quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Náuseas de Estudante - Capítulo 1...

... ...


Só encontraram o Henri (o Bordeaux, esclareço) depois.Aliás, o francês é que encontrou os amigos.

- Desceu do pombal, hein. – Darío sem delongas. – Traduziu o lance?

O francês se voltou: olhar dançando de um para o outro. Soltou um “Salut” para HD e mastigava um estranho dialeto, antes de replicar :

- Oui, quero dizê, quase tout. Regarde moi, je suis trés fatigue. Je dors rarement. Et lês journaux ?

Notando que HD nada entendera, Darío esclareceu, lacônico.

- Outro insone. Anda cansado. Está aí querendo os jornais de hoje. – abriu a porta – Prometeu traduzir uns poemas do Prévert e até hoje! Nem adiantou eu prometer traduzir uns versos do Drummond. – E voltando-se para Henri – Como é mesmo aquele trecho lá do “Paster Noster” ?

- “Notre Pére qui êtes aux cieux – Restez – y
Et nous nous resterons sur la terre


O francês recitava e Darío ria. – boa essa! Um “sprit de finesse” esse Prévert! E depois todos nós com “toutes les marveilles du monde”! ha, ha, genial!

Mesmo nada entendendo, HD percebeu o “espírito” da coisa: - “Permanecei lá” !

Janelas abertas, luz oblíqua, agora HD podia melhor perceber aquela presença de quarto de hospital, bloco cirúrgico. A pia modesta junto a janela apenas realça a impressão – ali, entre os leitos, uma enfermeira distribuía atenção, e umedecia naquela pia o pano que deitaria sobre uma testa febril.

Livros se espalham sobre a mesa, disputam as gavetas com as roupas, os cantos com revistas e jornais. Livros que Darío não conseguia guardar, precisava de todos sempre à mão, a sublinhar, pinçar trechos, quando não os emprestava – para jamais vê-los novamente.

- Que eu digo, que eu digo, il s’agit de tes intérets! (Trata-se de teus interesses.)

Darío entrara afastando os móveis, com Henri nos calcanhares. – Vous pouvez m’aider! (você pode me ajudar!) Elle ne va pas avec moi ... nous ne sommes pas d’accord... Nous allons... (Ela não vai comigo... Nós não estamos de acordo... Nós vamos...)

- Il faut finir ça ! (É preciso acabar isso!)

O outro insistia, só Darío para ajuda-lo. – Elle ne sait pas... (Ela não sabe...)

De costas para a porta aberta, folheando as revistas , HD só notou a presença quando a sombra caiu sobre ele.

- Quem vai tocar hoje à noite ?

HD reconheceu o sonâmbulo, ao qual Darío chamava de Veneza.

- Ora, e eu sei? – Darío pronto a esbravejar. – Que me importa! (o caso é que implorava para que o deixassem estudar. Ajeitava-se na cadeira, cotovelos sobre a mesa, mãos comprimidas contra os ouvidos) Mas não havia jeito – sempre entrava outro.

- De novo a turma da Rosália? Modinha de violão?

- Veneza? – HD sem ocultar a curiosidade. – E essa bossa de nordestino?

Darío havia aberto o dicionário de espanhol para traduzir Octavio Paz, mas ainda foi cordial – Pois é. Então. Recife, a Veneza brasileira. É de lá que saiu esse cabra, esse retirante, esse Severino. – esclareceu e voltou a “Piedra do Sol”.

Por momentos ninguém incomodou. Só se ouvia o folhear célere dos dicionários, ou lento – das revistas. Henri acomodou-se na segunda cama, lendo uma antologia.

Uma gramática de espanhol até atraiu a atenção de HD, yo he insistido, he insistido, hemos insistido, han insistido.

- Vamos traduzir o Paz.

Houve realmente paz. Naquela viagem ao México pouco importava se os demais fossem discutir ou andar às tontas pelos corredores.



A tardinha, Darío lembrou da inadiável necessidade de ir lavar suas limitadas roupas. Entardecer cálido mas suavizado pelas árvores do jardim. Quando o sol chegava era filtrado por entre os emaranhados de ramos. Darío, inclinado sobre o tanque, ensaboava os panos, irritado. HD entendia. Pouca grana, curso pesado, vida árdua, colegas inoportunos.

- Pergunto-me, como é que você consegue estudar.

- Poderia viver de portas fechadas. Ou cavar um fosso e suspender a ponte elevadiça.

(Na verdade, olhando daqui, parecem dois aldeões medievais lavando roupa numa fonte, tendo ao fundo os muros do castelo.)

