domingo, 28 de março de 2010

Náuseas de Estudante - cap. 2

.
..
...

Novamente encontramos HD numa agência. É bem recebido, num ambiente agradável, tudo organizado, está bem vestido (gastou as últimas economias com roupas), é atendido por uma recepcionista muito prestativa e atraente, antes a conversar com um homem jovem, de porte elegante,possivelmente um colega ou superior, quando surge a psicóloga, mulher jovem e sorridente, a convocar, “Por favor, Hector Dias”.

Segue pelo corredor, os olhos postos na ficha de inscrição, e suas exigências de dados que nem a Gestapo devia pedir. Fora a parte inferior da ficha, QUE O CANDIDATO NÃO DEVE PREENCHER, área de anotações para o psicólogo, se o Candidato se veste bem, se tem boa aparência, se tem boa expressão verbal, se é extrovertido, se mostra sociabilidade, ou seja, dispositivos básicos para ENQUADRAR o Candidato, selecioná-lo!

Teorias da conspiração à parte, a entrevista é uma atuação. Nada de dialeto coloquial, atenção com a postura, nada de críticas. Se você olhar para os lados, consideram desatenção, e se encarar a psicóloga, consideram tentativa de intimidação, ou se ficar observando os papéis sobre a mesa, consideram sinal de indiscrição e curiosidade mórbida. Ou seja, de todo jeito, eles vão te rotular.

HD diante da psicóloga. Muito agradável, de uma beleza modesta, que deixa HD atraído. Mas sejamos profissionais. Ele sustenta o olhar, não se interessa pelo papéis na mesa,não comenta os quadros na parede (apesar de perceber uma cópia de Matisse), nem a paisagem pela janela (isso lembra letra de música), mas mergulha nos olhos verdes-oceânicos da quase morena. Tudo vai bem, HD não fuma, não masca chiclete, não anda mal vestido, não tem “nome sujo”, nem ficha na polícia, no entanto, ó céus !, não tem experiência REGISTRADA.

É verdade que ele trabalhou, por quase um ano, num balcão de papelaria, mas, ó mon dieu!, não teve a Carteira assinada.
Sua ficha será arquivada para futuros cargos – que não exigem experiência – e ele pontua sonoros Boas Tardes para todos, se despedindo dos olhos da psicóloga, dos dedos sensuais da recepcionista, ainda pensando se a psicóloga fará um X no círculo de extrovertido ou introvertido.

Isso nunca o incomodara antes! Para que servem os introvertidos? Para criarem artes? Para os extrovertidos? Doentes fazem obras para os saudáveis? É claro que introvertidos lêem, ouvem, introvertidos – mas é para os extrovertidos que eles escrevem poemas, compõem músicas!

E nisso passa outra dama, acima de suas modestas posses, uma jovem a sair de um consultório dentário.

HD se analisa (até com certa freqüência, convenhamos) se está triste (logo introvertido) por estar frustrado. Nem ousa encarar a mulher que vem em sentido contrário. Deseja-las para quê? Mas sabe que se houvesse conseguido o emprego, seria agora OUTRO sujeito. Estaria assobiando canções da moda, estaria pensando em compras futuras, estaria ali abordando aquela loira de sedutores óculos escuros.




Folheando o jornal. “Evite o Currículo desfocado”, percebe na seção de empregos. Não querendo chances, os candidatos indicam o interesse em várias áreas. Tal tática pode ser interpretada como falta de rumo, dizem os especialistas (pois sempre há um especialista! O que seria de nós sem os especialistas?)

Ora, vejam só! Quando você determina uma certa área de interesse, você é, para eles , seus selecionadores, um limitado, por pouco versátil.

E quando você indica uma possibilidade de atuar em cargos diversos,não é que você é versátil, pois você é, para eles, um “desorientado”, por aí sem rumos, à deriva.

Ora! Essa de querer agradar aos empregadores, para ser selecionado, é igual a querer agradar gregos e troianos, cruzeirenses e atleticanos!



Finalmente, HD entra num treinamento. Venda de Purificadores de Água. Consultor Comercial. Deve demonstrar os benefícios do produto às excelentíssimas donas-de-casa Lembrar-se-á sempre que encontra-se numa Empresa que valoriza seu Capital Humano (Capital? E humano?) disponibilizando toda um infra-estrutura e investindo no funcionário.

Durante os treinamentos, a chefe da equipe de vendas, impreterivelmente, há de tocar,no sofisticado CD-player, “We are the Champions”, da banda inglesa Queen (que HD até aprecia, mas em tais condições...) , julgando assim levantar o moral da (produtiva!) equipe.

- Somos vencedores !

Tudo isso para venderem purificadores de água, não morrerem de fome, e darem lucro para um firma que pouco interessa.

- Pois a água mata!

“Patético.”



HD e o uso da gravata. Ainda vendendo (ou tentando vender) os tais purificadores de água. No sábado (pois trabalha aos sábados até quinze horas) degusta um lanche no Mercado Central, e entra no lavabo, para colocar a gravata, rosa estampada, e ao sair, trafegando pelos corredores impregnados de cheiros, os mais diversos, vai notando os olhares, os mais deslocados. Como se ele estivesse com um risível nariz de palhaço!

