bestas, mas quanto o irmão chegou, o carro dele atolou num lamaçal junto da porteira, e o Oto, já meio bêbado, todo euforia, pois quando ele está são é frio e distante, foi incentivar, aos gritos, o grupo de rapazes, “Força! Força! Vamos!”, que conseguiram tirar o carro, enquanto o Oto empurrava, praticamente as botas na lama, e depois todo sujo de lama vai deitar-se no sofá, sendo rodeado pelas 'ninfetas', as meninas de grandes olhos.

O Henrique, onde estava?, ah, ele observava tudo, ali na varanda, discutindo ateísmo e literatura, diante de um estudante e um músico leitor de Saramago, o que era notório, talvez um colega da Fla, não lembro, e Henrique observava o retorno do Oto, e ao seu lado os outros rapazes são folhas secas, diante da presença do oto, que mais parecia aqueles caras que controlavam o ritmo das remadas nos porões dos barcos vikings, enquanto a marca de Henrique é a frieza, a observar o Oto se agitar diante das monstruosas caixas de som ligadas em plena sala, onde um solo de guitarra cortava janelas e paredes e uma bateria estremecia as vidraças, ali um Henrique todo racional observando um Oto todo eufórico, gritando, no agito, e não sabe se Henrique sente desprezo ou inveja, talvez as duas coisas.

Risos se precipitam na noite. Um carro com estrondoso som desce a Avenida Brasil e rapazes gritam festivos e assobiam e incomodam. Sônia Regina se esforça para ignorar. O veículo pára lá embaixo no sinal vermelho, o primeiro da área hospitalar, e os risos e assobios continuam, uma festa ambulante sobre quatro rodas, diríamos, e Sônia reduz os passos, não quer ser assediada, e o sinal brilha verde e lá se vai o carro e seus festivos ocupantes. E ela não pode ocular um desprezo mesclado de piedade diante de jovens ricos e tão indiferentes à realidade e à miséria, festejando, ao som de ritmos eletrônicos, como se vivessem no melhor dos mundos possíveis.

Não podem ver esses miseráveis sob as marquises?, onde um homem, um vulto de homem, e uma mulher, o que sobrou de uma mulher, discutem, disputando a proteção de um cobertor, não podem ver? Meu deus, como são idiotas! Uns pobres alienados! Bem que Víctor diz sempre, e sempre bêbado, pois não suporta este mundo, o coitado, o Víctor que suporta o Oto, vejam só, e eles estavam naquele bar, onde eu encontrei o Oto, o bar estava cheio, nada de mesa vazia, e muita falação, mas atrás de um rapaz todo de preto estavam dois lugares vazios e eu fui e Víctor me viu e levantou de repente para me abraçar e balançamos a mesa e o Oto fez cara feia, pois a bebida quase derramou, e eu não pedi desculpas, mas mergulhei naquele olhar, enquanto Víctor estava no meu caminho, e o Oto equilibra a garrafa e os copos, sem desviar o olhar, sem assumir que observa a desconhecida, mas diferente da segunda vez que o encontrei, uma sombra a estender-se sobre a mesa, depositando uma garrafa e dois copo, sem pedir licença.

Foi naquela noite em que seria a do show, ou me disseram isso, a banda do Oto vai tocar e tal, e dois rapazes desceram do mesmo ônibus, não sabiam onde ficava o bar, “É pra lá que estou indo!”, eu disse, e eles me seguiram, calados, ambos de ares sombrios, um com uma jaqueta, o outro com um blusão de flanela, e seguimos a rua Padre Eustáquio, comentando o casario de estilo antigo, os botecos, onde compraram cigarros avulsos, enquanto, vez ou outra, comentavam uma noite no cemitério, o do Bonfim, e enfim chegaram, e eu não vi qualquer conhecido, só a banda a fazer “passagem de som”, e não era a banda do Oto, mas aparece um coroa dando encima de mim, e paga a bebida, mas fui ao banheiro e me afastei, e fiquei do lado da banda, e quando voltei ao bar, o velho se mandara, lá estavam o Oto e o Víctor e uma garota, muito bonita, muito pálida e cabelos negros, mais longos que os meus, e era a Carol, e o Oto contorna a situação, até porque não se importa, sabia que eu era afim, eu que chego diante dele e digo, “Ora, me disseram que a sua banda ia tocar hoje!”, “Só se estão por aí, tocando sem mim.”, ele sorri debochado, aquele cínico, e o Víctor estende a cadeira, e chegam Erik e outros caras, e eu observava a Carol e suas pernas fascinantes saindo de uma saia minúscula de couro negro.

O que eu fiz?, ah, sim, troquei meia dúzia de monossílabos com a Carol e depois fiquei sozinha, e do outro lado, junto ao palco, um rapaz sentado no chão, meio alheio, mas depois ele se levantou e se aproximou e ele era digno de pena, com cicatrizes de agulhadas nos braços, “Estava ali e olhando, você aí sozinha...”, ele disse, com toda a presença de seus dezessete anos, visivelmente drogado, enquanto os seus colegas se queimam com pontas de cigarros, para ver quem é mais brutal, mais resistente à dor, e ele começa a falar de sua vida, mas os colegas, de onde saíram?, querem ir ao cemitério, o do Bonfim, mas ele e sua vida, ali inclinado, ele dizia que vivia com o pai, e sua mãe foi para o sul, e ele não tinha amigos, ainda que seguido por estes caras, e eu dizia que morava com uma amiga, muito trabalhadora, e nisso os caras foram embora, os braços todos queimados, fãs de bandas satânicas, rumo ao cemitério, pouco amigáveis, ele continuou diante de mim, até parecia mais leve, mas foi ao banheiro e não voltou, e depois descobriu que ele morrera lá dento de overdose.

Ressoar de sirenes junto aos hospitais. Onde, à princípio, espera-se silêncio. Mas os pacientes, pacientemente, esperam novos companheiros de quarto. Uma ambulância estaciona e paramédicos, estressados, vão conduzindo um corpo gemente numa padiola e vultos de alvas vestes angelicais ao redor, com toda a boa vontade do mundo. Talvez consigam salvar aquele ser que sangra. Quando uma sandália vermelha cai na calçada é que Sônia Regina percebe tratar-se de uma mulher. E jovem! A sofrer ali, no corpo frágil, uma sangria, uma dor tão grande que ela nem podia gritar! Seus olhos procuram outros vultos, e Sônia quase se deixa adentrar o templo dos gemidos, mas sente uma náusea iminente, como a sentir-se golpeada por todas as dores físicas e morais de todos os sofredores, no que Henrique já dizia, “Sônia, menina, você sofre de um complexo de Atlas, sente todo o peso do mundo nas suas costas”, o mesmo ela dizia ao Stevam, o cabisbaixo.