- Não, não é isso. Mas é que é meio nonsense lavar roupa quando o sol vai indo embora.

- “Tudo tem um tempo debaixo do sol.” Eclesiastes. Não dormir na hora de lavar roupa, não lavar roupa na hora de estudar, não estudar na hora de dormir. Ah, eu quando aqui cheguei, tentei seguir, devotadamente, as horas canônicas, os conselhos de mamãe – e batia, ainda mais enérgico, as calças – Mas um dia a desordem vem te visitar. Novas faces, convites irrecusáveis, promessas de prazeres. – olhou para HD, mas capturando imagens na memória. – É como sair de Besançon para fazer carreira em Paris.

- O tédio ou a insônia?

- Não. O tédio e a insônia. Lado a lado. Um belo par, aliás.

- É porque você quer tudo, gozar tudo, estar em todas.

Darío concordou. – É tentacular. E não há tempo.

- Aí você começa a sacrificar o sono.

Darío olhar baixo, mais próximo. – insônia por não suportar o tédio. Que aliás, é pior pecado.

- Eu vencia o tédio, quando era insuportável, em caminhadas pelos campos, a mochila cheia de bolachas ou fatias de torta. Rumo às montanhas. Apontava para uma, lá no horizonte, e seguia, de carona, às vezes. Subia, apenas para ver mais montanhas – um mar de morros. A marca de estradas de terra, poeira, fazendas sem dono, trabalhadores sem terra, pomares paradisíacos detrás de velhas casas de madeira com rodas d’água, cercadas de plantações de milho, ou algodão, sei lá, infinidades, temendo o latir dos cães. Tudo porque apontava para uma colina e dizia, “É pra lá que eu vou”.

- Eu espero ir para Pasárgada.

E as roupas, aos poucos, ocupavam os varais. Muitos já invadidos pelas trepadeiras.

- Arcadismo. A bela Marília. Só lhe falta a bela Marília.

HD tentou achar alguma insinuação na frase. Arriscou.

- Você ainda se lembra da Sandra ?

Darío, que subia as escadarias, se voltou. – Parece que você tem algo a dizer.

- Sim, mas é uma longa história.



(...)

LdeM

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

(p1) Náuseas de Estudante (c.1)

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Quase tropeçando nos gatos, HD seguia Darío pelo jardim, pisando sem cuidados nos arbustos rasteiros. Haviam passado pelas masmorras (como eles diziam), onde Darío insistira com Veneza (aquele sonâmbulo que guiara HD pela manhã) sobre a importância da alimentação em horas regulares, em vão.

Darío olhava a vegetação sem timidez, como se em posse de uma câmera fotográfica – procurando ângulos, enquadramentos, incidência de luz, penumbra e contraste. Fechava um olho, a inclinar a cabeça, joelhos dobrados. A síndrome da influência.

- Até concordo que lê seja um bom fotografo (referia-se certamente ao tal Mafra) Explora o jogo de luz e sombra, colhe o momento exato, com um olhar oportunista. Mas fotografa somente futilidades. É só lhe parecer ‘bonito’ que ajusta o foco e dispara o click.

Com a ponta do tênis se ocupava em afastar os galhos de uma samambaia manhosa, para deixar expostas as raízes do jequitibá a exibir suas reentrâncias, também as feridas e as deformidades.

- Minha idéia é flagra os anti-cartões-postais. Aquilo que se acha oculto, em qualquer cidade que seja – as fendas, os recônditos, os becos-escuros (onde “explode a violência" ), os puteiros, os lixões,os vultos sob os viadutos, os pivetes na porta do parque,os mendigos debaixo das marquises.

- O que você quer é expor as chagas!

- Que só não vê quem não quer.

E saíam novamente no mundo pavimentado, rumo à fila do bandejão. Destaca-se um grupinho de belas jovens, todas de branco em gracejos, meio a comentários sobre a intervenção cirúrgicas, infindas em minúcias – isso na hora do almoço! Não demoraram em entrar – e a fila movimentou-se.

Equilibrando os bandejões, acomodaram-se, vendo lá na mas vazia, a um canto, Mafra acompanhando uma colega. “Um aranha mesmo.”

HD olha curioso o prato de Darío – que se desviara da moça a servir as carnes.

- Continua herbívoro, percebo.

- Então, Hector, o que andou fazendo lá nos subúrbios?