E atravessa a névoa de almíscar, perfumes, balidos, gracejos, e cai na claridade da rua Curitiba, e assim manhã dentro até a Avenida Bias Fortes, endereço do escritório.

A Crise da água. Eis o tópico da palestra de hoje. Água poluída. Água desperdiçada. Sistema de tratamento da água. Preservação dos mananciais. Falta de chuva e a pequena vazão na hidrelétricas.

O Diretor está igualmente irônico, gracejando, e sem gravata. O que pode HD concluir? Descobre simplesmente que não se costuma usar gravata aos sábados!


HD e o uso da gravata. Parte Dois.

Pois bem, o contraponto. Dias depois, HD esquece a gravata na pensão e aparece no escritório sem seu ar sério.

Alguns notam o deslize do colega. Mas nada dizem. Esperam a desaprovação verbal da Chefe.
O que, de fato, ocorre.

Ele não fora dardejado antes por permanecer em sua sala, ocupado com o telemarketing, mas quando chegou à sala de reuniões, sob os acordes de “Nós Somos os Campões”, a chefe desceu nele o olhar e não perdoou.

- Onde o senhor pensa que está? Num clube? Numa festinha de amigos? Esse lugar é um lugar sério, de trabalho sério. E eu quero seriedade!

Silêncio. HD balbucia desculpas. Mas apenas se patenteia sua submissão final. A generala mantém o olhar faiscante.

HD deixa o escritório, cabisbaixo. Sem despedidas. E jamais volta.



Deitado na praça. Olhando o céu ao crepúsculo. Aí sente uma latinha de cerveja cair sobre o peito. O que é isso? Depois umas pedrinhas e outra latinha, agora de refrigerante. Senta-se no banco,olha ao redor. À distância de um poste,uns moleques, e até uma garotinha, correm aos risos. “Ele acordou! Corre, Rita!” estão se divertindo com o pobre desconhecido.

- Ainda bem que eu não estava em Brasília, senão, jogavam era um balde de álcool e um fósforo!

Aldo contava a sua história, e HD quedava-se todo penseroso em como tememos a exclusão, a ponto de humilharmos e odiarmos os que nos parecem mendigos.

- Já parou pra pensar que mendigo não é gente?

- É, meu bom. Talvez sejam anjos. Disfarçados.


continua...

LdeM

sábado, 20 de março de 2010

Capítulo 2 de NÁUSEAS DE ESTUDANTE


Capítulo 2


Nos sábados à tarde, após dormir toda a manhã, HD cultiva o hábito de estudar,ouvindo música. Se não era Mozart, eram outras psicodelias. “Shine on you crazy diamond”, eis o que ele ouvia, quando ecoam vozes próximas. A senhoria subindo, ruidosamente, as escadas, a trocar argumentos com algum possível novo inquilino.

- Sim, essa época das provas. Muitos estudantes. (uma pausa) Alguns já reservados. Mas este quarto só...

E a porta do quarto se abre. A mão da senhoria na maçaneta e uma face sorridente de rapaz, o que se lança quarto adentro.

HD, que tentava se com concentrar, é obrigado a ser cortês com os intrusos (ela nem sequer bateu na porta!) e abaixar o volume do som. O recém-chegado passeava olhares pelo quarto. HD também observando. Via-se que o rapaz, ao menos era sociável. De estilo alternativo. Roupa simples, quase um hippie, com sua sacola de lã, sandálias, cabelo curto mas despenteado, falando sorridente, “Já gostei aqui do meu colega”, e sorri (sempre sorridente!) como se fossem velhos amigos.

Em seguida, desceu seguindo a senhoria, para acertar pagamento, conseguir uma almofada entre outros detalhes.


Além de Pink Floyd, Aldo (como prontamente se apresentou) era fascinado com Sagrado Coração, e Secos e Molhados. Carregava na mochila umas fitas-cassete com gravações de Led Zeppelin e The Doors. Gostava também de viola caipira. Desconhecia música clássica.

Não somente gostos musicais uniam os companheiros de quarto. Aldo viajara muito e HD adorava os relatos das andanças.



Outro interessante dado biográfico do recém-chegado: ele viera de Itabira. “Noventa por cento de ferro nas calçadas. Oitenta por cento de ferro nas almas.”

Na manhã seguinte, HD desceu para lavar roupa. Alguém sugeriu uma contribuição coletiva para um tropeiro ( que esperava-se também coletivo). Pensionistas diante de um TV recheada de banalidades. Resolvem ratear as despesas para fazerem uma “vaca atolada” (prato composto por costeleta e mandioca), e HD solta umas moedas. Aldo, já enturmado, sustenta conversas paralelas. O Bug do Milênio, isso e aquilo. O coronel do massacre do Carandiru, julgado? Condenado?

O almoço até que foi de acordo. O filme na TV é que era péssimo.