Foi Stevam quem me emprestou um livro do García Márquez, onde as personagens não fogem de suas solidões, aliás, “Cem Anos de Solidão”, onde Meme, a mais densa e interessante das figurantes femininas, ama mais o envolvimento, e as situações arriscadas, com o mecânico Maurício Babilônia (que nome!), do que o próprio rapaz, que ela considera muito rude e petulante, e é o que me lembra o meu caso com o Oto, tão seguro de si que satisfaz a gente, mas claro que só pensando no prazer dele, mas acaba dando muito prazer, ainda mais se a gente for masoquista, aí ele é o sádico ideal, só falta criatividade, no que ele é zero, mas não interessa, ele é direto ao ponto, ao contrário do Stevam, todo gentileza, que enrola e enrola e dá em nada.

E é por isso que o Oto leva todas e a Carol finge que não vê, a Carol, Ana Carolina, que não desprezo, mas que tem a mente suja de moralismos e julga que vai se livrar dos moralismos ao praticar o contrário do que exigem, entregando-se às safadezas do Oto como se purificação, e chegando a ir morar com o cara só para irritar papai e mamãe e metade dos parentes, e para descobrir que, no fundo no fundo, o Oto é mesmo um fraco, a morar naquela casa de subúrbio com a mãe viúva e abandonada e que não suporta o filho enquanto ele a odeia e não disfarça e o inferno que aquela casa é.

Ainda mais Oto e sua cegueira com aquele Bruno e a mulher dele, a Cida, ambos ali todos atenciosos, a dizerem que o Oto tem futuro, que ele pode mexer com computação, já que prefere ficar hibernado no quarto, ainda mais quando a Carol... aí eles não saíam da cama, mas aquela amizade do Bruno é só afetação, sim, pelas costas ele deve ridicularizar o oto, quando dizem que ele é um desajustado, um utopista de direita, e chegavam calorosos, bem vestidos, ao estilo rocker, mas com roupas de moda, e o Oto todo fodido, de jeans rasgado e descabelado, e o casal conversando “normalmente” com o Oto, ele no estilo 'cavernoso', como diria a Cida toda naturalidade, no fundo escandalizada! e ele entra no bar e ela, na penumbra, ouve o casal comentar as 'loucuras' do Oto, com todo o sarcasmo, pois para eles o oto significa apenas o que eles jamais desejariam ser, pois reafirmam o que são quando se julgam acima do Oto, o 'desajustado'! E claro que o oto nem desconfia, acha que sua atitude de 'doidão' é o que há! E nem percebe que após a 'conversa' com o 'doidão', o casal de 'ajustados' ainda mais contentes consigo mesmos, após o encontro com a “atração circense”, o “espécime exótico” que é o Sr. Oto Marques!

Mas, idiotas que são! Não enxergam! Vivem numa disputa de vaidades, de um lado o casalzinho a pensar assim, “Muita gente gosta assim, então eu gosto!”, e do outro, o Oto, prepotente, a gritar, “Muita gente gosta? Então eu detesto! Vou ser diferente!”, e aí o Oto não percebe uma coisa, que é até simples, deus-do-céu!, que não é o Oto quem aceita e tolera o casal, mas é o contrário!, pois é a maioria que tolera a minoria!, não é o casal que permite que o Oto seja o que ele é?, não é todo o mundo a tolerar o Sr. Oto Marques?, mesmo que não façam oposição aberta, não o recriminam nem o eliminam, mas criticam e ironizam, assim que ele se afasta, e depois de fingirem uma igualdade, mas pensam para si, imagino a Cida retocando a maquilagem diante do espelho do toalete, “O quanto somos superiores a ele! Permitindo que ele continue aí, tal como é! Pelo ridículo, que ele representa, eu prefiro ser o que sou, bem-sucedida na vida!”, e o Oto, o pobre 'outsider' perde toda a sua energia ao tentar ser o diferente, destoando do que proclamam seu “padrão”, ai, palavrinha toda séria!, e não que o Oto se aproxime submisso, ele jamais faria isso!, mas os seus amigos 'ajustados' já se sentem superiores, por terem a aceitação da maioria, e é assim que não é o Oto quem tolera os “almofadinhas', mas são eles que o toleram!

Vagueando em seus pensamentos, a ponto de falar sozinha, Sônia Regina percebe-se diante do Viaduto, notando a sua esquerda o hipermercado que já abaixava as portas. Casais conduzindo carrinhos de arrastavam até os carros ou acenavam aos táxis. Na escada, uma mocinha oferecia sorvete ao rapazinho ao seu lado. E todo casal é uma punhalada, ainda mais que o Oto, nunca uma promessa!, mostrara-se o trauma perfeito! Falando sozinha nas alamedas, Sônia atravessa trânsitos e desvia-se de pedestres e descobre um pedaço de lua cheia nas ramagens e tem vontade de abraçar e beijar aqueles caules seculares, mas toda aquela fuligem a assusta e desespera.

Agora, não que eu fique desconfortável diante daqueles idiotas, pois depois o Oto me apresentou ao casalzinho, e não me senti superior, mas fiquei na minha, e eles que encenavam muito bem. Não desprezo, mas sei que sou desprezada, ainda mais que não ganham nada com isso, sou um nada!, mantêm uma condescendência sadia, devem pensar quando chegam em casa, após a noitada, e tiram as máscaras, e trocam impressões, “Você viu aquela garota vidrada no Oto? Coitada! Toda pálida, parece que chegou de um velório! Outra doidinha!”, mas continuam o jogo, frequentam os shows, o Oto é conhecido, enfim, por que é que eu me importo com essa gente? Mas é que a descoberta da fraqueza do Oto, brotando de sua própria força!, me deixa com os nervos à flor da pele! E por que não vou bater à sua porta agora mesmo?