- Um pouco de tudo: anotando pensamentos (igual Pascal), andando pela zona rural, seguindo os dormentes da ferrovia, vivendo on the road, dormindo nos bancos de praça, sei lá. Tentei ser vendedor – e não vendi nem pro café. O Camargos – você se lembra dele? – arrumou ( gente fina,ele) uma vaga de balconista. Loja de peças. Varrendo a loja, uma bela manhã, fui possuído pela idéia : o jeito era estudar mesmo. Abria apostilas, atendia, uma equação, bom dia, uma engrenagem. Li o Machado, com seu louco Quincas, o Pompéia, interno do Ateneu, Lima Barreto com seu Quaresma, também o Bandeira, indo pra Pasárgada, e o Sabino com seu mentecapto Viramundo. Descobri um Eça mais interessante - a relíquia trazida da Terra Santa, as inovações de Paris e a placidez dos campos. Li uns franceses. Flaubert, e a sonhadora, enfim frustrada, Madame Bovary. Stendhal, com o audacioso Julien Sorel – que calhamaço! – ainda nem terminei. Rimbaud, que não era sério aos dezessete... Ah, e li os primeiros passos da via crucis do Senhor Bloom...

- Joyce. Hum. Proust? Não? Necessário. – Darío mastigava.

E HD notou que já falara demais ao perceber que a comida desaparecia no bandejão do outro. – Quase vou esquecendo de comer...



No corredor, ao voltarem, receberam o sorriso de uma colega.

- É amiga do chileno? – HD pergunta, ao notar traços estrangeiros.

- De certa forma. Mas esta Dulcinéia aí é peruana. Digo: Alicia se chama esta doce incaica. Notou os traços indígenas, não? Mas também uma certa languidez hispânica ? Os mistérios do conquistado e o arrojo do conquistador ? – Darío sem qualquer exaltação, enquanto recolhia umas revistas e voltava para o corredor – Das Alturas de Machu Pichu!

Esmurra uma porta no corredor principal. – Tenho que devolver estas revistas para este crápula!

Mas ninguém atendeu, crápula algum apareceu. – Deve estar é trepado no pombal. – Darío golpeia a própria testa – Vamos pro jardim. Vão encher a piscina hoje. O Bordô ta lá!



Não estava. E o que Darío classificara de ‘piscina’ não passava de um tanque simples onde a água – onde as folhas secas boiavam – não passava do joelho. Divertiam-se molhando um ao outro. Por pouco não molham Darío e as revistas. As tais foram parar nas mãos de HD, quando Darío se perdia no fragor da batalha de jatos d’água.

Debaixo de uma daquelas mangueiras, HD encontrou um tronco abatido, agora já manchado por cicatrizes esverdeadas. Sentado á sombra, alheio, folheava sem pressa. Diálogos em francês entre velhos gauleses. Asterix salva Obelix dos loucos romanos. Ou uma heroína de curvas sensuais. Ou uma gangue de mafiosos abandonando um infeliz a assar a moleira ao sol tórrido. Viajava pela Gália, quando Darío reapareceu. – Esse Bordô é algum colecionador? Exemplares em francês...

Sentia-se um guri lendo gibis – folheando – seduzido por cores, traços febris. A vibração dos gestos. – “ne a guère” é “nenhuma guerra” ?

Mas acontece que algum colega veio arrastar o pobre Darío.


... ...

sábado, 16 de janeiro de 2010

Cap. 1/ Náuseas de Estudante...

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Sílabas hispânicas brotavam do quarto de Darío.

- Quién sabe? Yo te digo que quieren privatizar todo, los rios, lãs montañas, até mis zapatos!

Uma pausa, observa a figura esguia de HD, esboça um cumprimento gestual. Tinha algo de febril no olhar. (HD lembrou de García Márquez e de um certo poema de Neruda) Só não era mais pálido que o sujeito que roncava lá no canto.

- Ora, colega, siéntese!

Darío concordava, ainda que entediado. – Sei, sei. É pra emagrecer o Estado, dizem. Que as estatais não dão lucro.. Olha aí a universidade...

O visitante se voltava para HD, sentado na beirada da cama:

- Pero é o que digo. Não é diferente de mi país, todo el mundo sabe. – e novamente para Darío. – Todo vendido, todo pago. Investimento social és nulo, no es verdad ? nada de controle! O mercado dever ser libre! Não é o que ellos dicén?

- Pois é, e os ianques querem o livre comércio - livre para eles, claro. Em maio, os banqueiros vão escalar os Andes. O que não conseguiram aqui, eles vão insistir lá. – Darío mascava as sílabas junto com as bolachas. – Livre comércio: lobo livre no rebanho livre.

- ! como no! Le hombre do saxofone vine até tocar por esas bandas!

- Mas o congresso deles não aprovou a rapidinha e o golpe vai ser em outra frente. – Darío, que até parecia se animar, elevava a voz – Afunda o mercado comum!

