quarta-feira, 26 de maio de 2010

final do Capítulo 3 - Náuseas de Estudante


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Antoine Roquetin vive de freqüentar os cafés, onde se permite observar os atendentes, os solícitos garçons. Seu olhar de obsessivo observador analisa cada gesto em cada detalhe, na busca de um sentido, mas ele só encontra o “gratuito”, a “náusea” que preenche tudo transbordando de seu próprio ser no mundo.

Pois bem, Darío Sabine sugerira á HD um conto que apresente a perspectiva de um dos garçons, que descreveria a presença daquele senhor, ali na mesa afastada, rodeado de pensamentos, sempre a escrever, ou a folhear obesos volumes, devorando croissants, deixando migalhas sobre as folhas do jornal.

Também a rotina do restaurante, ou do café, com “as cadeiras de pernas para o ar sobre as mesas durante a noite”, a exata observação de Stephen Dedalus, já ébrio, no final de Ulisses (“Mas aí já é James Joyce, e estávamos falando de Sartre, da França entreguerras!”)

Certo, certo. Ao contrário de observar, Roquetin seria o observado. E ao mesmo tempo daria voz aqueles que Roquetin imagina que só existem para servi-lo.

Isso tudo, HD pensando, enquanto observa os fregueses. Aquele, na mesa à esquerda, não é só de escolher, em questão de cardápio, tanto faz. O que for do dia, pode ser. Pouquíssimo exigente. Não pedindo omelete com queijo (ou cebola), nem bebida “estupidamente gelada”, nem nada. De duas, uma. Ou o cidadão é um humilde serviçal que, de tão esmagado, já não ousa exigir mais nada do mundo, pois o que vier é isso mesmo. Ou então é um líder, um espírito nobre, um “hiperbóreo”, nos termos de Nietzsche, que está tão acima de certas frivolidades, que nem se dá ao cuidado de escolher o cardápio.

Por outro lado, há o cliente exigente. Aquele que critica a sobremesa (“Isso aqui é isopor? É borracha? Pensei que havia pedido pudim!"), grosseiramente abordando o garçom (“Ó meu chapa, vê se acorda!”), até infantil, fazendo beiço, se o prato vem trocado. Aquele tipo que devia exigir, sim!, mas exigir justiça e dignidade, e não criar um motim por um pudim! (mas pior mesmo eram os acompanhados! Faziam pose de mandões e poderosos para as suas mulheres, tudo isso para cima do primeiro garçom que aparece, “Vê se presta atenção, chefe! Anota tudo direitinho! O meu vinho é tinto suave. O da madame é branco seco, hein!”, e com voz de autoridade no assunto, em suma, um porre!)

Sim, pois o cidadão não se organiza coletivamente para exigir seus direitos, mas na hora da sobremesa, quando pode humilhar um reles garçom, ele não pensa duas vezes! É mais fácil, se não cômodo, brigar com o serviçal, do que afrontar o chefe, a burocracia obscura, a politicagem, a classe dominante!

Por que não critica a política econômica? Não, o demasiado humano se limita a reclamar da sobremesa!





Não só de ir à igreja viverá o homem. E assim, se na semana passada, Alex conseguira arrastar Flávio (e este arrastara HD) para a missa das dezenove, agora o programa é outro.

Darío passeava pelas tantas pontes de Recife, a Veneza brasileira, em sua tour pelo Nordeste, enquanto Alex se prepara para uma temporada no sul de Minas, o paraíso das águas térmicas. Mas HD vivia ainda sua vida a la Truman Show, na mesma rotina, sonhando com as seduções (e ameaças) das Antilhas.

O caso é que HD chega na casa de Flávio num declinar de tarde de sábado, temeroso d não encontrar o amigo, sempre cheio de compromissos, e quando não, pronto para convites de garotas ou jogos de vôlei.

E realmente Flávio tem algo em mente. Prepara-se para sair. E, muito cordial, convida HD para acompanhá-lo. Flávio, com ares de galanteador (confesso admirador de Don Juan de Marco), revela uma súbita visita a uma ex-namorada, que telefonou (“como quem não quer nada, entende?”) no quase fim-de-semana. E que HD não se preocupe, a irmãzinha não é de se desprezar, e já está no ponto!

E não é mesmo? Quando chegam ao casarão, lá nas subidas do Barroco, lá estão as duas princesas. A mais velha, com uns vinte e pouco, é a antiga paixão de Flávio (ou ele a antiga paixão dela), com toda uma intimidade não esquecida. E a mais nova, não mais que dezoito, é só simpatia.

Sim, poderia suceder-se contatos mais “calientes”, como diria Flávio (e ele até se esforçou, com suas insinuações de fundo erótico, muito sutil), mas HD não conseguia cativar a atenção da mais nova, para que Flávio pudesse escapar, com a mais velha, para o quarto. E Flávio investe na ex, mesmo dando olhadelas para a irmãzinha (sim, pois quando Flávio namorava a mais velha, a caçula nem tinha debutado), a que morre de tédio ao lado de HD, didático ao explicar os tipos de vestes femininas no período do Brasil Império!

Após um lanchinho, com suco de manga e salgadinhos, os amigo vão embora, carregando certa frustração, e uma melancolia erótica (por parte de Flávio) quando seus olhares se distanciam seguindo os faróis.

Esta foi a primeira e última vez que Flávio convidou HD para um programa que envolvia mulheres. Até por que, pouco tempo depois, começará a namorar sério. Flávio conhecera Stella, no estacionamento da faculdade, quando uma amiga em comum pediu uma carona.






Onde essa que o ser humano é um fim em si mesmo, e nunca um meio para algo? Só se for nos compêndios humanistas! Pois em todo lado ele somente encontrava o ser humano como um meio, um instrumento, uma ferramenta! O que eram aqueles operários sujos junto às prensas hidráulicas? Fins em si mesmos? Não! Trabalhavam como apêndices das máquinas, nos ritmos das máquinas !, como engrenagens de carne e miolos, com olhares presos nos índices de produção, nos números e cotas a serem alcançados, nas exigências dos compradores, na ditadura dos lucros, dos quais conheceriam apenas algumas fracos e migalhas. E aquelas senhoras e mocinhas ali inclinadas, corcundas até, em suas máquinas de costuras, com olhos cativos no mover-se de agulhas e fios, o que eram além de ferramentas pra a produção de roupas, vestes com etiquetas para quem pudesse pagar? Roupas que elas mesmas certamente não poderiam comprar... E aqueles escriturários, concentrados contadores, exímios contabilistas, entre pilhas de balancetes e relatórios, perdidos entre diagnósticos e projeções, ousando um fio de Ariadne no labirinto das esferas produtivas, como se quisessem realmente ordenar o caos de pedidos de compradores, remessas de fornecedores, caprichos de clientes, ameaças de credores, incoerências entre entradas e saídas, inexatidão de saldos, acúmulo de promissórias, o fundo inseguro dos cheques, os parcelamentos dos cartões de crédito, a esperança dos crediários, rumo à um futuro de cifras e moedas crepitantes, sem pensarem que são homens, a não ser quando se agitam de desejos e sentem nos bolsos a ausência dos valores que manipulam. Desde quando são “um fim em si mesmos”? Não passam de um meio para a reprodução do capital!