Alguns vultos se voltam ao ouvirem uma risada. Sônia Regina, rindo, propõe a si mesma uma visita ao desafeto, balbuciando fórmulas de gentileza, nunca desculpas, pois ele não merece. E é verdade que Sônia gosta de surpreender, evitando alguns formalismos, do tipo telefonar antes e agendar, ou avisar, ao menos, preferindo, antes, chegar de imprevisto, mesmo arriscando-se a ser inconveniente,o que às vezes ocorre. Ela aciona a campainha e assusta o anfitrião, o que desnorteia os que têm, segundo ela, o “péssimo hábito” de ordenarem os compromissos, os eventos, os encontros, segundo datas e horários. Uma noite, Sônia aparece na casa do Víctor, sem avisar. O amigo vem atender, após certa demora, de bermudão, e cara amarrotada, e marcas de batom no pescoço, “Sônia! Você aqui?! Pô, nem avisa!”, ela sorri, ele continua, “Eu tô acompanhado, Sônia”, e ela, com olhar malicioso, “você está...”, “É. (pausa) Não quer que eu te convide pra entrar, quer?”, “Quero.”, mas ele bate a porta. E é de tal incidente que brotam as suas risadas, as que atraem os passantes, enquanto Sônia sobe a Avenida do Contorno, diante dos bares e ds diversões noturnas, onde os seus amigos mesmos muitas vezes se encontram, ou ali diante da igreja matriz da Floresta, mas desta vez ela só tem risos para si mesma.

Casa do Oto. Som altíssimo. Hard Rock! Oto sem camisa. Calça jeans preta. Cabeleira solta esvoaçante. Magro, contra a luz. Agitando-se frenético em sua magra palidez. Com pesadas botas negras. E o jeans preto fazendo um contraste com a pele pálida. Calças justas, dedos nos bolsos, balançando a cabeça, agitando-se sem camisa. Peito a cobrir-se de pêlos, peito de raquítico – também com tanta bebedeira! Delirando com uma guitarra, um solo eufórico, dedilhando o ar, imaginando uma guitarra furiosa!

E o globo de luz, o lustre globular, todo coberto de elásticos, os filetes de borracha, mais a parecer arame farpado, a projetar sombras nas paredes acizentadas, num papel de parede de galhos retorcidos, garras deformadas, penumbra de bosque ao anoitecer. Ele lembra que ela está ali e até sorri. Ela se aproxima e afaga seu peito, sua barriga, deixa a mão acariciar o umbigo e adentrar a calça, agarrando a excitação dele, brincando e apertando, enquanto ele morde nela a ponta da orelha, quase arrancando o brinco, aquela pequena cruz negra.

Mas agora, Sônia Regina está diante do portão e lá dentro um manto escuro. Realmente ninguém em casa. O vento vem rodopiando junto ao muro e estremece o portão. Ela aciona o interfone e espera. São dez e pouco, ela deve esperar? Mas ele não tem forças para se afastar, e um desânimo a obriga a sentar-se na calçada, evitando sujar-se nas flores murchas que caem da orgulhosa árvore que no entanto, inclina-se para o muro. Uma lua espantosa atrai o olhar de Sônia e ela julga ver brilhos além das pálidas estrelas, e são brilhos que se movem e talvez sejam OVNIS, com maravilhosos, ou orgulhosos, ETs e talvez não estejamos tão sozinhos assim, e aquela árvore é testemunha de muitas loucuras desde a festa, e no tronco continua a rugosa marca “S & O”.

Era para ser uma festinha entre amigos, os “Eleitos”, como dizia o Oto, mas fugiu ao controle, e a bagunça noite adentro e quase que o vizinho chamou a polícia, mas ninguém pôde prever isso quando tudo começou, eu cheguei depois mas consigo imaginar, naquele crepúsculo, a chegada, até comportada, daqueles loucos, mas eu lembro porque descobri quem era o Oto, e pude observar de perto o Henrique, aquele espécime raro, e conheci o Stevam, todo complicado, meu deus!, que situação aquela, mas eu consigo imaginar o início de tudo.

Sei que o Víctor foi o primeiro, deve ter chegado com a bebida, pois quando cheguei todos já se ocupavam de seus copos, e o Erik já escolhia a trilha sonora e a Carol estava sentada no colo do Oto, com jeito de vadia, e o Henrique chegou de óculos escuros, todo vampiresco, e ficou na penumbra da sala, e chegou a Fla, que agarrava o Erik, e logo eles estavam se amassando ali mesmo no sofá e chegaram o Bruno e a Cida, os hipócritas-mor, e traziam vodka, e depois chegados do Oto, gente que nem conheço ou nem lembro, e o Víctor e Oto disputavam os CDs, e o Víctor corria com o controle do som, umas crianças!, e o Henrique todo sério, o único na sala, pois o pessoal acendera uma fogueira no quintal e comentavam sobre bruxas e duendes, e o Erik e a Fla se trancaram no quarto do Oto, fazendo o que todos imaginavam, só não ouvíamos os gemidos porque ele devia estar sufocando a menina com uma almofada, mas o Henrique estava sozinho, todo deprê, anotando versos numa folha de caderno, e eu com timidez total, não que o desejasse, mas ele era misterioso, sempre calado, e os caras ligaram a TV e colocaram um filme pornô, com uma garota chupando cinco caras de uma vez!, e os caras gozando na cara dela, e ela lambendo os beiços, e aquilo me deu um nojo, que filmes pornôs são uma náusea só, eu saí, fiquei junto da fogueira, e o Víctor com suas piadas macabras, de humor-negro, onde sempre aparecia um padre, um pederasta e um coveiro, e eu não entendia, e nem queri entender, enquanto os olhos da Carol brilhavam, a refletirem a dança das chamas, e o Oto alisava e beliscava aquelas pernas desejadas que findam numa meia em rede, toda preta e coturnos lustrosos, cheios de tachas, e a Carol estava fatal!, e se ela fosse mais legal eu até me jogaria aos pés dela, ó grande conquistadores do coração deste bárbaro!, ó domesticadora de desejos selvagens!, e só para irritar.

E para encher o saco, um amigo do Víctor apareceu com um violão e ficou cantando rocks nacionais, os mais piegas, e voltei para dentro, e o Erik já tinha saído do quarto, com aquela cara de contentamento que nós garotas conhecemos muito bem, depois que sem de dentro da gente e nem querem mais saber, pois gozou, acabou!, e eu não suporto um olhar igual ao do Aléxis, ali acomodado no sofá, esse olhar de “estou vendo a cor da sua calcinha, baby”, pois os caras só pensam nisso, a gente é um buraco ambulante, um corpo bonito, mas ali ao lado dele, eu percebi ao lado deles um rapaz que não me olhava assim, mas com até timidez, com toda calma do mundo e o Henrique levantou os olhos e viu a cena, e o filme pornô terminava, todo mundo gozava, isso no filme, claro!, que eu observava o rapaz, e não o seu corpo, pois ele é até um tipo assim fraco, sem qualquer atrativo, não é feio, mas também não é bonito, não tem a força do Oto, ou a elegância do Henrique, ou a malícia do Aléxis, ou a espontaneidade do Víctor, mas o rapaz era diferente!