O quarto de HD não é imundo e abafado, como aquele de Raskólnikov, muito menos frio, como aquele de Charles Bovary, e passa longe daquela espelunca do protagonista-narrador de “Fome”. Duas camas, uma estante, um guarda-roupa, uma mesa. O banheiro é no fim do corredor, e coletivo. De manhã é aquela fila. Um monte de marmanjos alegando pressa e prioridades para passar na frente. É a lei do mais forte.

Aquela manhã, um tanto cinzenta, HD acordou cedo, pois pretendia procurar emprego. Compra um jornal numa banca da esquina da Bias Fortes e vai ler ali na praça Raul Soares, de costas para o famoso Edifício JK, e mesmerizado diante dos arbustos em forma de esferas. Glóbulos verdes. Também mendigos compõem a paisagem urbana. A fonte da praça está morta, somente resta uma água parada, fétida. Os jardins não recebem muitos cuidados, e um odor de urina é onipresente.

Oferta de empregos. Vagas sem exigências de experiência. HD anota os endereços e telefones, marca pontos num mapa (que comprara recentemente), traça roteiros mentalmente. Aí chega um cidadão, com um saco de aniagem nas costas, num chocalhar de latas e garrafas descartáveis. Sob a sombra da árvore à direita, começa a amassar – uma por uma – com a bota. A estridência rasga o dia. Registra-se um fato.

Um catador de latas na praça.

Outro fato: a paciência de HD, que continua no mesmo banco, a observar o cidadão.

O sujeito fazendo o que considera o seu trabalho.




As andanças de Aldo. Assim as narrativas que o rapaz alongava noite adentro, enquanto ouviam “Stairway to Heaven”. HD meio sonolento e Aldo empolgado, olhar fixo no teto, mãos sob a nuca.

Suas andanças. De como caminhava para chegar ao colégio. Quase uma hora para ir, uma hora para voltar. Demorava mais para voltar, pois tinha fome e o sol não estava manso.

Nem concluíra o ensino médio, precisando trabalhar ao lado do pai, um marceneiro. Igualmente nada de curso técnico, e assim nem operário Aldo conseguira ser.

Ajudara uns parentes numa colheita de milho, pros lados de Monlevade, mas, muito sonhador, não se adaptara às rotinas rurais. Preferia as caronas nas estradas, almoçar numa churrascaria de estrada, ouvindo modinhas de viola ou folk-rocks ianques. (HD logo imaginava os passos adiante na atmosfera sonora de um Bob Dylan ou Neil Young) Gostava de seguir trilhas nas montanhas ( o que muito agradou a HD) e pescar noite adentro, “aquelas de lua bojuda que nem laranja”.

As pensões eram luxos de fases boas, quando conseguia um emprego de carregador ou ajudante. Freqüentava era albergues, ou deitava-se em bancos de praças (“menos agora, camarada, depois do que fizeram com aquele índio pataxó”)

Numa serraria, onde trabalhava pesado, até sábados, altas horas, “pros lados de Valadares”, ousara olhar para a filha do patrão, “linda mulata de cabelos fartos e lábios generosos”. Mas o romance durara pouco, alguém dera o alarme, ele se viu fugindo na noite para não apanhar dos colegas, muitos pagos pelo patrão, ou irados de inveja.

Então resolvera descer em BH, pegando o trem que vinha de Vitória. Bebendo num botequim da Lagoinha, encontra dois boêmios que lhe oferecem emprego. Carregar móveis. E eis que está ali, a narrar seus “causos”.

Enquanto a voz pausada e provinciana de Aldo é emoldurada pelos solos de guitarras de velhas bandas inglesas, HD vai pensando naquele Viramundo ali à sua frente, naquele Pedro Páramo em seu On the Road mineiro, vivendo nas estradas, contando com caronas, gozando amores esporádicos. Tudo muito sedutor, algo literário, mas HD sabe que, por mais que sinta-se tentado, jamais se arriscaria a uma vida assim.é filho de funcionário público, educado a prezar conceitos como segurança, conforto, postergação dos prazeres, preocupação com o futuro.

HD sentia-se uma formiga, curiosa, a ouvir as narrativas da cigarra.

HD sempre incentivado a ser o bom aluno. Lembra de sua infância. Sete da matina. Manhã fria. Terceiro ano na escola. Subindo a ladeira para alcançar a portaria ainda aberta. A mochila pesada e a portaria distante. Os passos incertos e o morro infindável. O portão quase inalcançável. Passos inúteis, a mochila quase escorrega ( o peso do globo nos ombros de Atlas, a rocha da punição de Sísifo). A imagem do portão se fechando, o fracasso, a volta para casa, cabisbaixo, a bronca e a surra, a saudade da escola, dos brilhos nos olhares das meninas, a merenda que poderia compartilhar com os colegas, agora mastigada e engolida entre lágrimas, sozinho no quarto, no canto da cama.



Um dia, certa manhã, HD foi tirar a segunda via da carteira de identidade, o famoso RG. Mais de uma hora na fila, juntamente com muitos jovens iguais a ele. Lembrava que da última vez fora a fila para o alistamento militar, e que toda mulher ou mocinha que passava era prontamente motivo de ironias e gracejos, a se propagar por toda a fila, como um rastilho de pólvora.