Encontramos HD concentrado nas aulas de Sociologia (isto quando não atento aos sorrisos, aos pés deliciosos de Naína), preocupado com a gênese do liberalismo, imaginando o mundo de trezentos anos atrás, aqueles camponeses, com suas famílias expulsas de suas terras, que eram então cercadas para serem entregues aos rebanhos em imensas pastagens. E nada de nova Arcádia. O lucro é que exigia.


Famílias inteiras que se amontoavam em cidades, prontos a se tornarem mão-de-obra barata e sem qualquer outra opção além de venderem a própria força de trabalho, mas jamais saindo da miséria, vendo as filhas agora prostitutas, suas crianças em trabalhos nas máquinas, sujas de graxa, ou pior, seus dedinhos amputados em engrenagens.

Sim, todo o pó de carvão acumulado nos pulmões, a pele ressequida, os cortiços imundos, as levas de imigrantes em navios fétidos, como o Titanic, com os pobres confinados aos porões, enquanto a primeira classe se degladia pela posse dos poucos botes, indiferentes aos gritos enquanto as águas gélidas invadiam.

Imigrantes para o Novo Mundo, “fazer a América”, roupas em trapos, dependentes dos serviços de imigração, dormindo em bancos de estações, ou sobre as próprias bagagens, tudo para depois serem explorados nas lavouras de café, ou nas indústrias têxteis.

E todo aquele papo de liberalismo e liberdade? Liberdade para o lobo faminto apascentar o rebanho!

Só mesmo a beleza morena de Naína para aliviar o seu desespero.

Humanos desumanizados pela máquina. Matrix. O filme que HD assistira, ao lado de Flávio (que o convidara enfim) e Stella. O futuro administrador delirava com a filosofia dos diálogos, a namorada estremecia a cada efeito-especial, e HD tentava diferir a mensagem sob as cenas frenéticas. Discursa mentalmente sobre a agressividade reprimida eu atrai os jovens para tais sessões de violência surrealista, descarregada em explosões e massacres high-tech. Simbolizam no vídeo a luta social, a competição pela sobrevivência. A fúria diante da máquina é o furor diante da civilização opressora, do sistema mercenário. Então nos sentemos em nossas cavernas acolchoadas para as explosivas sessões de ‘fúria digital’!

O dito liberalismo pregou a liberdade social do indivíduo, mas na verdade, servimos a um capital financeiro sem controle, sem objetivo, inumano, tal uma máquina! Não mais somos soberanos, somos fantoches! O capital reproduz a si mesmo, e foge ao controle. E realmente (aproveitemos a metáfora cinematográfica) servimos tal uma pilha elétrica a um automatismo econômico, ao qual Adam Smith dizia que devíamos nos submeter, a essa mão invisível (e pesada) do Mercado!

- Bem-vindos a era da desumanização!

É claro que Naína ria daqueles desabafos, e o professor continua, até sarcástico. Aparecia com aqueles volumes de Max Weber, Peter Berger, Noam Chomsky e outras figuras, achando-se o máximo e declarando que ‘os atores sociais’ se comportam segundo padrões, que ‘os atores sociais’ não passavam de encenações de papeies, que ‘os atores sociais’ isso e aquilo, como se todos fossemos uns grandíssimos palhaços!

- “Atores sociais”! Outro rótulo!

O professor se mostrava compreensivo, disposto a ouvi-lo.

Rótulo ridículo! Para o Estado, sou um Cidadão, para a filosofia, sou um Sujeito Cognoscente, para o programador de rádio, sou o Ouvinte, para o de TV, o Telespectador. E também: para o mercado, sou o Consumidor, para o dono da mercearia, sou o freguês, para o policial, sou o Elemento (geralmente suspeito). Quando eu serei uma pessoa, a viver sem rótulo, sem etiqueta?

O professor até concordava. – Somos Homo Sapiens, Homo Ludus ou Homo Economicus?

Depois indicava uma lista de livros do Habermas, com suas análises das ilusões do marxismo, numa teoria social crítica, em referencias a um proletariado “fortemente aburguesado” (sic), sem possibilidade do “sujeito revolucionário”.

Aí o Everton soltava a voz. – Aburguesado? Como isso é possível? O proletariado possui os meios de produção? Extrai mais-valia? Apenas fizeram uma parte do proletariado (os mais qualificados, especializados) se sentir ‘burguês’, dando esmolas mais pomposas! O que divide a classe, debilita a consciência de classe’! e disfarça a condição do proletariado submetido a um peleguismo sindical!

Mas o professor em explicações: a reciprocidade das esferas sociais, infraestrutura e superestrutura, os determinismos. E Naína ilustra com uma imagem literária.

- Cecília Meireles fala sobre um “esquema sobre-humano”, “indizível conjunção que ordena vidas e mundos...

- Ora, mas isso é literatura!

É notável o desprezo no sorriso do professor. Ninguém comentou. A aula prosseguiu com indicadores econômicos e índices de desenvolvimento.




- O seu nome é uma aula de literatura!

Até Naína em ironias. Na verdade eu tenho que aceitar este nome, extenso e declamatório, a lembrar origens e responsabilidades, um nome a zelar. Hector Dias Guimarães de Almeida. Um nome que deve brilhar nos olhares alheios. Ai de mim, se tal nome cair à lama! Jamais se reerguerá! E infâmia e vergonha sobre os Dias, sobre os Guimarães, sobre os Almeida. Que não hesitariam em pedir a minha cabeça.

- Acredita que esqueci a senha da sala de informática?

Vivia distraído. Nome que é precisão, diga-se. No mais, além disso, e como se não bastasse, os números! Quantos números atribuídos a ele, acrescidos ao seu extenso e emblemático nome! Carrega consigo, na carteira de couro negra, no bolso esquerdo da calça jeans, um cartão com sua foto, seu nome e um número. O que deve identificar sua pessoa diante das autoridades competentes. O nome e um número de Registro Geral na Secretaria de Segurança Pública do Estado. Fora o número de Cadastro de Pessoa Física, o número da conta bancária, a senha da conta bancária, a senha do cartão de crédito, o número de inscrição no Auxílio Bolsa Estudantil, o número de acesso ao laboratório de informática, a senha do e-mail, o número de cliente na lan house do Campus, o número de cliente na lan house do bairro, a senha de espera para o atendimento na agência dos Correios, assim, números e números, ao infinito. O que diziam?
- Faça alguma combinações e permutações - e reze uma prece para o Pitágoras.