Então não deixou o outro falar: - O Governo só preocupado com o maremoto que vem da Ásia. E despeja pacote fiscal, taxas de juro, e mais medida provisória, e tudo quanto é reforma! E tudo porque somos reféns de, como dizem?, um ataque especulativo!

- Tudo és desculpa, estoy dicendo. Están a privatizar todo. Veja a Universitat. Van vendendo aos poucos: los bandejões, los auditórios, lãs lanchonetes, los estacionamentos, las moradias...

- As moradias. – A voz de Darío era o eco. – Que os estudantes morem nas ruas! Sob as marquises! Que importa os estudantes?

- Si, si. Que importa! Se queren nos expulsar!

HD ficou curioso. – Expulsar?

E Darío começou a explicar, didaticamente, como aquilo tudo era irregular, que o prédio fora um hospital para tratamento de câncer, que haviam desativado para reformas, mas os estudantes começaram a ocupar, que Borges da Costa fora um dos fundadores da Faculdade de Medicina, e outros etcs, que HD logo esqueceu, que lembraram, elas as autoridades, do prédio, do qual falamos, quando os estudantes começaram a chegar. Não tinham onde morar, estavam cansados de promessas. Agora a reitoria quer negociar – mas assim: a gente pagando uma vaga num prédio alugado por ele – enquanto constroem a moradia.
- O que pedimos é uma moradia decente, e barata (e sem baratas! – atalhou o Castillo) Acham que estamos orgulhosos disso aqui. – Darío se levanta para se reabastecer de café. – isso aqui é o desespero, é a resistência. A Comuna de Paris. Uma comunidade hippie !

No silêncio da pausa ouviram o dorminhoco resfolegar, resmungando, se virando na cama. Sempre passeando o olhar pelo quarto – nas paredes além das fotos haviam mapas, um catálogo cartográfico, um Atlas completo, a constar, Europa, Rússia européia, Rússia asiática, China e Austrália, North America, África, Panamá a Cuesta del Fuego – no chão, sem cerimônias, papéis rasgados, embolados, folhetos pisados, jornais dobrados. “Fuga de cérebros”, em garrafais, na capa de uma revista.
- Triste, mas é verdade, Hector. Todos indo para as particulares. Darío resumia a reportagem que HD folheava. – O salário é baixo, não incentivam os mais produtivos. Daí as faculdades particulares – empresas de competição e lucros. O professor então cumpre o tempo de serviço e se aposenta – e vai para as particulares. É aí que ganham mesmo – o dobro, até! Para nós, nas públicas, os inexperientes contratados. – Arrastava a cadeira, aproximando-se: - Olhe, Hector, não quero te desanimar. Você que chega agora.. agora que o barco está afundando.

“Ora, eu não tenho ilusões”, HD até pensou em dizer, mas comentou: - Para onde iria quem não passa na públicas?

- Certo, certo. As particulares surgem daí: das sobras. Vestibular na federal: vinte por vaga! É ridículo! Mas não ampliaram as públicas – abriram concessões para as privadas...

A voz castelhana ironizava: - Privadas mesmo ...

- Abriram concessões. – continuava Darío sem dar importância ao chileno. – Mas o problema continua. As públicas estão cambaleando, apesar de toda a pesquisa que produzem, e as particulares não são alternativas – qualidade questionável...

- Só técnico, colega, apenas gado engordado pra el mercado.

- Sim, produzem encanudados ao gosto do mercado.se dá lucro temos o curso, se não... bem, reduzimos o custo.

- A quién la filosofia dá lucro, colega?

Darío se levantou, riso solto. – É mesmo! Pra que serve filosofia? – e voltando-se para HD, sem entender. – É que o Castillo aqui estuda filosofia política e às vezes se sente inútil. – e para o filósofo – Por que não estuda Odontologia, Castillo? Só assim vai deixar todo mundo de boca aberta!

- Qué tiene usted? Mi paciencia tiene limite! – E olhava agora HD, para concluir a apresentação tardia e pelas metades. – E o colega estuda...

- Não, ainda não. Estou meio a sandice do vestibular ainda.

Darío dizia ao Castillo : - É. O Hector enfrentando estas benditas provas. – Inclinando-se para HD – História mesmo? Não é surpresa. Já trilhava o caminho. Sabe que a Lia voltou, pro mestrado? Encontrei a dona toda meditativa pelos corredores...

Sim. Lia. A professora de História. Aulas lúcidas sobre a Revolução de 30. documentos sobre a corrente migratória para o Brasil. Condições das mineradoras no estado. Greves operárias da década de 80. construção da Capital. Revoluções, lutas de classes, exploração. Antes da formatura fizeram uma visita a professora, ela mencionou a extensa biografia de Lênin, além do movimento dos camponeses.