Sei lá, pois eu não fico ligada no corpo, coisa tão essencial para os meninos, mas eu olhei os gestos, a entonação da voz, o olhar tímido, reservado, aquela indiferença para com a minha chegada, enquanto os outros, com exceção do Henrique, ali meio aqueles rascunhos, me desnudavam, me comiam, me devoravam, todos, com os seus olhos de brilhos sacanas, ah esses filhos de uma puta!, não podem me ver com meus peitos que estufam meu vestido vitoriano, ou os meus braços nus que ostentam luvas negras, mas o rapaz, e ele disse o nome, “Stevam Lucena”, sem qualquer comentário ambíguo ou obsceno, daqueles de um tipo vulgar igual é o Erik, que acaba de enrabar a pobre da Fla ali no quarto, na cama do Oto, fica olhando assim... e se a gente dá mole... e eu cismei que o Stevam me observava, mas do jeito dele.

E quem queria ficar comigo era o Aléxis, que tirou o filme pornô e programou clipes de bandas góticas obscuras e shows de bandas vampirescas onde mulheres se contorciam e gemiam dentro de gaiolas douradas e os vampiros saíam de tumbas e um vampiro beijava uma mão que saía de um túmulo e eu sentia o hálito quente de Aléxis enquanto ele me mostrava os desenhos, pois são desenhos muito bons, algo de Goya, de Van Gogh, mais sombrio, claro!, algo bem Bearsdley, de Salomé do Wilde, esses traços de mangás eróticos, mas com um tom mórbido, com criaturas de olhares de lobos, com meninas que se cortam, com meninas que sangram, igual o cristo no getsêmani , todo suando sangue, e o Aléxis pouco está preocupado com o cristo, ele ouve Marylin Manson, e isso é que o afastou do Stevam, no início, o Stevam dizia, pois o Stevam detesta estes tipos teatrais, e não poupava ironias aos clipes do Alice Cooper, ou do King Diamond, ou os clipes com monstrinhos tipo aqueles do Iron Maiden, mas isso nem era coisa que o Aléxis ouvia, pois ele se arrogava um bom gosto musical e ouvia Joy Division e adorava The Sisters of Mercy e música ritualística e worldmusic, cânticos celtas, ritmos sombrios das mil e umas noites árabes.
Mas eu não fiquei com o Aléxis, nem com ninguém, pois o Oto e a Carol voltaram à sala e comentavam os clipes do Cradle of Filth, aquele das garotas engaioladas, ou os do Satyricon, onde uma mocinha loira e pálida dançava nua diante de noturnos olhares sádicos que roubariam sua beleza e seu sangue, e eu me aproximei do Stevam, que olhava para a Carol, e eu olhava a Carol, aquela tão simplória pessoa, e que nem me dava ciúmes, lá toda cismada a doidona, e se eu a invejo é por sorrir sem angústias, enquanto eu fico aqui amargurada com bobagens, e é o mesmo olhar do Henrique diante do Oto, aquele olhar de “eu-te-invejo-porque-você-não-sofre”, enquanto Erik e Víctor se agitam envoltos num som assustador lá no quarto do Oto, e o Stevam lançava olhares de interrogação para o teto que estremecia, eu descobria o nome dele, e que ele tocava teclado, e timidamente declara sua dependência de estar sempre ocupado, escrever poemas, divulgar fanzines, estudar música, estudar para o vestibular, visitar os amigos, montar uma banda, tudo isso para não parar para pensar, pois pensar é perigo certo para ele, e se ele refletir muito ele se mata.

E depois foi o Henrique que apareceu no corredor, com uma taça de vinho, e o Stevam se afastou, respeitoso, pois o Henrique disse simplesmente, “Nem queira compreender”, e o Stevam abaixou cabeça, e eu não entendi, mas não era para entender mesmo!, e sustentei o olhar do Henrique, a comentar um trecho de “Hamlet”, assim sem mais nem menos, a morte de Ophélia nas águas, enquanto a Carol gritava querndo se apropriar do controle do vídeo, pois suas amigas chegaram e elas queriam ver um show do Metallica ou do Sepultura, não lembro, e o Henrique dizia que eu parecia a Ophélia, dapeça do Shakespeare, que eu falava sozinha, e olhou para o Stevam que se afastava e sorriu malicioso, e o mesmo Henrique que depois comentaria que o Stevam estava apaixonado por mim, ainda que não mostrasse isso no horário nobre, o Stevam apaixonado por minha saia curta, pernas nuas e pálidas, mas isso quando me viu no bar do Santa Efigênia, um mês depois, e eu estava com o Oto, e o Stevam amigável, não conversava, mas depois, de longe, com olhares de despeito e remorso, afinal eu era a garota – ainda que não 'oficial', pois essa era a Carol – do famigerado Oto Marques e ele, o Stevam, nem mesmo pensaria em enfrentar Conan, o Bárbaro, pois o Stevam não passava de um espadachim, um Hamlet perdido entre desejo e prudência.

E o Henrique, sim, o Henrique todo didático a prometer o empréstimo de seus livros de Shakespeare, e de Lord Byron e de Oscar Wilde, “Portrait of Dorian Gray”, e realmente me emprestou os livros e alguns eu até devolvi – e depois percebi que as folhas de rabiscos, com as quais eu marcava as páginas de leitura, continuavam nos livros -, e morro de vergonha que o Henrique possa ler as linhas tortas com meus pensamentos, minhas confissões, e pensei em pedir os livros em novo empréstimo, mas não sei, e o Henrique exaltado contra a exploração da mulher, aquelas criaturas lindas e lascivas ali engaioladas, e que essa idéia de pecado era um “contra-senso” e que esses góticos mantinham a dominação do “absurdo cristão”, “pois é justamente o medo que a religião cristã gerou com seu dogma de Morte e Juízo, e Punição e Recompensa, é esta aberração, Céu ou Inferno, que dita, e legitima, que o ser humano nasce para uma missão junto aos outros e perante Deus e morre, ao fim, por seus pecados, e deve ajustar suas contas com o Criador e Juiz; crença que gerou o medo crônico, o espírito sombrio e funesto, a piedade caricatural, o desprezar a vida, a frieza ascética, o retiro e a melancolia, que caracterizam o Barroco, o Romantismo, a arte gótica, com sua arquitetura sombria, com suas pinturas medonhas, com seus vestuários solenes e lutuosos, com sua música soturna”, e sorria para os jovens espalhados no ventre da sala, onde Oto e Carol bebem vinho, junto a porta, e Sevam e Aléxis conversam no corredor, e Erik e Fla se espremem no sofá, e as amigas da Carol trocam sorrisos de malícia, e Víctor derrama cerveja no forro da mesa, e Bruno e Cida observam tudo como se fosse uma ópera-bufa!