Somente o sorriso de Naína não podia ser quantificado.





final do Capítulo 3
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LdeM

quarta-feira, 19 de maio de 2010

cap 3 - Náuseas de Estudante

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Às vezes, algo no discurso de Everton, enquanto flanavam pelos corredores da Fafich, se assemelhava as pregações de Celso.

- Cento e cinqüenta anos do Manifesto!

E HD voltava-se para Darío. – Do que o Everton está falando?

O outro, irônico. – Da Bíblia satânica.

- Para o catecismo capitalista-imperialista, claro. – Alex era prestativo em explicações.

- “Um espectro ronda a Europa...”

- Isso! Pois se você analisar calmamente, nada mais cristã do que a denuncia marxista da exploração do homem pelo homem!

Flávio tentava acompanhar, mas fazia suas perguntas fora de sintonia, então Alex pinçava um trecho e jogava na roda, “As revoluções russas de 1917 ?”

- Haveria revolução de qualquer jeito. Naquele campesinato feudal... – Darío começava, apenas para ser cortado por Everton.

- Ora, é a mesma revolução que estourou na Inglaterra em suas turbulências do século dezessete, a mesma que abalou a França nos fins do dezoito e meados do dezenove, e até boa parte da Europa (lembrai-vos de 1848!), a mesma revolução burguesa num mundo feudal...

Então, HD é que interrompia. – Mas duas revoluções num período de um ano? A passagem do feudalismo ao socialismo em nove meses? Isso é o que eu chamo parto de risco! O salto comunista...

Everton não dava tempo. – O salto comunista?! Você é revisionista?

- Só se você for um menchevique.

Mas Darío já discutia outros ângulos, pontuava outras perspectivas, junto a Alex e Flávio, ambos de platéia.

- Marx fez a crítica da sociedade capitalista-industrial em nome do proletariado. Nietzsche critica a sociedade de massas na plena consolidação da burguesia, e defende ideais aristocráticos diante do medíocre homem comum, demasiado humano. Enfim, Freud, fruto de ambiente burguês, denuncia a hipocrisia cultural-sexual da burguesia.

HD entrava na conversa. – Algo de comum entre eles?

Alex julgava contribuir. – Os três escreveram em alemão...

- Nem alemães eram! – Everton não perdia a oportunidade (até já esquecendo a “ofensa” insinuada por HD) – Dois judeus de cultura alemã e um alemão com ascendência polaca.

Alex, suspirando. – Ah, é uma vergonha não saber alemão!

Darío, agora conseguindo responder a pergunta de HD. – Em comum? Sim. Os três ousaram resgatar uma atitude sepulta sob lápides de fórmulas e túmulos de dogmas. Exumaram a Suspeita.)

Depois, quando Alex parava na sala de sinuca, ou Flávio convidava Everton para o vôlei no centro esportivo, HD e Darío desciam à lanchonete da Letras, desviando-se dos gatos gorduchos e insinuantes. HD numa sessão de memorabilia, lembrando de quando seu interesse por História foi despertado, diante de uma capa de um livro da oitava série,onde se retrata uma cena da Revolução Francesa, onde quando o povo invadia as prisões, via-se os sans-culotes matando um soldado. Este se defende, mas eles, os revolucionários, a massa enfurecida, esquecendo ambos de que pertencem a mesma classe!, enfiam uma lança em seu peito!

Mas o soldado não seria igualmente parte do povo? Por que defendia interesses dos nobres? Ou não é assim hoje, a polícia governista atira na polícia grevista? Mas o soldado morreu em vão? Os revolucionários lutaram em vão? O que é o indivíduo que morre nas turbulências da História?

- Pense, Darío, na História, quem são os vencedores e quem são os perdedores?

Mas não ficavam muito por ali. HD fica logo nauseado, com as figuras fúteis que estudam e nada aprendem. Espécimes da inteligência cooptada, em busca de diplomas e cargos públicos. Filhos da classe média que ocupam assentos destinados às classes proletárias. Imagina seus pais arás de mesas entulhadas de papéis e cifras diante de telas e gráficos com olhos fatigados, em horas extras e noites insones, tudo apenas para que seus filhos agora desfrutem e esbanjem a grana.

- A história é um pesadelo do qual eu imaginei que pudesse acordar.

Mas Darío ainda não conhecia Stephen Dedalus e assim não entendeu a referência.




Sempre empolgado, Flávio Toledo convidou os amigos para uma rodada de bebida e pizza. Lá pros lado do Barreiro. Pizzaria da boa. Isso ele garantia por ser do ramo!

HD e Darío chegavam da casa da professora de História, Ada Soares, arrastando-a, diga-se. Emocionados após assistirem, deliciando-se com broas cremosa, ao clássico “Sociedade dos Poetas Mortos”, ciente do “carpe diem”, aos versos de “O Captain, my Captain”, sob as barbas de Whitman, quase em companhia dos jovens poetas em suas grutas, quase na platéia da cena de teatro, “Sonho de uma noite de verão”, quase vertendo lágrimas diante do ato extremado do ator sufocado pelo pai autoritário, quase subindo nas carteiras quando o professor em sua despedida... (A outra professora, Lia Amélia, mestranda de Filosofia Política, fora recentemente reencontrada por HD e Darío nos corredores do quarto andar da Fafich)

- Fiquei sabendo que você descobriu o rock’n’roll !

Ada estava de bom humor, diante de HD com seu visual a la Seattle. Camisa de flanela, jeans poído, cabelos longos, um tênis castigado.

Flávio acabara de chegar, trazendo Alex de carona.

- É a revolta! O rapaz anda muito rebelde.

Todos em sorrisos, menos HD, claro. O seu desespero histórico não permite que ele se divirta. Lembra a festa da turma, a muito programada e sempre esperada. Mas naquela sexta-feira, o professor continuou as suas exposições sobre o Brasil Império, com ênfase na Decadência, e na Guerra do Paraguai. A vergonha, diga-se. HD, então deprimido, com a sandice do conflito, onde o Brasil não passara de agente a serviço de interesses ingleses, até desiste de ir à ansiada festa.

Agora se percebia em discussões sobre a dicotomia natureza e cultura, concordando com Alex, de que genética é probabilidade, não fatalidade, mas ressaltando que o meio, o contexto histórico, faz a diferença;

Ou ainda, agüentando, com infinita paciência, as ironias de Flávio, quando exalta na roda, entre uma fatia e outra, a admiração, assaz conhecida, de HD pela erudição de um tal Miranda, Raul Miranda, um especialista em Década de 30.

- Verdade. Uma enciclopédia. E o Hector, nosso Hobsbawn, vamos desculpar, mas puxando o caderninho de anotações, todo atenção...