Depois de assinar (nervosamente) seu nome, espera para tirar as impressões digitais. Ali está. Hector Dias Guimarães de Almeida.

Um funcionário frio e ríspido, mecânico tal uma máquina, aparece, logo tratando-o tal um criança, a segurar suas mãos e, um a um, vai sujando os dedos com uma tinta negra. Sempre exigindo a passividade, o oficial carimba-lhe os dedos contra as folhas e o papel timbrado esverdeado, onde jaz uma foto sua.

Na hora de lavar os dedos, a estopa ainda mais suja. Mas oficial insiste que é ali que ele deve “limpá-los”. HD não percebe a inscrição na parede, onde é imperativo usar a pia após a estopa, e é novamente abordado pelo oficial.

A procura da eficiência, o oficial, o perfeito profissional. “Eu até poderia ser amigo dele. Ele aceitaria?” HD procura sua dignidade, meio às digitais, “O que ele terá pensado quando aconteceu com ele?” era como um ritual de passagem.

Deixar-se catalogar, assumir um número, acatar o registro dos serviços de inteligência, é isso tornar-se cidadão? E é a partir daí que se torna responsável?

Nas filas ( ele não pode evitar) sente-se como os judeus em filas diante dos oficiais nazistas, tal um rebanho sendo conduzido, uma absorção, uma despersonalização meio à multidão.

E estar ali para ser checado, analisado, rotulado, catalogado, numerado, classificado, encaixado, adaptado.

- Não sou um número, não sou um código em série, sou uma pessoa.

Tal uma personagem de Kafka, reduzido a humilhação de seu bizarro processo, triturado nas engrenagens da burocracia, HD percebe-se inserido num jogo do qual desconhece as regras. Um jogo no qual ele já nasceu perdedor. Ou não?





Informado sobre inscrições para emprego, numa repartição pública, HD para lá se encaminhou numa terça-feira de manhã indecisa.

É atendido por duas recepcionistas, que se confundem nas informações, mas prontamente auxiliadas pela secretária ( a loira junto ao computador), ao explicar com mais clareza. HD recebe os formulários para a inscrição, mas está mais atento ao movimentar das mulheres, todas na faixa dos vinte, vinte e cinco, e principalmente a morena que está junto a mesa, a folhear uns maços de folhas, fingindo trabalhar, ao que parece, não mais que uma estagiária.

Ela, a morena, com suas sandálias transparentes e as curvas dos delicados pés, lisos e claros, o fascinam, a ele que não sabe se se concentra nos dados a serem cuidadosamente preenchidos ou nas formas da moça. Vem brotando aquele entranhado sentimento de impotência, de estar diante de mulheres interessantíssimas e, infelizmente, para ele, inalcançáveis. Que homem conquistaria aquelas mulheres? Que rendas mensais devem possuir?

E ainda entra outra, cabelos curtos, e se propõe a ajudar a loira, ao computador, com pose de ser a responsável ali. E o caso é que elas não se aquietam, pois parece que, em suas complexas funções, precisam ficar saindo de salas e entrando em gabinetes, alisando os cabelos, ajeitando os vestidos, deixando uma mescla de perfumes no ar. Como pode um jovem rapaz se concentrar assim?

Finalmente, ele preenche a ficha, o que fez lentamente, degustando o vinho fino, a beleza viçosa daquelas mulheres. Que estão ali empregadas para conseguirem empregos para outros. E seus pais estão empregados? Quem sustenta os seus lares? Gastam seus salários com estudos ou embelezamentos?
Lembra dos comentários do pai, o velho funcionário público, quando sabia que outro pai de família esta desempregado, “Que é pra deixar vagas para as filhas dos bajuladores!” e que era uma verdadeira vergonha aquelas mulheres levando os cargos dos homens, que passavam, muitos, a ficar em casa, lavando a louça e passando roupa.

E aqueles homens a perambularem pelos pontos de ônibus, oferecendo CDs piratas, capas para celulares, isqueiros coloridos? Quem conseguiria um cargo para eles? Ou serão todos realmente supérfluos?

E quanto aos crimes cometidos por desempregados? Os índices alarmantes de violência, assaltos, golpes com cheques, distúrbios no lar, ressentimento e ódio contra as mulheres!




Um dia, desta vez manhã ensolarada, HD numa fila de emprego, no bolso a carteira de trabalho e previdência social, acomodado na portaria da agencia de recursos humanos, lendo atento e alheio ao redor, segurando firme o cartão com o número da senha para atendimento.

Aí, de súbito, uma voz curiosa:

- Você é comunista?

HD olha o outro, um tanto surpreendido. “Quem será esse aí?”

- Ainda estou estudando...

- Ah, bom. (diz com certo alívio) Então, estude bem. E tenha cuidado. É preciso atenção e bom senso.

“Quem ele pensa que é, para ficar dando conselho? O que ele considera “bom senso” ? E por que “cuidado” ? Até parece que estou lendo algo proibido!”

E, com dedo médio marcando a página da leitura, observa a capa, vermelha, do opúsculo. Em garrafais, “O Manifesto comunista”, Karl Marx e Friedrich Engels.

continua...