O vento, enroscando-se em seus cabelos, afasta Sônia Regina de seus devaneios, e a lua brilha em sua fartura e brilhos no céu claro podem ser espiões-aliens, ou meros balões meteorológicos, mas a ausência de Oto Marques tira todo o encanto, no sofrer da espera, como não notamos os detalhes de uma ponte quando o nosso objetivo é atingir o outro lado do rio. Certamente uma hora se passou, e ela sente a solidez, a imponência daquele muro, que, se ela pudesse, ela estaria lá dentro e se deitaria à porta dele, e esperaria a sua chegada. Mas, Sônia, alisando o cabelo, se levanta e ousa um passo adiante, afinal, não há esperança e nem ninguém em casa. Enfrentando a noite, ela volta para a Avenida, a rever a Igreja matriz, e o barzinho, onde jovens se aglomeram em busca de prazer e esquecimento, e ela segue rumo ao bairro, o seu bairro.

Sônia atravessa as ruas tão sozinha quanto ela mesma, e chega aos arredores da praça, ouvindo uma voz de mulher que se eleva, a cobrir seus pensamentos, e atravessando a luminosidade de bares e alpendres vazios, ela reduz seus passos diante de um boteco modesto, onde, quem passa na rua pode ver, um casal, ele ao violão acústico, todo concentrado, e ela, cantando, toda beleza e jovial em voz e olhares, tocam para um público de semblantes fatigados e gestos mínimos. A cantora não deve ter mais de vinte, e o rapaz, uns vinte e cinco – tão jovens! Ambos alheios ao que se passa no bar. Sônia contempla a cena, mesmerizada, encantada pela voz da garota, numa canção popular, certamente Elis Regina, ou Milton Nascimento, enquanto os dedilhados se sucedem marcando os limites das sílabas, eo casal ali se entregando, viajante nas sonoridades, diante do público, para a diversão daqueles que pouco entendiam. Os poucos boêmios ali nem parecem perceber a letra da canção que fala de um amor perdido, onde a despedida da mulher é uma carta perfumada.

Ferindo o ambiente do barzinho, Sônia Regina entra e aborda uma das moças que ali servem bebidas e porções. Discreta, tem um pedido. Se poderia usar o WC, o toalete. Uma luz debaixo da porta. A garçonete não levanta obstáculo. Basa agora esperar. Mas o rapaz tem um olhar distante igual ao do Oto, ainda mais nos ensaios, onde o Oto fica na dele, até parece ausente, omite opiniões e tal, não influencia, mas cria o som do jeito dele, e se nota que é do contra, pois ele até desiste de interferir, ou interfere exatamente quando não interfere! Quando independente do que ele disser, todos chegam ao mesmíssimo ponto!

Exemplo? Aquele ensaio na casa do Víctor! Quando o Oto se sentia tão superior a tudo e a todos, todo indiferente, não dava idéia, pois julga que qualquer opinião sua é se expor aos outros caras, e o Erik pode comentar, e o Oto não queria 'descer ao nível' de argumentar e convencer, e se o Erik, ou o Víctor, discutisse seria pior, pois sua autoridade deve nascer do consenso, e mesmo quando não concorda com algum acorde, ou melodia, ou virada, ou acompanhamento, o Oto não se incomoda, por julgar tudo isso menor, quiçá desprezível, e tudo isso ficou mais claro depois das observações do Henrique que, naquele ensaio, chegou ao lado do Stevam.

O Adelfo não apareceu, e o baixo ficou a cargo do amigo do Víctor, o Toni, e o Víctor já afinava o instrumento, enquanto o Oto, depois de desembaraçar os cabos, golpeava a bateria num ritmo de barco viking, todo empolgado, sorrindo pra mim, como se dissesse “eu já comandei uma expedição até aqueles mosteiros no litoral – e muito sangue foi derramado!” e tal e eu olhava da janela e, ali o sobrado, pode-se ver a ferrovia, brilhando, e os fios suspensos do metrô, as artérias de alta-tensão, e era a janela dos fundos e então entra o Stevam e o Henrique, que, o Stevam explicou depois, o Henrique, ou o TH, como ele diz, apareceu na hora que o Stevam já saía, e o Henrique mostrou-se interessado e o Stevam deixou o poeta segui-lo, e assim ali estava, e o Víctor assumiu a bateria, e o Oto foi agarrar sua guitarra, e o Toni, ainda sem camisa, todo raquítico, de tanta bebida, também aquele magrelo, alto, com cabeleira de índio xavante, afinando o baixo-elétrico, e o Stevam vai logo cumprimentar o Oto e montar o teclado, mas não sem sorrir pra mim, meio constrangido, numa saudação discreta, pois o Oto está sempre atento, e o Stevam teme uma faísca de hostilidade, e eu sou a única garota ali, e não podem deixar de serem gentis, como bons cavalheiros que devem ser.

E o Henrique manteve silêncio, e todo serenidade, enquanto Víctor não perdoava a bateria, e o Oto e o Toni duelam nas cordas, e o Stevam experimenta uma frase de Johann Sebastian Bach, e eu ajeito o cabelo atrás das orelhas, e observo tudo e espero algo, e o Henrique permanece alheio, em pé, junto a estante de livros e bebidas ali na entrada, os livros que Víctor raramente lê e as bebidas que Víctor sempre entorna, com exagero, goela adentro, e próximo a cabeça de Henrique, lê-se o título, em grosso volume, THOMAS MANN - DOKTOR FAUSTUS, e senti um arrepio, sabendo do que se tratava antes mesmo de ter lido o livro, e o Henrique nada disse durante todo o ensaio, ali, parado, lendo os títulos dos livros, sem tocar ou folhear, voltado para o teclado, vez ou outra atento aos dedos do Stevam, ou lança um olhar ao Oto, e quando olha para o Oto um leve sorriso de admiração ou inveja, mas sem ressentimento, diante da segurança, ou arrogância, do Oto, o seu não-hesitar-em-fazer, o estar-sempre-pronto-para-agir, pois o Henrique é todo bloqueado porque pensa demais.