- Precisamos é reescrever a história desse país. – dizia Darío, mais didático que exaltado. – Cheia de rasuras e lacunas, de caixas-dois e “forças ocultas”. Pensou bem, Hector. Alguém para colocar ordem nessa fábula toda. Às vezes dá uma saudade de um vulto como o do Sérgio Buarque de Hollanda..
- “História és el pesadelo del qual yo quiero despertar” – Castillo, arriscando uma citação hispânica de Joyce.

- Igual viver na social-democracia brasileira. Mais neoliberal impossível.

- E pensar que eu votei no Sociólogo, só pra ouvir um sonoro “Esqueçam tudo o que escrevi”. A gente se frustra quando idealiza. – HD não segura o desabafo.

- Neoliberalismo que o teu país sofre, señior Castillo. O seu generalíssimo de punho mais pesado que o da dama de ferro. – E voltando-se para HD, ao qual agora Castillo dava pouca atenção. – Veja isso, Hector, a trinta anos a esquerda brasileira, a fina flor da intelligentsia, exilada, passeava pelas alamedas de Santiago, onde florescia uma social-democracia realmente ‘social’, se me entendem. O homem-da-reeleição (o nosso Sociólogo, o nosso Sartre), e os que agora são seus ministros, andavam por lá também. Aí o generalíssimo, bom discípulo do autoritarismo latino-americano - lembrando a História enquanto farsa do golpe franquista em cima da república espanhola – incendiando a democracia, pôs fogo no paiol, digo, na casa da moeda. A esquerda dividida – toda casa dividida é dominada – sem necessidade de AI-5, vejam – e deixemos os ianques de fora, essa de operação Condor – e o gatilho neoliberal mais rápido do oeste! Nem a Tatcher, meus amigos!

Darío fala calmo, ainda que irônico, sem gestos (que são próprios de Castillo), enquanto HD vai folheando a revista.

- Que desea usted? – Castillo só falava aqui com Darío – Quien no convence com ideas, oprime com ferro y fuego. Diga-me la verdad, colega. Vámonos ficar nessa de social-democrata ou neoliberal como nos años 30 se era fascista ou comunista?

Agora era Darío quem não dava atenção a Castillo, agora que Hector desamassava uns recortes de jornal, com artigos sobre a Área de Livre Comércio.

- Você precisava ver, Hector, a tal reunião de Cúpula! Só gringo engravatado, limousines desfilando, o nosso sociólogo discursando, o mercado nacional, corando, fechando suas pernas de virgem deslumbrada. Nenhum mendigo, nada de pivete. Coisa de ianque ver. Bela maquilagem pra inglês ver, a nossa Belô Cem...

- Sem vergonha, claro.

À voz todos se voltaram. Finalmente haviam incomodado o fotógrafo. Alisava uma camisa – catando os cigarros que caíam do bolso – esfregava o rosto com a manga toda suja. Quando se aproximou, com suas olheiras obscenas, Darío cutucou HD :

- Este é o Mafra. Vulgo Aranha. Porque quando se agarra em você, ah, meu caro, aí não solta mais.

- Não sei quanto a vocês, mas estou com fome. – E saiu, sem cerimônias.

- Um sonâmbulo ... – Darío gracejava, recolhendo a papelada. – Bem, vámonos !

- Que van ustedes a hacer? – o chileno se levantou bruscamente.
- Ora, Castillo, vamos almoçar!

Pois tinham percebido que era quase meio dia.


(continua)

domingo, 10 de janeiro de 2010

Náuseas de Estudante - Capítulo 1


- Vai usar o telefone?

A moça ao lado, quando ele, diante do orelhão, desdobra um papel um tanto amarrotado, um endereço, um nome, “Darío”.



Afastou-se, num gesto de desculpa, atravessou para o lado do parque, junto com muitos outros, e andou lento, cobiçando a vegetação vicejante, e sobrevivente, atrás das grades – tal numa vitrine, igual aquela onde vão expostas as esculturas, não de lenho mas de gesso, no palácio das muitas artes, nas amplas janelas sobre o espelho d’água. Ali, em grupinhos, o público se aglomera, espera, hoje duas peças em cartaz.

Seguindo pelas alamedas, área hospitalar adentro, calçadas arruinadas, ali mais público: outro teatro, outra peça, a Marília do poeta Dirceu, meio ao clamor das ambulâncias em suas manobras e emergências : o tempo urge: uma vida se esvai. Desviou-se rápido de outro mendigo, tropeçou numas raízes (daquela alameda centenária) e viu o colégio – o Pedro II – a residência anotada.