LdeM

domingo, 14 de março de 2010

Náuseas de Estudante - final do C1

(...)


A ressaca lhe dificultava e orientação meio a claridade derramada. Piscando, Pôde divisar, através das lágrimas, alguns madrugadores (às nove horas, numa manhã de domingo!) entre as árvores. Alguém corria atrás de um gato. A mão esfarelando um bocado de pão.

Havia movimento no corredor. Um grupo montava ali alguns equipamentos, dos quais escorriam miríades de fios que serpenteavam pelo chão. HD julgou distinguir uma câmera de vídeo.

No sanitário, porta cerrada, ouvia exclamações em linguagem que diria técnica. Enquadramento, cena tal e tal, plano médio e depois o close-up. Uma voz mais sonitroante incensava Glauber Rocha e lembrava Nélson dos Santos. “Glauber Rocha e Deus e o Diabo no Sertão de Canudos”. Uma insinuação feminina esclarece que esquecem ali os créditos ao Duarte.

Outras duas jovens vozes masculinas se alternavam junto à amurada.

- Quem foi (e ainda é) o maior inimigo de Hitler?

- O maior deles, você quer dizer, dentre tantos! Churchill, Truman, Stálin, sei lá...

- Não, você não entendeu. Estou me referindo a Charlie Chaplin!

- Ah, entendo! O cômico contra o espírito de gravidade, o risível contra a dramaticidade trágica!

Carlitos, “de bengalinha e chapéu-coco, sapatos compridos, olhos melancólicos”, perambulando sem eira nem beira, com um cão raquítico, um menino maltrapilho de olhares carentes, atravessando faminto a existência entre mercadorias. Faminto, “e sabes a arte sutil de transformar em macarrão / o humilde cordão de teus sapatos”, patinando nas lojas de departamentos, à beira dos precipícios do consumo, para um mercado, para uma máquina, na qual o ser humano não passa de uma engrenagem, nunca senhor do progresso, mas escravo. Ovelhas num aprisco ou operários numa fábrica, qual a diferença? Moído nas imensas engrenagens da indústria, ou esbravejando discursos irados, movendo o gado humano das fábricas e dos exércitos, um pobre barbeiro judeu a ser confundido com um ditador histérico,mas um pobre barbeiro judeu que diante dos microfones não hesita em lembrar “vocês não são máquinas, vocês são seres humanos”, ó Chaplin, “ó Carlito, meu e nosso amigo, teus sapatos e teu bigode caminham numa estrada de pó e esperança”, Canto ao homem do povo Charlie Chaplin.

O diálogo ( e o devaneio) é cortado por uma voz – seca, pausada, obviamente masculina – lendo fragmentos de um possível roteiro, algum volume que segue folheando entre os atores. É ouvido atentamente até que a voz feminina – aquela insinuante, de outrora – faz um delicado aparte. Ressalta uma fala, deixa claro o tom flâneur do diálogo.

- Ela está emocionada, mas não demonstra. – HD se ouve, falando sozinho, na solidão da privada.

Outra voz anuncia que tudo pronto para o ensaio. Movimentação. Alguém entra no banheiro. Água escorrendo na pia. Chiado de cigarro afogado.Fumo se espalha no ar. Num pigarrear, é um homem. Passos e hesitação. Aproxima-se da porta. Desiste. Afasta-se. Silêncio.

Quando HD saiu pôde notar um casal com trajes ao estilo anos sessenta ( pelo menos é o que parecia). Casal a conversar, num idílio plácido, ao longo do corredor, e seguidos pela lente da câmera.

HD avançou, meio constrangido, junto a parede, para não incomodar as filmagens. Cuidados em vão, pois o casal desfez a pose, e num esboço de sorriso, voltou a posição inicial. Logo incorporavam as personagens.


No quarto, somente o ressonar dos adormecidos. Antro abafado, aquele. Suprido de luz, mas não o suficiente. E se abrisse as janelas? Não, logo apareceria alguém para incomodar. Olhou ao redor. Fotos, cabides, aparelho de som, revistas, pilhas de livros, roupas. Sobre uma das cadeiras, uma brochura. O que será?

Folheando o livro, encontrou. “Todos os problemas são insolúveis”, e outra, “ a solução é a conduta católica”! Alguém replicava, pois isto é “supressão da vida”...

A prosa de botequim logo o interessou e, em pouco, HD se divertia ao lado do amanuense em pleno carnaval de l935, imaginando como seria a fascinante donzela Arabela.

- Mas o homem espia o homem, inexoravelmente.

Ao pé da página alguém anotara à lápis, lisez les classiques, lisez Proust. Certamente um conselho de Henri.

Mas HD insistia em continuar na leitura do presente volume. O tímido amanuense descobria uma pista – descobrira onde morava a sua amada. Mas havia ali qualquer coisa de mentalidade entreguerras que HD não entendia. Algo a que o filósofo (o Castillo) se referira no dia anterior – “uma necessidade de tomar partido”. Esquerda e Direita. Comunistas versus fascistas. A queda da Bolsa, o desemprego, a fragilidade das democracias liberais. A guerra civil espanhola. A diplomacia de Chamberlain. A intentona comunista na Era Vargas. Intervenção do Estado. Guerra Fria. Hoje somos neo-liberais ou não. Ou podemos mesmo escolher? Querem dizer que social-democracia não faz sentido? Conciliação que nem tentamos: vinte anos de ditadura direitista...