Sim, depois que “A Era dos Extremos” se tornara (ao menos para HD) o livro de cabeceira, Flávio não perdia a oportunidade de invocar o amigo com um caloroso “Amigo Hobsbawn!”, e havia quem o confundisse com Hobbes (o do Leviatã) ou Robespierre (o revolucionário vítima da revolução).

E o tal Miranda, Raul Miranda? Erudito, historiador e arquivista, a defender que a década de 30 fora o grande “nó górdio” do século vinte. (“E para dizer isso ele precisava voltar a Alexandre, o Grande?”) e seguia enumerando efemérides. A grande Depressão. Desemprego e Fome. Mussolini na Itália. Estalinismo. Suicídio de Maiakovski. Revolução de Trinta. Revolta Constitucionalista de 32. Grandes Expurgos. Ascensão do Nazismo. Hitler Chanceler. Rearmamento. O New Deal. O Varguismo. A Intentona Comunista. Os Integralistas. A Longa Marcha do Mão. A Guerra Civil Espanhola. O assassinato de Lorca. Peronismo. Estado Novo. Chaplin com seus filmes “Tempos Modernos” e o “Grande Ditador”. A Conferência de Munique. A Anschluss. O Pacto de Não-Agressão Nazi-Soviético. A Invasão da Polônia. A Drôle de Guerre. O Início da Segunda Grande Guerra...

- E o amigo Hobsbawn até esquece de comer!





Acertaram uma tarde no clube. Afinal, não só de estudos vive o homem, Alex é quem ironizava. Convidara também o seu padrinho Celso, futuro teólogo, em promessas de ascensão eclesiástica, ainda que leitor fiel de Boff, e prometera até pagar a conta. Darío Sabine aceitou, mas com um propósito de balanço final, uma despedida,pois iniciaria sua vida on the road, como sempre sonhara. Certamente aceitara o convite do Veneza para uma temporada em Recife.

Alex também (depois é que ele revelou!) pretendia igualmente uma tarde de adeus, pois seguiria para um retiro no sul. E ali HD pretende se divertir um pouco, já temendo o estresse. (E de fato esta é uma das poucas ocasiões em que ele se diverte.)

Chegam, e HD não perdoa, logo protesta:

- Só burguês! Sentiu o perfume?

- Vocês sempre começam assim. – diz uma voz clara e resoluta, junto ao corredor de entrada. Trata-se de Celso, aquela aparição, ao lado de Alex, na contemplação das poses e do glamour. – Depois vocês se acostumam.

- Não brinca! Por que tenho que aceitar?

- Para viver.



Mas HD imagina que a diversão é “algo fisiológico”, no sentido de “tirar o corpo da rotina”, e passa a criticar (academicamente!) a diversão alheia enquanto “alienação”. Celso estende um sorriso, com toda a boa vontade, e lembra que essa de “fisiológico” é a mesma desculpa para o sexo. Entanto (deixando a academia de lado) tomam banho de ducha de ducha, observando os modelitos de óculos escuros. Ao longo da lagoa, num tom um tanto irônico, abordam a diversão do não-compromisso, a sensualidade do semi-nu, o divertir-se enquanto “esquecer-se de si mesmo”(palavras de HD), o divertimento para o cristão e para o comunista (duelo Darío versus Celso) e resolvem jogar peteca na areia. Todos de sunga. “A sensualidade enquanto protesto do corpo”, ironiza Alex. Mas onde estão as garotas?

Mas ninguém ousou aprofundar o tema, senão animavam o Celso, que começaria a enumerar citações de Agostinho, contra o hedonismo.

- Mas alegrar-se é servir a Deus, pois nosso Deus não é um Deus de se alegrar do sofrimento. – Celso lembrava, enquanto seguia para a sauna. – Havendo justiça social, todos serão felizes, em genuíno divertimento.

No calor da sauna, o assunto Deus foi degelado.

- Não acredita em milagre? Não percebes que estar aí vivo, respirando, pensando, é um milagre! Até quando duvidas, estás diante do milagre!

- Ora, não estou vivo segundo as leis naturais? – HD, sem hesitar – E o milagre não é ir além da Natureza? Mas é estranho. Se Deus fez as leis da natureza, por que Ele mesmo vai quebrar algumas em privilégios para alguns?

- E se a própria natureza for um milagre? É assim que eu vejo...

Alex cochicha, a lembrar que Hector é marxista, e Celso não pode deixar de achar interessante, também a julgar igualmente marxista, em consciência e carteirinha, mesmo que rejeite essa de “materialista”, acrescenta, e a defender que Marx é um “verdadeiro cristão” (afirmou com especial ênfase),pois reclama por dignidade e justiça. - Não pode haver amor ao próximo enquanto eu o exploro.

Mas quando Alex comenta, sem qualquer ênfase, que certo fulano é cristão por mérito de et cetera (e isso quando lanchavam, jogando sinuca, jogo que Celso e Alex dominavam bem, para o despeito de Darío e HD, um tanto tecnicamente neófitos), então é que Celso não segura mais.

- Ele (fulano), cristão ? Ora, por favor? Muito prazer, eu sou São Francisco. Hoje é fácil, encher a boca e soltar: sou cristão! Queria ver era no tempo de Calígula, Nero e do “panes et circenses” ! – e bebia, enérgico, um gole do refrigerante que HD acabara de comprar na lanchonete, do outro lado do asfalto quente.

É por essas e outras que não concordo com Lutero. – continuava Celso, empunhando o taco de sinuca. – Lutero e sua defesa da salvação pela fé, vida interior, e etc. o importante são as obras! Ficar desfilando pro aí com Bíblia debaixo do braço, decorando salmos, entoando hinos, rezando mil rosários, em penitencias em cem romarias, isso tudo é argola de ouro em focinhos suínos! – e detonava a bola onze, na caçapa ao lado de HD. – eu quero ver é obras! Ações para mitigar s fome do próximo e não missas e missas pagas à esses padres pançudos! Eu quero ver a real fraternidade! Fora com esses papa-hóstias e beija-mãos! Eu quero ver igualdade! Chega de esmolas e cestas-básicas! Eu quero ver a dignidade e não essa dita caridade hipócrita e até cruel. Brincar com a esperança alheia! – e acertava a cinco, em pontaria perfeita. – o verdadeiro cristão é comunista como foram os doze apóstolos! Compartilhavam o pão! – e lá se vai a bola sete, caçapa do meio à esquerda. – não ficavam oferecendo migalhas!

HD – Interessante essa! De que o verdadeiro cristão é comunista!

Celso – Comunista, sim. Socialista por almejar igualdade social, sem a qual a fraternidade é uma farsa. Comunista ao desejar um mundo igualitário, onde todo mundo tenha oportunidade.