A moradia? O Borges? O segurança indicou a ela à esquerda. Um grupo de enfermeiras a confabular sob as sombras generosas. Entre os muitos veículos, um garoto esfregava um pára-brisa. Ali, ao fundo, meio aquelas árvores anciãs e trepadeiras indecorosas, na manta crepuscular de ramos entrelaçadas, um casarão cercado por gatos.




O porteiro folheou uma listagem. Na entrada um casal a rir junto ao orelhão. Alguma piada infame do.

- O número tal e tal.

E indicou ali o corredor, lá no fundo a escada.

O teto alto, o corredor estreito – sombrio. Kafka. Cartazes, bilhetes em letras exibidas. Paredes pinchadas com hierógrifos e blasfêmias. Painéis com avisos, “modinha de viola ao entardecer”, “estudo dos sonhos”, “terapia junguiana”, “reunião do condomínio”, e mais caricaturas, grafites –

Ao fim da escada, o subsolo?, um porão, um calabouço, as portas das masmorras – escuridão úmida...

Os ditos algarismos : bateu.

Porta rangente que se abre, um vulto com ares sonolentos.

- O Darío ? Pó, morava aqui sim, mas não é que mudou aí pelo meio da semana – disse entre bocejos – Peraí que eu te levo ao outro quarto, é lá em cima. Momentinho.

O camarada deu uma escovada no cabelo e dignou-se a vestir uma bermuda. Escalaram os mesmos degraus de tábuas gementes, o mesmo corredor. Era até próximo a portaria, a segunda porta no corredor secundário à esquerda de quem entrava. Um silêncio. Kafka. Demoraram atender, mas só ao fim de um momento ali estava outra boca bocejante.

Meio pálido, meio dormindo, mesmo aparentando atenção, e algo despenteado, o outro arregalou as órbitas e num esgar bramiu:

- Hector! Pô!, Hector, você some, e quando aparece vem me tirar da cama!

Sim, o velho Darío Sabine, ainda que um tanto amarrotado.


O guia sonâmbulo recolheu-se a sua cela, e Hector adentrava o quarto amplo, porém abafado, que recendia a sono insaciado. A luz entrava tímida pelas duas janelas meio cerradas, derramando reflexos nas fotos e cartazes dispersos pelas altíssimas paredes brancas. No centro, uma mesa e três cadeiras.

- Pô, dez horas! Quando cheguei eram mais de três. – e foi lavar o rosto numa pia minúscula ao lado da janela, onde antigamente os médicos desinfetavam as mãos, antes de atenderem a um paciente.

Aí HD percebeu que haviam duas camas, lado a lado, e na outra encostada à parede, alguém ressonava. Um vulto magro, ainda mais pálido, nu da cintura pra cima. Darío, meio a suas ablusões, engasgado pelo creme dental, nada comentou. Nem quando retornou do banheiro, que era lá pros fins do corredor..

- Mais de um ano, hein, Hector, em suas viagens! – dizia, ocupado com a toalha – Recebeu as cartas todas? E o Seu Ramiro ?

HD, que passeava os olhos por aquele verdadeiro álbum de fotos colado pelas paredes, ia gagueja suas respostas, frases plenas de pausas. – Aquele monte de cartas? Se eu fosse responder tudo, como é que eu ia estudar? Ah, o meu pai! Do mesmo jeito, só criticando. Perdeu a estabilidade no cargo – a pqp ! com o funcionalismo público! - vive resmungando.

- Ora, até os gatos aqui são modelos.

Darío nem se incomodou com a quebra de assunto – o comentário atravessado de HD – e continuou a arrumação da cama, enquanto a água para o café borbulhava e um pacote de bolachas seguia de mão em mão.

- Ah, essas são fotos dele – e apontava a cama junto a parede. – fotografa qualquer bobagem. Para ele “as minúcias mais banais são detalhes preciosos na verdadeira colcha de retalhos que é a Arte.”

- Não é ruim não. Isto aqui dá até uma exposição. – HD dizia, coçando o queixo, com ares de julgar a obra.

Darío riu. – Era o que faltava! Agora temos o crítico de arte... Por mim iam pro fogo. Tenho outras idéias... Mas beba aqui o seu café. O meu é daqueles amargos.

Hector tirou a camisa de flanela e a deixou no encosto da cadeira, na qual se sentou. Darío bebia o café, sorvendo com vagar, calado. Talvez invocasse lá suas lembranças para reciclar assunto.