Sim, o Henrique, junto a estante, imóvel, incansável, ali por umas duas horas, me impressionava, pois ainda não podia represar a desconfiança e os arrepios que ele me causava, desde quando conheci esta figura num show onde o Oto nos apresentou, pois o Oto não trazia a Carol, e um cara alto e pálido, todo de preto, junto às mesas, na área do bar, olhando o movimento, mas todo centrado em si mesmo, e o Oto, fumando, se aproximou, “Resolveu aparecer?”, e o outro respondeu, sereno, “Espero não incomodar.”, “Então não esqueceu os ensaios”, “Fui dar uma volta. Pensei que você me queria longe” e o Oto até ousou um esboço de sorriso, “Não tão longe. Podia enviar uma carta.”, e olhando ao redor, “Não desapareça. Deixa eu apresentar uma garota”, e acenou pra mim, “Esta é a Sônia. Este é o TH”, e o desconhecido, inclinando-se, beijou a minha mão, como jamais um homem antes, e disse, com voz veludosa, “Prazer. Pode me chamar de Henrique.”, e até tentamos conversar, em voz alta, berrando, mas não adiantou, aquele som altíssimo!, cheguei em casa até com os ouvidos zumbindo.

E assim não pude conversar com aquele gentleman, e nos braços do oto, juntinhos na pista de dança, eu ainda observava discreta o tal Henrique, sentado, soberano, atento a toda a movimentação, igualzinho um rei no trono, um Luís XIV, contemplando o bailar de seus cortesãos, pois era isso que me afastava dele, que me assustava, esse quase-sorriso de “observador do mundo”, assim afastado, só a contemplar a comédia humana, a mesma atitude ali, junto a estante, sem se emocionar com a música que os meninos ensaiavam, o oto com sua cabeleira solta a se agitar em seus solos agoniados, enquanto o Víctor esmurra sem piedade a pobre bateria, e ainda bem que eu usava algodão nos ouvidos!, e as vezes o Stevam me estende um cigarro, e eu lanço mais fumaça, que até parecia gelo seco no estúdio, e o Henrique ali sem qualquer emoção, tão acima de tudo, enquanto o Oto se agita, o Víctor esmurra, o Stevam se emociona, o Toni desafina de tão empolgado, e eles comentam, orgulhosos, a variação do andamento, e um explica o compasso ao outro, ou revelam que um entrou na escala antes do outro, que falta sincronia, e começam tudo novamente, incansáveis, e eu aceitava outro cigarro e ficava de olho no Henrique.

E o Henrique nada comenta nem sorri, e não bebe nada, mas é o Oto quem vai ficando “grogue” e se inclina sobre mim, aquele bafo e me arrancando beijos, e eu não gosto assim, mas sou eu quem rastejo atrás dele, o que fazer então?, mas não gosto e pronto!, e nunca aceitei esse lance de andar de mãos dadas, coisa que ele pode muito bem com a Carol, a deslumbrada!, que se imagina a domadora... e o ensaio termina, assim todos cansados, menos eu e o Henrique, a platéia, digamos, e todos vão ao banheiro jogar uma água fria no rosto e encararem a noite lá fora, depois de cuidarem dos instrumentos, e perguntam o que Henrique achou do ensaio e ele responde lacônico, “Fora do tempo”, no sentido de que somos atemporais, “timeless”, “out of time”? Não sei se os outros entenderam, e ele não disse mais nada, não diante dos outros, e o Víctor recolhia os pratos da bateria, e o Oto recolheu os cabos, e o Víctor cobriu a bateria com um plástico e guardou as pobres baquetas machucadas, e o Víctor e o Oto saem conversando, e eu vou seguindo, sem chamar a atenção, sem dizer nada ao Stevam e ao Henrique que ficam no estúdio, onde o Stevam cuida do teclado, e sentada, junto a escada, poso ouvir a conversa discreta entre os dois, à medida que o Henrique folheia um livro, “Víctor coleciona livros que não lê”, “O que realmente achou?”, “O som não me interessa. Quero ouvir você cantar.”, “Assim que você escrever algo.”, “Poderia ter soltado a voz...”, “Tenho só a melodia na cabeça.”, “Quer que eu recite algo na parte instrumental?”, “Sua voz é ideal.”, “Não vão entender. Só querem o orgasmo, e o orgasmo deles é a vibração sonora.”, e aí eu não entendia se ele se referia aos outros caras ou aos futuros ouvintes, e o Stevam queria encerrar a questão, “Será indiferente para eles, por isso concordaram que você escreva. Por acaso, já não leu todos estes livros?”, então ouvi o som abafado de um livro sendo depositado na estante, e a voz pesarosa do Henrique, “Eu não li todos os livros”, e, como eles viessem saindo, eu corri para junto do Víctor e do Oto, sentados ao portão, enquanto o Toni lembrava de lendas indígenas, que eram a sua obsessão, assim como as sagas nórdicas para o Oto e o Erik, e afumaça subia, e eu já notava uma divisão na banda, uma fissura que aumentaria até a ruptura final.

Uma descarga ressoa, indiferente à melodia. Uma moça de olhos vermelhos surge, evita o olhar de Sônia. Sua vez. A humilhação de reclinar-se. Por sorte há papel. Vamos cobrir o vaso. Ah, ser um homem! É só mirar e pronto. Cuida-se em enxugar-se. As mãos se retorcem sob um jorro d'água. Apaga a luz e abre a porta. Outra cliente à espera, atenta ao conteúdo da bolsa. Sônia agradece á garçonete, que nada diz. Chega à porta, pronta para reintegrar-se à noite.

E Sônia Regina atravessa a Praça, a da matriz e a do colégio militar, a Praça com nome famoso nos anais da História do Brasil, o célebre Duque de Caxias, que ela sabia realmente chamar-se Luís Alves de Lima e Silva, e esteve na Farroupilha, na Balaiada, na Revolução Liberal, para pacificar os ânimos, e a destacar-se na Guerra do Paraguai, tudo isso é importante – pode cair no vestibular!, então ela se concentra, e atravessa a praça, atenta ao coreto, e aos vultos abraçados, e um outro coreto se mostra.