E venceu o jogo derrubando a bola treze, depois da três.

Celso – Dizem que o comunismo é blasfemo. Sim, o que se alega Ateu. Pois o verdadeiro satanismo é o ateísmo. Que não passa de individualismo e anarquia. Falam em liberdade, mas só borbulha o caos.

Darío – Mas o satanismo surgiu como uma resistência (até mais do que psíquica) contra a Igreja aliada a tirania dos senhores feudais...

HD – Peraí! A Liberdade é coisa do Demônio??

Ainda bem que bebiam refrigerantes, senão os ânimos se exaltariam e o álcool é um líquido inflamável..

Darío – Ok, Celso, aceitemos que só é possível o socialismo se for cristão. Mas será democrático? Pois, o que acontecerá com os não-cristãos? Convertidos? Exterminados? Pense bem. Seria teocracia! É Idade Média!

E a discussão (por habilidades de Darío) segue por meandros de historiografia. – idade Média? Claro que houve, e ainda há no Brasil! Vai ali no interior, no chão árido e trincado do sertão! Lá o coronel é senhor feudal, e conflitos por terras entre as famílias latifundiárias são dignas da guerra das duas rosas!

HD – Concordo. A insurreição de Canudos seria uma espécie de revolta camponesa, nossa Vendéia? Um messianismo de Münster, ao estilo tupiniquim.

Alex (beliscando o queixo) – Lampião, vejam bem, seria um justiceiro à la Robin Hood. E não exatamente um cavaleiro andante. – e depois, na ducha final. – E Antônio Conselheiro, uma espécie de Thomas Muntzer milenarista?

- Você leu o livro do Saramago?
Certamente HD quem perguntou. E voltaram discutindo “In nomine Dei”, do autor português, enquanto Celso palestrava sobre as revoltas camponesas e lembrava o MST e HD fazia certeiras referências à uma clássica peça teatral de Sartre, “O Diabo e o Bom Deus”, com tema semelhante, e bem anterior ao romance lusitano e outros detalhes que agora fogem as nossas anotações.

No entanto, sobreviveram. E cada um seguiu para o seu lado.




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LdeM

quarta-feira, 12 de maio de 2010

cap. 3 de Náuseas de Estudante

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Estavam na varanda, à sombra das samambaias, cheios de preguiça, depois de assistirem, naquela tarde tropical de sábado, ao filme “A Casa dos Espíritos”, baseado no romance homônimo de Isabelle Allende.

Everton – A direita sobe com a fraqueza da esquerda.

Alex – Das esquerdas.

Everton – Sim, a pluralidade. Antes, as fraturas. Essas questões ideológicas..
Flávio - E dogmáticas.

Alex - Isso de socialistas, comunistas, social-democratas, reformistas, extremistas, anarquistas...

Everton – Então a direita sobe. Fascistas, aristocratas, hierarquias religiosas. Todos de mãos dadas. Por interesses em comum. Industriários esquecem as conseqüências e financiam os lobos para cuidarem das ovelhas revoltadas.

HD – Mas não vamos comparar um golpe sul-americano com a guerra civil espanhola. Lá o Generalíssimo teve que costurar uma aliança, impulsionar o movimento, invadir o próprio país. Aqui ao lado, o General viu-se a frente de um acúmulo de forças insatisfeitas, numa rebelião à ordem legal..

Flávio – Ambos atentaram contra regimes democraticamente legitimados!

Everton – Mas com as esquerdas em rixas internas, e é como eu disse. Não é a direita que é forte, a esquerda é que se enfraquece.

HD – Fiquem de olhos bem abertos! Quando Weimar cai, eis o Reich!





Depois de Platão, Marx, Machiavelli, Freud e Bakhunin, o serão daquele sábado torna-se mais festivo. Outros familiares de Everton tomam pose do som e modinha de viola alegra a varanda.

Flávio encontra HD e insinua que o amigo já bebeu demais ( ao lado está empilhada meia dúzia de latinhas de cerveja, fora a caipirinha da primeira rodada), ali sentado diante da TV assistindo clipes musicais na MTV. “Sunday Bloody Sunday”, denuncia um performático Bono Vox.

Lembrando que ainda há uma festa de casamento (importante evento social ao qual não pode brilhar pela ausência), Flávio arrasta HD para o carro. Mas Flávio não está muito preocupado com o horário, pois mal dobram a esquina, na marginal da Via Expressa, ele pára diante de duas mulheres. Ambas de vestidos insinuantes, damas da noite. Uma morena e uma ruiva. Flávio instrui HD para que se acomode no banco de trás, e convida as mulheres para um passeio. A loira senta-se ao lado de Flávio, e a morena (com todo aquele perfume!) ali ao lado de HD.

Enquanto seguem para a pista à direita, além da Gráfica, HD não pode deixar de notar o vestido branco e deveras curto da morena ali ao seu lado. E que par de pernas! Mas encontra-se em névoas alcoólicas e não ousa tocar a mulher. Flávio sussurra ao ouvido da loira, que, de cabelos soltos, geme baixinho. Realmente, HD está tão grogue que nada consegue fazer, e a morena observa-o com infinita piedade.
As mulheres descem um bairro depois. E Flávio evita comentários. Acelera para chegar em casa antes das sete horas.

Chegam a mansão dos Toledo e o pai de Flávio atravessa a sala de estar, rumo a varanda, envolto num roupão bege, exalando loção pós-barba, fumando um cachimbo, em pose entre doméstica e altiva, os pés afundados no carpete felpudo.

O pai de Flávio, o Sr. Carlos, tem todo o prazer em mostrar sua (como ele diz) modesta moradia, com a parede da sala de estar recoberta de pedras, com decoração simples (apesar do abajur exótico, e seu jogo de luz e sombra, em círculos concêntricos.

Enquanto isso, Flávio se prepara, indiferente à decisão de HD em voltar para casa, desprezando aquelas festas burguesas (de tão bêbado, nem sabe bem onde está!). Mas então surge outra figura. Bem trajado, gel no cabelo, gravata e terno, em saudações, todo cerimônia!

HD já não se segura e cai numa crise de riso! Gargalhadas mesmo, assim abertamente! Constrangimento! Flávio é diplomático como sempre, apresenta o cunhado, noivo da irmã mais velha, profissional em início de carreira na administração, Hector esse é o Augusto, Augusto esse é o Hector.

É visível o contraste. HD engole o escárnio e estende a mão numa saudação, assim mesmo, de camisa poída, cabelos até o ombro, calça jeans desbotada, ar de “pouco me importa”. Augusto aceita a saudação com infinita condescendência.

Não sei se Flávio pôde prever, mas naquele momento, diante de seus olhos, se inicia uma sutil uma sutil inimizade, a disputar o domínio de sua alma.