Na repartição, o amanuense arquivando mágoas, registrando as vidas frustradas dos colegas, as ilusões perdidas. E um amigo às voltas com o mito faústico – sim, era uma vergonha não saber alemão.

HD pode imaginar o escrevente atrás de um balcão, a rabiscar uns versos, que prontamente oculta, ao notar o vulto do chefe. E é uma cena tão vívida! Ele fazia o mesmo! No balcão da papelaria, a ocultar seus rabiscos, os tantos livros.

Sim, lembra que o patrão até lia uns volumes lá no Caixa. Até livros em inglês. Não fora lá que lê descobrira James Joyce? Os contos sobre os cidadãos dublinenses e suas andanças e frustrações?

Já esquecera as tardes imensas nas trincheiras? Ou chafurdando nos charcos da guerra do Paraguai? Ou listando revoltas do obscuro Período Regencial? Ou indeciso a que lado defender na quase guerra civil que foi a revolta constitucionalista de 32 ?

Nos volteios do pensar, o livro quedava aberto sobre os joelhos, esperando atenção. O olhar de HD seguia as capas multicoloridas das revistas. Uma perna nua. Ou lábios sorridentes. Dois títulos em francês despertam certa atenção. Dois volumes caídos sobre os sapatos.

Inclinando-se, pescou os livros: “La Nausée”, Jean-Paul Sartre, o diário existencial de Antoine Roquetin, com páginas cheias de rabiscos e sublinhados, e “À l’ombre de las jeunes filles em fleur”, Marcel Proust, onde, na primeira página, o francês (o próprio Henri!) rabiscara: “Il dejá parlé: Lis-moi, pour apprendra à m’aimer” (de Baudelaire, HD descobriu depois. “leia-me,para aprenderes a me amar)

- Quem disse?

Como a responder, eis uma pancada na porta. Repetida, antes que esboçasse reação. “É alguém que bate à porta. Só isso e nada mais!”

Não era o corvo. Era o francês. Pô, só de pensar nele! Que nem o diabo que.

O caso é que ele queria saber se ainda sobrara cerveja. O que poderia dizer? Distribuiria a cerveja do Darío? Mas acordaria o amigo por causa disso? Por causa de um cara que cura uma ressaca com outra?

- O Darío tá dormindo, Henri. – e abriu um pouco mais a porta para o francês conferir tão vera desculpa.

- Je puis voir. Rien ne trouble le eternel repos. (Eu posso ver. Nada perturba o repouso eterno)

E foi entrando, se sentou e nada mais.

Observou, algo sonâmbulo, os livros que HD folheava, ali deixados sobre a cadeira. Reconhecendo-os, declamou com ar de enfado:

- "La chair est triste, hélas! Et j’ai lu tous les livres.”

Um corpo se virou estremecendo a cama de molas.

- Ótimo isso, acordar ouvindo versos de Mallarmé!

Darío sorria, olhos no teto, mãos sob a nuca.

- O que ele disse? – eis HD, todo curioso.

- Que já leu todos os livros. Ah, vã pretensão!

Darío se voltou para o lado, descobriu o relógio do Mafra e foi se levantando, Vers midi, mon ami!

Então HD descobre que passara três horas lendo!! Concentrado em dramas alheios, como um bom leitor-voyeur! E ainda mais surpreso ao ver Darío despertar de bom humor!

- Bem, é hora de notre dejeuner. – Jogou as cobertas para um canto e foi lavar o rosto – Mas almoçaremos aqui mesmo.

E diante do olhar interrogativo de Henri:

- Ó Bordeaux, esqueceu que o bandejão hoje é lá na Direito? – voltando-se para HD – Sabia que aqui temos o bandejão itinerante? Cada domingo num canto diferente! E eu não vou atravessar a cidade para buscar comida! É só cozinhar um macarrão aí.

Mas HD percebia que o amigo estava animado sim, e muito. O que teria acontecido noite adentro?

O Mafra só levantou quando o cheiro de batata cozida invadiu o quarto. Darío planejara uma maionese, e o Mafra, claro, ajudaria – a comer. HD notou que ambos andavam um tanto reticentes, não falavam o mesmo idioma. Darío conversava em francês com o Henri, e o Mafra xingava em espanhol, !Y uma mierda! !Que sé yo?!

E HD ajudava, silente, lavando pratos e talheres.

Depois do banquete dominical – maionese, arroz à grega e macarronada – com os quatro à mesa (Henri se sentara à beirada da cama) regado à caipirinha (leves doses, claro) e muitos ?Qué hay? ? Que pasa?, HD se apresenta voluntário para lavar a pilha de vasilhas.