Um coreto onde realizar um show, onde nos vocais eu seria o encanto do fim de tarde, e até fiz aula de canto meu pai insistiu, afinal, no interior, a música é mais clássica, algo barroca, com todos aqueles corais de missa e tal, e meu pai, apesar da mulher dele, insistiu e ele me emprestou a bicicleta e sai pelos campos, com um walkman e ouvindo uns troços que eu descobria, e era Mister Ozzy cantando “Sabbath Bloody Sabbath”, e eu pedalava, toda abismada com aquela manhãzinha de brumas, o sol escondido, todo tímido, enquanto a melodia noturna, “ninguém jamais vai te deixar saber, quando você perguntar pelas razões”, destoava da amplitude das planícies, e quase que eu podia ver o mar, “Eles apenas que você está por sua conta, e enchem sua mente de mentiras!”, mas havia o solo que, mesmo sombrio, iluminava mais que o sol, e aí eu atravessei o bairro, e vi a praça, e vi o coreto, com trepadeiras em volta e colunatas e brilhos de flores que pareciam arranjos florais, feitos ali mesmo, por capricho da tal natureza e pensei que um dia eu ainda poderia cantar ali encima, e pedalei com mais ardor e cheguei ao conservatório da cidade e fiz minha inscrição, mas não apareci nem à primeira aula, pois mamãe exigiu a minha volta, e quando mamãe Clara Selma exige – então sem discussão!

E assim eu não aprendi a cantar, eu até experimento, mas me falta uma certa técnica e o que posso fazer?, hoje eu desisto de tudo, não tenho ânimo nem para arrumar o meu guarda-roupa, nem para recopiar minhas poesias, e comentava isso com o Henrique, quando encontrei o cara no bar do Santa Efigênia, e o Oto conversava com o Erik, junto ao bilhar, e eu e o Henrique só no vinho, quase na calçada, e ele dizia que “toda banda gótica, se fosse autêntica, se vivessem mesmo o que escrevem e cantam, deveriam acabar em suicídios coletivos, com os músicos se matando”, pois para o henrique as bandas sombrias, de estilo deprê, só se legitimavam com a morte, o funesto com funesto e por isso considerava seriamente o Ian Curtis, o do Joy Division, e acusava as bandas góticas de hoje de só pensarem em ganhar dinheiro, “o cara pode até pensar em se matar, quando começa a banda, mas por que concretizar o propósito depois que a banda faz sucesso e vira uma fonte de grana?”, e eu dizia, “Mas você deve imaginar que esses caras são sempre tristes, mas é tudo pose!”, e ele dizia, “Se levassem a depressão à sério, os músicos se matariam, e os fãs também, e o nível de suicídio acompanharia o nível de sucesso, e se os fãs compreendessem a tortura do vocalista, a profundidade das letras, mas não!, os caras vão no que chamam “festa gótica”, vão beber e fumar, “curtir uma viagem”, e ouvindo os desabafos de Nick Cave, com total apatia”, e dizia mais, “som deprê é pra se ouvir no cemitério, sobre as lápides”, e eu dizia, “Pois eu ouço no escuro, lá no cantinho do quarto, com a porta trancada”, ele olhava ao redor, deitava olhares aos jovens a beberem e se drogarem, junto ao som estridente, com suas vidas sem sentido, que “em breve se aliariam aos seus carrascos, amanhã os adultos apáticos e resignados num sistema mercenário, o mesmo que prometem enfrentar”, e eu ouvia tudo com m vazio no estômago, no coração, sei lá!, aquela voz que acariciava e por isso me assustava, e por estar longe dos meus amigos, pois julgava serem meus amigos, é que o Henrique se aproximou e desabafou, “Pobres crianças!”, e eu observava as crianças, hoje rebeldes, soturnas, cheias de asperidades, ouvindo um som macabro, mas e daí? O que construíram?, é só uma fase, não é?, só um preâmbulo antes do “mundo adulto”, onde arrumam um emprego, um noivo ou uma noiva, e filhos e filhas e pagam honestamente os seus impostos, os “honrados cidadãos”, e o Henrique interrompia, lúgubre, “E se o Inferno se abrisse gora sob os seus pés? Quantos realmente se deixariam cair?”, e acusando a todos de não saberem “dar sentido” às suas existências, não criarem um “sentido”, pois apenas negam o “sentido” dos pais, dos adultos, dos professores, mas não criam um “novo sentido” e acabam voltando aos dogmas e moralismos que criticavam, e a adolescência acaba não passando de uma fantasia, uma “mera concessão dos adultos”, e eu já me sentia cúmplice ao seu lado, e contra os “meus amigos”!, e pensava que ele me consideraria uma amiga, mas para o Henrique a amizade é um “ideal”, muito improvável, e ele disse, sondando os meus olhos, “Não sou seu amigo. Sou seu confidente.”

E os muros do colégio militar se erguem enormes, verdadeiras muralhas e sufocam a gente, opressiva! E nem um vulto nas ruas, nem humano, nem canino, nem felino, um roedor talvez, e os vôos dos morcegos, tudo opressivo – e dá vontade de fugir, do jeito quando o Oto se enfurece, “Se quer ficar assim!”, e com aquele olhar, “Não tenho medo de cara feia!”, gritava, e eu gritei também, “Na sua casa não tem espelho, não? É a sua cara fechada é que me deixa assim. É o tempo todo assim. Depois sou eu quem irrita as pessoas! Você é que só de te olhar eu já tenho calafrios!”, e aí ele, com aquele sorriso irônico, “E eu sei que você adora isso!”. E ela se afasta, e continuou a limpeza pois havia combinado, ela e Oto, de limparem o local onde seria o ensaio do fim-de-semana, na garagem do Toni, e os outros chegariam à noite com os instrumentos, e ela marcou às três horas, pois às seis tudo já estaria limpo e seco, e ela esperou o Oto por meia hora, então começou a limpar, sozinha mesmo, e o Oto só chegou às quatro, sozinho, irritado, pois o Víctor é um “tratante”, um “enrolado”, e apontando defeitos no trabalho dela, e que “isso aqui é trabalho pra homem”, e saiu esguichando água em tudo e esfregando udo de novo, e ela reclama, “Pô! Você demora aparecer e vem atrapalhar o serviço!”, e ele com aqueles olhares de Grande Inquisidor, e ela se defendendo, “Por que está me olhando assim?”, “Já vejo qual é o seu trauma.”, “E o meu trauma é esse seu ar de juiz, é igual a minha mãe, do jeito que ela faz comigo! Aí você faz também!”, “E você nessa teimosia.”, “E você julga as pessoas assim, nem tenta entender! Apedreja para depois saber qual era o pecado!”, “Não vou discutir. Pode ficar aí falando até de noite.”, “É por isso que esse mundo é essa guerra! Ninguém procura compreender o outro!”, e ele em silêncio, e ela não terminou ainda, “Todo mundo se acha o tal, o dono da verdade, e o outro é o imbecil, o falso, o infiel! Aí cada um pega a sua arma e - droga! - para afirmar a si próprias, porque precisam desqualificar o outro, negar e esmagar!”, e aí ele disse, “Não tenho medo de cara feia!”