Flávio ressalta o fato de HD precisar ir bem vestido a entrevista. Afinal, trata-se de uma grande empresa, e o Gerente de Pessoal é velho camarada de seu pai, além de assíduo cliente do restaurante.

Emprestando suas finas roupas sociais ao amigo, Flávio orienta calmamente quanto a etiqueta, a combinação de tons e cores.

Diante do espelho, HD aos risos, notando sua nova imagem “social”, faltando apenas a gravata e o gel.

A imagem de Augusto num flash e HD ri subitamente. O pai de Flávio não pode deixar de estranhar o novo amigo de seu filho. Mas Flávio defende HD por admirar sua atitude de desafio. No íntimo, Flávio gostaria de ser assim, do contra mesmo, mas a família sempre o cercara de cuidados e formatos.


- Que assombro, a civilização! Tenho pelo menos três mil anos! Afinal, não sou uma construção histórica? Geração após geração acumulando cultura, até florescer o meu “eu”... – ajeita a seqüência de botões. - Um organismo Homo sapiens sapiens de, sei lá, vinte mil anos, mas a civilização, com suas providencias e frivolidades, cobre o nosso corpo com roupas, sabonetes, xampus, maquilagens, cremes hidratantes, espumas para barbear, loção pós-banho, pó-de-arroz, condicionador capilar, tinturas, gel para cabelo, perfumes, e outras químicas. Somos um macaco com elegância mais do que um macaco com consciência!

As irmãs de Flávio aparecem e elogiam o “new look” do rapaz.

- Gente, o Hector ficou até bonito! – elogia a mais nova.

Ou seja, realmente a roupa faz o homem!





- Hector Dias, Auxiliar Administrativo do RH!

Assim, finalmente alguém lhe concedia atenção. Um olhar numa penumbra de escritório, um empregado abandonava a máquina, uma secretária até ousava um sorriso. Mas, afinal, quem é Hector Dias?

Quem sou eu-mesmo? Havia, no mundo, alguém em si-mesmo? Sempre se acrescenta um cargo, ou função, ou Partido , ou ideologia, ou organização. Fulano, Assessor do Prefeito. Beltrano, Técnico em Contabilidade. Siclano , Diplomado em Programação de computadores. E sempre assim. Sempre úteis a alguma coisa em seus cargos! Sempre precisando provar algo, competência ou criatividade!

Será que somente os ditos humanistas consideram o “Ser humano” em si mesmo? O ser humano enquanto valor absoluto, medida de todas as coisas? Além de utilidade, função, lócus social, interesse público? E se eu me voltasse, a dizer, “sou uma pessoa”, isto bastaria?

Já me disseram, algumas vezes, que eu sou ninguém, “você sabe que é ninguém”, desse jeito!, mas o que é ser “alguém” ? É ter uma qualidade ou ter um bem material (ou vários) ? Mas, então, não se trata mais de “ser”, mas de “ter”! Quando serei “alguém”? Quando me formar em História e fizer pós-graduação em “Estado Novo”? Quando for o “senhor Professor”? Quando escrever e publicar os meus livros? Quando ler os meus textos em sarau público? Quando for vencedor do Prêmio Jabuti? Quando for casado e pai de família? Quando for amigo do Jô Soares? Quando for amigo do García Márquez? Quando eu estiver morto e ganhar uma estátua? Quando eu for processado por escrever literatura subversiva? Quando eu vender dez mil cópias do meu primeiro romance? Quando eu ganhar o Prêmio Nobel de Literatura? Quando serei “alguém”, já que “sou ninguém”, como diz um poema da Emily Dickinson, “I’m Nobody! Who are you? Are you – Nobody – Too?”

Quando serei alguém? Quando concorrer a um cargo público? Quando for Presidente da República? Quando for nomeado Comissário do Povo para Assuntos Literários? Quando for namorado de uma atriz de TV? Quando me casar com uma modelo de capa de revista? Quando for fotografado em companhia do Secretário da Cultura? Quando aparecer no programa de tv elaborando sofismas sobre a arte literária? Quando eu agarrar a Miss Belo Horizonte? Quando eu for condecorado com a Medalha Tiradentes? Quando eu criar uma Fundação de caridade? Quando eu der uma Recepção de Gala no Automóvel Clube? Quando eu for flagrado em ato obsceno num banheiro público? Quando eu for declamado nos saraus da zona sul? Quando eu comprar o carro do ano? Quando eu aparecer nos jornais como o “Cidadão do Ano”? Quando eu tiver um sítio em Esmeraldas? Quando eu amar o próximo como a mim mesmo? Quando o meu patrimônio ultrapassar cinqüenta mil reais? Quando eu ficar maduro? Quando eu fizer trinta anos? Então, quando eu serei alguém?




É patente que havia uma guerra no balcânico barril de pólvora da Europa, mas HD não vivia um clima melhor no escritório.

Para dar conta das tantas leituras (e da pilha de cópias xerocadas) ele leva o material de estudo para a sua mesinha modesta no Departamento de pessoal. Entre arquivos e telefonemas, ele se esforça para entender o espírito do capitalismo ou o mecanismo das lutas de classe, listando os nomes dos gabinetes das Regências ou as fases da Revolução Francesa.

Estudo possível quando nada há para ser digitado, ou documento algum a ser arquivado, e o gerente não está por perto.

Mas acontece de HD estar realmente concentrado e aí aparece o gerente, até intempestivo, a exigir este ou aquele documento, ou a digitação (para ontem!) de um memorando ou aviso prévio.

- É pra agora, rapaz! Deixe de lerdeza!

E HD prontamente abandona seus textos sobre democracia representativa, tópicos de terceiro setor, ação comunicativa, Estado de bem-estar social, Tolerância segundo a perspectiva de Voltaire, e deixa-se à disposição.

Por sorte, o administrador-geral simpatizara com o rapaz, admirando sua força de vontade, sua dedicação aos estudos, e prontamente o defende:

- Que isso, Marçal, deixa o rapaz. – pausa, apenas para abrir um sorriso, que somente HD pudia ver. – E, aliás, Marçal, aquela listagem do departamento, que eu pedi ontem cedo, já está pronta?

Agora é Marçal quem sai, todo obediente. E HD resmunga:

- Esse Marçal é uma maçada!
E o administrador em novo sorriso.

Além do mais, Marçal, o gerente, agarrava a loirinha da recepção, e Marçal sabia que HD sabia, pois o rapaz já os flagrara juntos, numa curva da escada. E Marçal já vira HD em prosas com Vera (eis o nome da mocinha) e ao seu mau-humor se juntara o ciúme.

- Vera, você viu o meu livro sobre Canudos?

HD pergunta, ao notar a recepcionista folheando um volume. Ela sorria. Também fã de Antônio Conselheiro? Ele se incomodava.

- Por favor, Vera, poderia me devolver?