Foi nesse momento de dona-de-casa, tendo os titulares do quarto se ausentado – sem qualquer justificativa – que surgem Rosália e a irmã, dadas à sussurros junto à porta. “eles arrumaram um serviçal?”, ria a madame dos saraus.

Claro que HD disfarça o incomodo, e exagera o sabão nas panelas. Solícito por cordialidade? Algum desconforto por causar despesas? Estaria incomodando?

E as mulheres até se sentaram na cama. “E o Aranha, hein, rapaz?”

- Saíram por aí, nada me disseram. (Estaria soando muito antipático?)

No entanto, os estudantes logo retornam. Trocam lisonjas e anedotas. E saem (o quarteto) parolando pelo corredor e logo as vozes somem. HD agora pode terminar a lavação e até varrer o quarto. Uma ordem a surgir no caos primordial. Mas, Une bière, mon ami!, Henri surgia à janela, pedindo uma latinha. E aproveita e mendiga um cigarro.

- Pobre do Darío com esses amigos que ele arranjou. – resmungava um incomodado HD, a ordenar os livros na estante.

Ousou ligar o rádio, um rock’n’roll na rádio comunitária do Santa Teresa, “People are strange...”, mas o vizinho do quarto ao lado deu o grito. O porteiro chegou à janela:

- Quem está perturbando a ordem?



(fim do Capítulo 1)

domingo, 7 de março de 2010

Náuseas de Estudante - c1 da p1

.
..
...


- Não. Você não vai gostar.

Darío aprontava-se para sair. Mafra o esperava à porta do quarto.

- A gente vai descer aí por umas boates...

Isso para evitar que HD esboçasse qualquer intenção de acompanhá-los. E faltou advertir que “era hora de menino estar na cama”. Mas HD perdoou o amigo, ao notar seus esgares ébrios.

De fato, e sem detida averiguação, nada sobrara da caipirinha. E da cerveja, só meia dúzia de latinhas.

No problems!”, jogou um colchão junto a parede e adormeceu. Diluída embriaguez sem sonhos.

Um rangido. Um ruído seco. Um duelo de vozes. Na escuridão, um brilho de mínima chama flutuando, intrusos!, um cheiro de fumo. Devia ser alta madrugada. Quanto tempo dormira? O galo não cantou ?

A voz agastada de Darío e a voz solícita, implorante de Mafra. Esquecidos de sua presença, certamente. Deixam-se cair nas camas, do jeito que chegaram. As molas em estalos. O brilho do cigarro parou junto a parede, HD percebeu o par de botas que caiu ao seu lado. Mafra se acomodava ainda atormentando Darío, que jazia calado.

HD ainda ouviu alguns resmungos, mas o sono pesava e.




Foi um longo suspiro. Um profundo resfolegar de um touro bravio.

Então bruscamente arrancado do sono, aconchegou-se, desejando posição mais cômoda – mas somente conseguiu bater com a cabeça. Que espécie de cama era aquela? Onde estava afinal?

Próximo a testa dolorida, pessoas passam. Seguem a carregar pequenos embrulhos, bolsas, sacolas plásticas multicoloridas. Sussurram, abafam risinhos. Luzes se acendem: um estreito corredor! Ei, onde estou? Ele ali engavetado numa poltrona dupla, corpo encolhido, adormecido num ônibus de viagem.

Olhos atentos numa face pálida examinam. Deve ser o motorista. Ele observa o rapaz abraçado a uma almofada.

- Parada final, companheiro.

Ei, dormi a viagem inteira? As outras tantas paradas mergulhado no sono? Atravessando a província todo sonâmbulo? Vagas lembranças: o radinho, a chiar em precária sintonia, o som sumindo, e voltando, em oscilações. O locutor a exaltar um drible perfeito, lance direto numa marcação cerrada, a voz esvaindo-se, fundindo-se ao sonho. Ou a melodia amargurada de um Pink Floyd em sua punhalada final, enquanto solos de guitarra melancolicamente rasgam a noite. E, diante do olhar sonâmbulo, a longa estrada até as estrelas, meio apagadas, assim através das janelas, nas frestas das cortinas. Outra estação: uma canção dos anos setenta, uma sensação nostálgica: ouvira a melodia in utero ? , e o afastamento, uma inquietação, uma saudade de abraço de mãe.

Sim, adormecido. Estrada e noite adentro. Entregue às pálpebras pesadas do motorista, e sua pupila irritada entre os faróis. Desperto somente agora meio a relincho tão irado: o escandaloso freio em expirações derradeiras. Mas quantas vezes não terá rasgado a noite – parada após parada! É imensa, a província! E ele ali aconchegado como um feto, a abraçar uma almofada, a ouvir uma sintonia que é só chiado!

Sim, um sonâmbulo é quem deve ter descido nas outras paradas. Ido aos sanitários, bebido uma água mineral, mastigado uma rosquinha açucarada.