E eu fiquei com medo, e se ele me batesse?, igual a vizinha que apanha do marido, e todo mundo sabe e ela não faz nada, parece que gosta!, levando tapa na cara e andando nas ruas depois, eu é que teria vergonha!, e Raíssa também ficava, ainda mais é nervosa, toda revoltada, e quando soube então que o marido foi punido com o pagamento de uma cesta básica!, e assim mulher denuncia a agressão, mas o marido, crendo na impunidade, continuava aterrorizando a coitada, e Raíssa ficava perplexa, “Ora, se o castigo é uma cesta básica, então nada impede que a mulher apanhe todo fim de semana! O cara bate na mulher e depois entrega a sacola da feira!”

E assim, falando sozinha, cabisbaixa, Sônia Regina volta para casa, descendo a ladeira, ao longo da ferrovia, pensando no quanto é jovem, no quanto é bela, mas não há ninguém disposto a ouvir, para um minuto de afeto, não há ninguém a quem ela possa entregar tudo o que é, e comunicar tudo o que é, e revelar, enfim, o que sente e o que sofre, o que aprendeu e o que ensinou, revelar, enfim, tudo o que silenciou. E seus passos preenchem o vazio da rua, a ladeira onde vultos felinos escalam os muros rachados por ramagens, e um distante sonido indica o aproximar de um metrô, e as janelas às escuras revelam o avanço das horas e o sono dos povos. “A quem entregar tudo o que sou?

E Sônia nota o brilho das unhas, e a palidez dos dedos, e ela, em breve, vai fazer dezenove, e aí ela já envelhece, aquele corpo que produz tanta aflição em certo rapaz, e tanta possessividade em outro, e tanta inquietação em ainda outro, e ela está em seu ápice, daqui por diante só há o envelhecer, o fenecer, pois ela está no apogeu da “curva normal”, e depois do clímax, vem o “anti-clímax”, o “aftermath”, sim, depois da elevação vem a queda!

A queda, a decadência. Assim diz um amargurado Oto Marques. Que essa civilização a proclamar-se “cristã” ( e com que nojo ele diz essa palavra! ) é uma degeneração. E Sônia até pode compreender. Quando Oto ouvia as sonoridades opressivas, e ela ao seu lado, cabeça pesada, sob o lúgubre da voz, a lamentar o reino perdido dos deuses, do grande deus-caolho pregado na árvore do mundo, ladeado por dois corvos, e de como a cruz venceu a fúria dos guerreiros, humilhados por rezas e incensos, quando os cascos de seus cavalos pisavam as terra distantes, quando seus barcos imensos singravam os mares, assustando as aldeias dos litorais, deixando as praias em chamas, enquanto entoavam hinos ao grande deus do trovão e da guerra, em sua carruagem puxada por furiosos bodes, que trovejavam nas cúpulas do céu, nas tempestades que estremeciam os corações dos homens.

E o que Oto fazia? Parecia sofrer? E sofria por derrotas de mil anos atrás, quando as tribos do norte foram humilhadas diante da cruz, e os povos vikings se ajoelharem diante dos ícones da fraqueza e do remorso, sim, essas tribos de homens valorosos então humilhados diante de quimeras sanificadas de um deus-homem sacrificado, e o último baluarte caíra, desde Carlos, o Magno, que cristianizara os saxões pelo fogo e pela espada, enquanto seus cavaleiros faziam o sinal-da-cruz e atacavam e saqueavam e violentavam e queimavam em nome de um deus de amor e justiça, que enviou o seu filho como “boa-nova”, mas eis o fogo e o enxofre, espada coberta de sangue de inocentes, de mulheres e crianças, a deixarem seus corpos para os corvos e bestas do campo, enquanto os arqueiros julgavam pacificar os povos e os lanceiros julgam propagar o evangelho, quando seus olhos brilham no ardor do ódio, no delírio da cobiça, impelidos por uma sede de poder.

E as aldeias e suas crianças, e seus bardos e seus velhos e seus ferreiros e seus animais e seus guerreiros e seus sacerdotes e suas rendeiras e suas promessas de futuro, tudo agora pisado pelos cavalos com seus cavaleiros, arqueiros, lanceiros, escudeiros, com enormes cruzes bordadas, confiantes numa ousadia de domínio, antes de descerem ao calor abrasante dos desertos, com suas areias ondulantes, suas paisagens andarilhas, suas odaliscas cheias de mistérios, seus pastores de cabras, seus mascates em camelos, as cidades e suas mil e uma noites, antes de tudo isso, as excursões ao nórdico, o sangue no gelo, os santuários dos deuses em chamas, as sacerdotisas apunhaladas, as velhas lendas transmutadas em heresias, em fontes de blasfêmias, quando a Deusa de três faces foi apedrejada como puta, em praça pública, não mais Virgem-Mãe-Anciã, não Guerreira-Parteira-Curadeira, mas símbolo do lado escuro da luz, como se somente o deus do mediterrâneo agora dominasse tudo, auxiliado por uma puta sagrada, sendo virgem mesmo sendo mãe, pálida figura a usurpar o trono, agora a proclamarem Senhora e Nossa!, e tudo isso, em tom ressentido Oto dizia, e ela cuidava em ouvir, assustada quando ele abandona sua frieza em momentos, como então, em ardores de ira acariciada, há séculos adormecida em seu peito de derrotado bárbaro!

O vazio e o silêncio das ruas. O sobrado se destaca passos adiante. Talvez sua mãe Clara Selma ainda esteja acordada, ela sempre alerta, e não perderia uma oportunidade de torturar a filha, pois é quase meia-noite e a menina a vaguear por aí, “Não tem noção do perigo, não?”, lá vai ela para o quarto sob o bombardeio de sílabas, sem sequer um “boa-noite-minha-filha”, mas Sônia Regina continua, não atenta aos passos, pois que vagarosos a assustariam, mas a meditar no mistério do amor, de amar e ser amada, quando consideramos o amado um ser supremo, acima de tudo, acima de todos os outros, e procura a aceitação deste outro, cumprir as expectativas, desejando “estar à altura”, e se o amado corresponde à paixão, o apaixonado se eleva, e considera-se à partir da considerações que o amado dedica, e há um enlace, eu e o outro somos um, mas se há um rompimento, a separação!, abre-se um abismo entre o eu e o outro, e a perda da consideração do outro afeta a consideração do eu por si mesmo, “Se o outro não gota de mim, eu também não gosto.”, Sônia murmura, ao retirar a chave do bolso, com olhares acima do muro, no rasgo de cada janela, a perceber o ressonar da casa que dorme às escuras.
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(fim do Capítulo V)
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LdeM
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