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LdeM

quarta-feira, 5 de maio de 2010

Cap. 3 de Náuseas de Estudante

...


Uma das funções de HD no Departamento de Pessoal é justamente o contato direto Departamento e Pessoal. Ele distribuía os contracheques, arquivava os documentos dos empregados, recolhia sugestões, e reclamações. Era a ponte entre o Escritório, ali na Avenida, e alguma indústria de subúrbio, para a qual o Departamento fora contratado.

Por exemplo, aquela visita a filial do Prado. Em plena avenida Francisco Sales, uma indústria de tecelagem. Operários sujos e suarentos. Latrinas mais vergonhosas que a Revolução Industrial. Um cafezinho e um copo de leite às nove e às dezesseis horas, com direito a um pão com manteiga em cada ocasião.

Reclamando de um certo valor no contracheque, aquele, que parece ser o líder local, ou o operário-do-mês, causa um tumulto verbal no refeitório. Que aquilo era um roubo!

E enumera as horas-extras, e que ele ficara trabalhando até a hora do Jornal Nacional, para aquela entrega de Viçosa, que a máquina de corte exigiu um conserto (com desmontagem e tudo!) de quase três horas, e que ele ficara sem o cafezinho depois das seis e nem podia usar o telefone, pois haviam trancado o escritório (o que é isso, não confiam nos empregados? Vai que a fábrica pega fogo! Como é que a gente chama os bombeiros?!)

Muito calmo, consciente da gravidade das reclamações, HD mostra que está ao lado dos operários, mas que nada podia fazer além de transmitir o teor das insatisfações. Mas parecia que falando assim, pausado e difícil, ele atraía mais hostilidade! Os operários não enxergavam nele um empregado, um subalterno! Ali, HD representava o Escritório Central, o Departamento, era o Mensageiro do Alcaide.

Assim a angústia do estudante nascia de seu duplo deslocamento. É pouco aceito meio aos profissionais do Escritório, com os seus diplomas de doutorado e pós-doutorado, e é rejeitado meio aos empregados, com seu palavreado de patrão, como se ele viesse confundi-los com terminologias, valores e contratos.

E é com semelhante fardo, a pesar-lhe sobre o semblante, que HD chega a faculdade, subindo os degraus dos quatro andares da FAFICH, para uma aula de Filosofia, onde o professor sonâmbulo expõe (durante duas horas!) o triste julgamento de Sócrates.



Toda a conversa surgira quando Everton, aquele com broche vermelho na camisa, chegou com o “Origem das Espécies”, o clássico de Darwin, debaixo do braço e começou a discutir darwinismo social com Flávio, aquele que vivia oferecendo carona para os amigos, e paras as garotas. Alex lia algo de Teilhard de Chardin e estava de bom-humor. HD chegou logo depois, ocupado em folhear “A Era dos Extremos” de Eric Hobsbawn. Darío brilhava pela ausência.

Everton, negro, alto, o mais velho, o mais experiente, ex-casado, sindicalista, estudante de filosofia política palestrava diante de Flávio e Alex, quando HD entra.

- Não há vinte maçãs pra vinte pessoas, logo há disputa. Homo homini lupus. Ninguém quer ficar com menos de uma maçã.

- Menos de uma maçã sofremos amarga fome. – Flávio sorria.

- Certo, certo. Imaginemos. Temos quinze maçãs, e as tais vinte pessoas. Cada uma se satisfará com 0,75 de maçã? Acontece que um certo sujeito, forte e arrogante cata cinco maçãs, para ele e seus próximos (seus protegidos?), então sobram dez maçãs para quinze bocas, logo 2/3 para cada, pouco mais que meia maçã.

- E os outros aceitam? – Flávio indigna-se.

- E o que podem fazer? – Alex resigna-se.

- Certo, certo. Continuemos. E se forem dez maçãs? Logo meia maçã para cada um. Mas o fortão do grupo cata as cinco para ele e família, e ficam cinco frutas para os outros quinze, logo, um terço para cada. E subnutrição.

- E revolta!

- Hobbes: a escassez e a luta.

- Não. Podemos imaginar coisa pior. Cinco maçãs para vinte bocas, logo um quarto, ¼, para cada. Mas o usurpador apodera-se de todas e os outros ou guerreiam ou morrem.

- A guerra ou a fome.

- E ao vencedor, as maçãs. Humanitas!

É quando HD intervém, fechando a obra-prima de Hobsbawn sobre o sangrento século vinte. - Hobbes, Darwin, e a escassez, é isso que derruba Santo Agostinho, o bom selvagem de Rousseau, o socialismo, a igualdade comunista?

- Se reconhecermos que não há meças para todos. – Everton com seu ar didático. – Mas nunca se produziu tanto! Imagine quarenta maçãs para as vinte pessoas, e o usurpador levando quinze,ou seja, três para cada um de sua família, e o restante fica com uma e meia cada. Entendem? Alguém querendo sempre mais. Sempre há um usurpador. Quem o deterá? Quem poderá contra ele? O Estado? E se ele financia, corrompe, o Estado? E se for o próprio Estado?

Depois daquela conversa, que impressionou a todos (até ao ausente Darío, quando depois HD a resumiu) passaram a se encontrar no barzinho da Biológicas ou na casa de Everton, em verdadeiros congressos, em serões nas tardes de sábado. Flávio oferecia uma carona para HD (isso quando Flávio não desmarcava o jogo de vôlei), pois Everton morava depois da Gameleira, no anel rodoviário, nos limites da Cidade Industrial.





Dias depois, Darío, didático. – Segundo Darwin, na Natureza, alguns são fortes e transmitem seus genes e outros perecem, por serem inadaptados. Isso na natureza, não na Civilização. – pausa, ainda didática – Na Civilização, o darwinismo, dito aqui, social, não se aplica. Não se está no Poder por ser forte, mas se é forte por estar no Poder. É uma questão de posição social na hierarquia do Poder, não de força física ou pureza genética.

- Hector Dias é parente distante de Gonçalves Dias?

Alex, leitor do romântico brasileiro, ironiza em citações da introdução de “Primeiros Cantos”.

- “Com a vida isolada que vivo, gosto de afastar os olhos de sobre a nossa arena política...”

Ou então declama trechos de “Canção do Tamoio”, sem mais nem menos.

- “Não chores, meu filho; Não chores, que a vida É luta renhida: Viver é lutar.”





Foi numa tarde de sábado (daquelas quando Flávio desmarcava tudo para ir jogar vôlei) que HD e Darío Sabine resolveram fazer uma visita ao Alex, o ex-seminarista. Alex mora num apartamento próximo a Universidade Católica, e atualmente abriga o seu irmão, recém-saído de uma clínica para alcoólatras. Isso os amigos só descobriram quando chegaram lá. Alex não estava, certamente saíra para pedalar até a serra, seu hobby de fim-de-semana, mas ao seu irmão não foi difícil de encontrar.