Mas era hora de saltar fora. Foi o que fez, meio alheio, a esfregar as olheiras, a sentir câimbras nas pernas. Agarra a mochila, desliga o chiado dos fones, sobe o zíper da jaqueta. E desce na plataforma – essa névoa, exalações de óleo diesel, esse aroma de café, solícitas vozes meio aos estrondos do freio a ar, essa agitação de malas soturnas, essas promessas de novidade.
É um arrastar-se ali pelo saguão, com exagerada bagagem – a mala de roupas e calçados, a valise de mão com livros e rascunhos, a mochila – a procurar um guarda-volumes. Logo á direita os sanitários: rosto lavado, um pente no cabelo, dentes lixados. Aí então foi experimentar o café da rodoviária – café com leite – e uma rosca açucarada.

Não eram ainda seis horas, e do alvorecer apenas um esboço. Ali sentado, aquecido pela jaqueta, estômago saciado, a dissipar-se a sonolência, as pernas esticadas perdem o torpor. Fones nos ouvidos: um rock’n’roll, um refrão: não pegue esta garrafa, “don’t take this bottle!” Estamos em tempos abstêmios. Lembrai-vos de Al Capone! Mas a atenção passeia através do saguão: chegam outros ônibus – ouve os relinchos lá embaixo, nova maré de malas e valises. Faces sonolentas invadem tudo, disputam cadeiras, conferem bagagens, acorrem aos telefones. E passa um momento – e novo grunhido dos freios, agitações de bolsas coloridas, de mão e mão, senhoras arrumam seus lenços, crianças seguem a cochilar, rapazes apalpam os bolsos, senhores fecham os casacos, alguns reconhecimentos, seguem-se abraços, sorrisos. O sono continua.

As rodoviárias se fundem. Um espreguiçar em mil cidades. O bocejo em todos os lugares. Onde despertara e outros onde jamais estivera. Saguão morno, um casal sem crianças, um vendedor de amendoim torrado. O pai leva a mala, ele compra a passagem, sintoniza uma rádio – e ouve junto aos conselhos uma cantata de viola.

Súbito, ele vê uma cidade adormecida, nas brumas, um café expresso, a aurora vindoura, as curvas das montanhas, o mar de morros! E vê um ser imenso com tentáculos de concreto e eriçados pêlos de metal. E algum lugar o sol surge nas colinas, na névoa, na pupila cansada. O asfalto cobre a relva, os arbustos definham no cimento. Um novo mecanismo!

Uma lenta olhadela ao saguão, e lembrou-se da bagagem. Cabeça baixa, procura na mochila um cupom. Seguiu um raio de luz derramado no ladrilho. Foi aí que realmente esqueceu onde estava.





Uma pancada na porta. HD sentiu-se. Enrolado. Um feto na tepidez das cobertas. A boca seca, um peso na nuca. Outra pancada. Abriu os olhos: sim, agora era mesmo dia. O sol rastejava na parede oposta. Derramava-se pelo cabide, pelo chão. Já flutuava alto, invadia o quarto pela vidraça acima da porta.

Como as pancadas se repetissem, as molas se agitaram. Darío se levantou, ao mesmo tempo que Mafra, escorado à parede. Dário, mais próximo, abriu a porta, os olhos lacrimejantes ao sol.

- Bom dia, colega. Esqueceu o nosso convite?

Darío engolia um bocejo, esfregando as pálpebras já irritadas.

- Pô, Alex, cedo assim! Nem domingo vocês me liberam!



- Ora, Darío, pois domingo mesmo. Dia separado para pensarmos além dos afazeres materiais.

HD, dobrando as cobertas, enrolando o colchão, percebeu do que se tratava. Darío faltara à missa ?

O Mafra já blasfemava: - Ah, vamos dormir, Darío. Despacha esses carolas. Incomodar deus pra quê?

E se enrolou nas cobertas.

Darío não ocultava certa irritação, mas via-se seu constrangimento. Olhava agora para HD, que enxertava o colchão debaixo da cama, onde o fotógrafo novamente ressonava. HD intuiu que Darío pedia uma ajuda para se livrar de um compromisso do qual já se arrependia. E espocaram imagens de um Darío fiel colaborador das comunidades de base, freqüentador da biblioteca paroquial.

- O que é que você andou prometendo, Darío? Você, ovelha desgarrada...

Confabulando, no corredor, com os prosélitos, percebendo que o caso ele mesmo é que devia resolver, Darío logo os despediu.

HD lavava o rosto, na pia minúscula, quando Darío retornou.

- Prometi aparecer no outro domingo.

- Por que tanta atenção com essa gente?

Então, surpreendido, HD sentiu em si a hostilidade vazada nas palavras. Lembrava então o furor sectarista da família de Sônia, oprimindo a menina com uma devoção neurótica.

- Ah, não é grupo entusiasta! Nada de aeróbica do Senhor! O Alex é cuidadoso leitor do Boff.

- Se refere a esquerda católica?

- É. Para atrair o Alex para os nossos estudos marxistas, deixe-me ser atraído para as suas reuniões sócio-devocionais.

Darío preparava o café amargo – pelo visto sua especialidade gastronômica do momento – bocejando, lançando olhadelas às cobertas desfeitas. – Você não liga se eu.

- À vontade. Essas olheiras dão medo. Vou ficar lendo ali no canto.

HD resolvera ir antes ao banheiro – e logo.

(...)

LdeM