Naquela névoa de sono, Darío não fez qualquer menção à turma do colégio, e HD a cismar que ele estava era magoado. Andava afastado, nos estudos, ignorando todos, só falando da faculdade, da capital, não visitava ninguém – às vezes aparecia quando lembrava-se dele, que tinha ideais próximos, mas com menos animo. Agora que conseguira – o curso, a capital, uma bolsa, onde reclinar a cabeça... parecia submerso no enfado.

Levantou-se, a resmungar algo sobre precisar ir ao banheiro, deixando Darío ainda em silencio. HD seguiu o corredor, ao longo da mureta, até o final daquela ala, observando a vegetação resistente lá embaixo, sobrevivente mas generosa, os galhos mais altos ali ao alcance da mão – no que fora tudo antes um imenso parque.

Água fria escorrendo pelo rosto, molhou o cabelo, fios longos já arranhando a base do pescoço, depois bochechos espasmódicos – tirar o gosto de café ... Urinou fartamente.

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

P1 /Náuseas de Estudante - Capítulo 1

Preso a minha classe e a algumas roupas,
vou de branco pela rua cinzenta.

Melancolia, mercadorias espreitam-se.
Devo seguir até o enjôo?

Posso, sem armas, revoltar-me?”



(Carlos Drummond de Andrade, “A Flor e a Náusea”)



Capítulo Um


Encontramos HD num sábado de manhã, surpreendido à porta por um sol inconseqüente, pesando sobre as pálpebras. Numa continência, a mão assim a proteger os olhos, a face ensombreada. Esboça um aceno, gesto comum – Tudo bem.

Respondia ao vendedor de alarmes, moreno alto que lia o jornal ao pé da escada, inevitavelmente bebericando café. Gostava de se apresentar, “Ronaldo, a seu dispor”, sorrindo, orgulhosos, a julgar-se também um craque.

Então uma sombra esguia: o garçom, o do quarto ao lado. Rosto pálido e todas as olheiras. Entrou, alheio, vendo somente, diante de si, uma cama.

Mas a voz detrás do jornal jorrava numa gargalhada. Decerto lia as tirinhas cômicas do Garfield, ou dos Piratas do Tietê.

Lá fora, quando ele finalmente animou-se a sair, no asfalto da ladeira, nenhuma sombra. A luz ofuscava tudo. Foi descendo entre as casas modestas, testemunhas das primeiras décadas. Muros baixos, fachadas e alpendres, e suas linhas floreadas, algo de arabesco. Ali onde os construtores da Capital, os pedreiros e seus serventes, buscavam o sono, o prazer e o esquecimento. Na torre da igreja, o relógio pronto a bater nove horas.

Sobre a avenida, entulhada de lixo e barulho, a passarela, suspensa sobre a ferrovia, sobre o ribeirão-esgoto. Uma senhora, com suas gordas sacolas, seguia à frente, nada ligeira, só atrasava a todos. “Olha o barato, relógio barato, colega!” Pulseiras arco-íris, vidrinhos reluzentes, mostradores digitais. O vendedor e o olhar ansioso, em pronta insistência.

- Não é por nada não, mas prefiro aquele ali – e HD, por cima do ombro, apontava a torre da igreja, que lá na ladeira clamava as nove horas.

A garota passou ao lado, quase se esfregando, junto a mureta. Seu jeito de alisar a calça realçava formas onduladas. Logo eclipsada por um cidadão magro, mochila murcha, em passos agressivos, todo pressa. Então um aperto assim de lado – e passa um casal.

Todo um exército de vendedores se posiciona, naquela passarela da Lagoinha, como chamavam. Gente da estação de metro derramava-se no fluxo constante e mais gente subia desde a Rodoviária. A via estreita, que leva ao. Novo aperto. Todos se acotovelam, junto a mureta, e passantes e passantes – “No meio do caminho havia” – uma balbúrdia, mascates em alguma feira do Oriente.

Um reluzir no corpo envidraçado da Rodoviária, “Suco de laranja!”, “Olha o vale-transporte, vendo e compro!”, “Oito pilhas a um real”, meio a bagagens e impaciência, passos lentos e resmungos.

Andando por ruas entulhadas, gemidos e buzinas, “uma esmola pelo amor de Deus !” Um táxi avança, uma senhora agarra firme a valise, ousa atravessar o “rio de aço do tráfego”. Encolhido, mãos nos bolsos, ambos rasgados, sentindo as unhas nas coxas, “Eu seguia, os punhos nos bolsos rasgados”.

- “Minha única calça tem um furo enorme!”

- O quê ?