A porta do flat estava obscenamente aberta e o irmão, mais velho e mais grogue também, exibia-se todo espalhado pelo carpete da sala. Um apartamento até vazio, com almofadas (não poltronas) com estantes baixas repletas de volumes, muitos ainda com plástico (Alex não dispunha de muito tempo para leituras além daquelas do currículo acadêmico) e nas paredes uma cópia de Van Gogh e dois posters, um do Pink Floyd, onde via-se um facho de luz projetado sobre um desfile de martelos (sic!) e outro do filme Blade Runner, com um carro-aéreo a sobrevoar o imponente edifício cilíndrico. No corredor, uma guitarra, sobre uma caixa de isopor (certamente com bebidas).

Notaram tudo isso em um segundo, pois abrindo os olhos, de imediato, Renato, o irmão, se levantou, derramando abraços sobre os dois desconhecidos.

- Amigos de Alex? Ora, então são meus amigos também!

E ofereceu vinho. Mas a taça estava pela metade. E a garrafa, idem. Foi até a caixa de isopor (realmente, condicionando bebidas) e puxou outra. Vinho barato, mas nada desprezível. Depois, ligou o som, ou melhor, aumentou o volume do som. O que fez o flat estremecer. Estavam ouvindo a intro de “The Wall”, do mencionado Pink Floyd.

HD já assistira o filme (inclusive aquele que mais se repetia na telinha do boteco em frente ao colégio, onde o professor de Química vivia bebendo com os alunos do último turno, e HD assistia enquanto esperava Sandra, ou quando a procurava) e imaginava o desfile dos martelos em coreografia fascistas diante de um líder pálido e sadomasoquista, externando todo o seu medo neurótico em ameaças contra negros, judeus, gays e imigrantes. Darío lembrara referencias às obras do inglês George Orwell, aquele do romance sobre o “Grande Irmão”.

Mas o inusitado é que Renato continuava espalhado pelo carpete. Sem camisa, barba suja de queijo ralado, meio drogado, com certeza, e totalmente alheio. Em certos momentos, até dormia! Aí é HD mudar o som, e Renato se levanta, reagindo de imediato. Que isso, irmão! E o som, irmão! O solo viajante, pô! E emocionado se levanta para saudar os amigos, que nada entendem. Coitado do Alex!, compreendem. Logo, o anfitrião deixa-se cair sobre as almofadas. HD arrisca bebericar o vinho, e Darío ainda lendo as letras dos encartes dos vinis e compact-discs, gritando mais alto que o som (até perder a voz) comentários sobre trechos poéticos nas letras das canções.

Renato desperta, enche os copos de vinho, e volta para o carpete. Que os amigos fiquem á vontade. Vou sonhar com esta canção. Querem um baseado para viajarem? Às vezes, Renato se imagina e se comporta como se estivesse em pleno festival de Woodstock !




Depois das discussões nas tardes de sábado, quando HD renunciava a paz do quarto de pensão e Flávio desmarcava as partidas de vôlei, os amigos assistiam filmes mais off ou simplesmente sentavam-se na varanda para beber chá ou cerveja, dependendo do gosto e da coragem. HD, que anotava (de memória, segundo nos consta) trechos inteiros das discussões, organizava (se era mesmo possível) por tópicos ou assuntos. Notas onde pode-se perceber que qualquer semelhança com diálogos platônicos não é mera coincidência. Encena-se o mesmo drama com as mesmas angústias.

Everton – Qualquer ampliação ns esfera não-produtiva é ridícula. O sujeito deixa de lavrar uma roça, desenvolver um cultivo, para ser obrigado a cair na cidade, onde não há oportunidades. Acaba por perambular por aí – vendendo pentes! E quanta polícia! Exército na rua não basta! Polícia militar, civil, federal, legista, criminal, agora essa guarda municipal! É muita gente à-toa!

Flávio – É porque tem pobre demais – o que significa violência. Se o cara passa dificuldade, fome...

Hector – Desenvolvendo o tema, e a tua ideia, Everton, sobre a inutilidade do não-produtivo, a poesia é ridícula?

Everton – Por esta perspectiva, sim. Igual as cartas de amor. Todas ridículas. E ainda assim o Pessoa insistiu em seus versos. Pense: se o mundo fosse perfeito, ou perto disso, poesia pra quê? Protestar contra o quê? Denunciar o quê? Penso que o Poeta revela o desconforto. Se tudo fosse organizado, eu preciso concordar com Platão quando dispensa os poetas.

Hector – mas sempre haverá indagar, inquietações. Espirituais, digamos.

Everton – Que espirituais! O animal homem tem fome, e sede, e desejos. Alguém a tecer versos por estética, por ânsia de beleza, concordemos. Mas será um entretenimento como pescarias de verão, passeios no parque campestre, cursos de arranjos florais...

Hector – Seja por desabafo ou bela forma, sempre alguém ousará esboçar versos.

Everton – Não viverá disso. Se não produzir, se não contribuir na lida diária, se não trabalhar na terra ou na manufatura, será preso por inútil. Chega de desempregado de um lado e funcionários-fantasmas de outro. Que sejam banidas as mãos estéreis, os parasitas, os andarilhos, os sonhadores! Abaixo os inábeis, os ociosos e os solitários. Trabalho comum para o bem comum.






Outro trecho, datado de um mês depois.

Darío – A Revolução Russa foi uma revolução burguesa que resvalou em comunista. A Francesa quase seguia pelo mesmo caminho...

Hector – É, se o Graco Babeuf não fosse esmagado. Perto dele, os jacobinos parecem mais uns mencheviques...

Everton – O quê? Os jacobinos não tinham nada de moderados! Os líderes são verdadeiros bolcheviques!

Hector – Falta dizer que Lênin era um Robespierre, e Trotski, um Danton!

Darío – Aí o Stálin seria um Marat!

Everton – Veja o Babeuf: para explodir a revolução dentro da Revolução, ele teria de lançar mão do terror dentro do Terror.

Hector – Babeuf terrorista?

Everton – Não confundam. Moderados foram os girondinos que tentaram de todo jeito salvar Luís 16 e sua Maria Antonieta, a dos “brioches”. No drama russo, foram os mencheviques que tentaram resguardar o Czar Nicolau e sua Alexandra.

Alex – E daí? Quem seria o Rasputin francês?

(Há uma anotação, ao pé da página, certamente trecho de fala de Everton, que sempre agradou HD com certas tiradas.)

- Os índios invadem as instalações da FUNAI, os sem-terra ocupam o prédio do INCRA, os Sem-Teto vão morar nas marquises da CONHAB. Pelo menos para alguma coisa prestam as nossas repartições!



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LdeM