Desviou-se do mendigo e, além da companhia de Drummond e Rimbaud, não tinha ninguém. “Oh! Lá lá! Que d’amoures splendides j’ai revées!”, “que lindos amores tenho sonhado!”, traduzia.

Aglomerada sob a escultura de concreto, dilacerada por ângulos, na praça onde cambistas ofereciam mercadorias suspeitas, uma multidão atenta a um sujeito magricela, cheio de arrogância, a provocar, todo capaz de passar por dentro de um aro cravado de afiadas facas pontiagudas. Ao seu lado, sorridente, uma jovem mulher recolhe dinheiro.

Em vão algum abrigo sob semelhante escultura, angulosa, oca, em sua frieza geométrica, ali a pesar sobre a praça. E nem é a paulicéia desvairada, do modernista Mário, “Horríveis as cidades! Vaidades e mais vaidades... Nada de asas! Nada de poesia!...” Desemboca na Afonso Pena o trânsito vertido pelas bordas da praça. Grandes outdoors cobrem as fachadas, a Seguradora, a Loja de Departamentos, assim revestem os edifícios com poses e sorrisos, imagens bem diversas, cores sedutoras, musas e deuses, não os seres desfigurados e tensos que disputavam a calçada esburacada.

As modelos nas capas de revistas em contorsões, as garotas (de carne e osso e maquilagem) diante da vitrine esticam as saias. Um cinema agora um templo. Um cidadão, em sua pressa, quase joga ao chão o cego que ali vende uns bilhetes de prometida sorte. Andar é então ver tão pouco! Prédios cintilantes fazem fundo à maré de passantes, em encontrões, apertos, murmúrios, tropeços nas calçadas irregulares, que o Prefeito prometera restaurar para o Centenário. E ainda as ameaças de demissão no ABC, ou concessões dos sindicatos, ou antes um pássaro na mão do que dois voando.

Sufocado pelos edifícios, engolfado pela turbulência dos autos, o famoso obelisco ereto assoma meio as ondas de roupas multicores,pernas apressadas, gestos hesitantes. Um casaco poído, uma jaqueta vermelha, uma cabeleira loira, um braço e pulseira, mãos e anéis, ou dedos sem esmalte, segura firme uma criança, daquelas bem agitadas. “Oh mãe, eu quero algodão-doce!” A jovem – mãe? – observa as cores, sorri ao sorriso do palhaço – que todos somos – Opa! Uma maleta (uma pasta) acerta-lhe por detrás da perna, Perdão, um terno cinzento, quem habita sob as lentes escuras? Meninha manhosa e reprovação de mãe. Dois garotões de cabelos coloridos carregam suas tábuas com rodinhas. Alguém agita um cartaz junto ao obelisco, e HD somente pode dedicar um olhar fugidio, antes de tropeçar em outro alguém, naquela corrente impetuosa, no vórtice da turba – o sinal aberto está? – atravessando percebe a mão vermelha, então agora é correr, a deslizar por entre os carros, não mais ansiosos que os pedestres, todos empurram-se, em tropeços, hesitares, pisadelas. É cruzar os dedos e a pista dupla. Um olho no povo e outro no cenário.

Os simpáticos anciãos, e seus cabelos brancos, trocam reminiscências diante do café expresso, quando ouviam as próprias vozes ativas num brumoso ontem. Mendigos fazem parte do cartão-postal da igreja São José. Agora, diante da igreja, e seu jardim atrás de grades, HD não pôde desviar-se da face amarrotada do vulto humano que oferecia agulhas para desentupir fogão. Agradeceu, desconversou, ficou olhando as carrancas do índios no alto do edifício Acaiaca (Mal humorados: perderam a terra para a Santa Cruz) e por pouco não acertou a testa num galho, ao insistir em entender os traços de um sobradinho de outras décadas. (O Castelinho é da década de vinte? É verdade que já foi chapelaria?) Sobrados e seus floreados perdidos meio às construções funcionais e monótonas.

Quando olha ao redor, ou desvia-se de um passante mais apressado, é golpeado por um clamor de buzina, e um veículo emerge de um estacionamento em cavernoso subsolo. Sim, os prédios o atraíam, com suas colunas firmes, toques neoclássicos, colunatas de fórum romano, algo de medieval, motivos cristãos ao lado de entes pagãos, anjos e sereias, ali um tritão, ou um Atlas. Um rascunho barroco, um croqui neogótico, estas flores de concreto, que não murcham, entrelaçadas em ramalhetes – e bandeiras tremulantes, e – o relógio da Prefeitura marca nove e um quarto.

- Vai usar o telefone?


Continua...


Leonardo de Magalhaens