quarta-feira, 23 de junho de 2010

ainda o cap. 4 de Náuseas de Estudante

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Os pés ligeiros correm pelo estrado de folhas ressequidas, entre as lâminas de sol, filtradas entre o plexo de ramos, onde, se haviam frutas brilhantes, ele não notara, pois a banheira, e a água borbulhante da banheira, a bebezinha imersa em gargalhadas, resfolegando meio as bolhas de sabão. Bolhas em miríades. Mas, e aquele triciclo?

Os pés esfolados. Há sangue. Borbolhas de água tinta rubra. Que chutam uma bola que se banha em sol e água. Entender que as pernas chutam a bola que se alegra no rio de espuma e o esguincho de gargalhadas do corpo brancorosado que agita uma névoa de bolhascristais.

- Ai, não deixa no olho...

A bebezinha vê e deseja as rodas que brilham e as bolhas que sobem e a espuma que lhe ameaça os olhos avermelhados.

- Ó mãe, tá coa mão num ôi !

A pitanga esmagada sob a mão que guia as bolhas da mão a face, a enfeitar os olhos que – não adianta mesmo – protestam contra o sol e o sabão.

Mas, olhe bem, um floco de poeira vem cair junto ao rio que se forma.

- Afonso vai mesmo reformar ali o muro. – e pano velho cai no varal entre as roseiras.
A tia-avó limpa a sofrida vassoura com um garfo entortado.

- Ó Hilda, esse xampu não irrita os olhos? A Débora toda assim cheia de espuma!

Mas há um estranho brilho na borda da banheira, onde um estranho pato amarelo de plástico brinca desafiando uma mão que – pobre ser! – impede o seu nadar calmo pelo lago de espuma, em bolhas que brilham, e sobem e estalam, e explodem:

- Quer que eu deixe as crianças aqui? O sol não tá forte não... mas óia ali o meninu lambuzando a varanda todinha coaquelas rodas tudo enlameada!

Mas não é que é mesmo? Um rastro medonho desliza pelo piso – ‘tava mesmo limpo? – a distribuir sua lama e espuma.

- Onde eu deixei o rodinho todo azul?

Seguir as bolhas e mergulhar na banheira, todo um brilho que machuca os olhos, no seu sabão e no seu reluzir de bolhas de cristal.

- Olha, eu não tenho um chapéu?

A luz cobre o agitar da água, onde a mão ousada seduz e agarra o pato em sua peregrinação:

- Bicudo! Bate nele!

Ali a beijar a espuma – ainda que o gosto te deixe arrepiado – a espuma que não seria somente espuma, mas a sua proteção, tal uma sombrinha aberta contra o sol da tarde de verão.





- Defina o conceito de “Hegemonia” segundo Gramsci.

A voz do professor desperta HD na modorra da manhã. Inevitável olhar para o lado. Um sorriso brilha na terceira carteira à direita. Um rosto moreno de promessas. Ela cruzou as pernas e responde ao interrogatório.

- “Pode-se dizer que para Gramsci, a Hegemonia é a cultura numa sociedade de classes

- Certo, dona Janaína. Mas isso está no livro da Chauí. Sejamos mais críticos, sim? Mais nós mesmos, o que acha? Em suas palavras, quero dizer.

- É... ora! Quando existem classes sociais, uma sempre vai mandar em outra!

- Mas sejamos mais amplos, mais sutis, também. Que isso de ‘hegemonia’ guarda uma sutileza!
- Ora, é fazer que uma classe seja dominada por outra. É mandar em...

- É mais sutil. Não domínio,. Mas condução consensual. Ultrapassa poder, e cai nas esferas culturais. É fazer os valores do dominador serem aceitos e internalizados pelos dominados.

Uma camisa azul-marinha se agita na segunda carteira à esquerda. É a voz de Luiz, que fura a manhã de ventilador pifado. – É como se as ovelhas aceitassem pensar como os lobos...

- Querendo ser os lobos! Os pobres querem ser ricos também, não é? – Agora era um vestido quase rubro que levantava um braço, uma caneta e a voz.

- Os ricos movem a máquina prometendo aos pobres que eles, os pobres, podem ser ricos também – algum dia! Desde que sigam as regras dos ricos...

- Ok, ok. Gosto das participações. Mas “hegemonia” é a capacidade de “direção”, de “condução das massas”, de “soberania de uma visão do mundo”, sendo política e culturalmente considerada.

- Ei, Naína! Estou vendo a cara do Pato Donald na sua mochila! – gritou alguém.






- Agora que Globalização é realidade...

Flávio dizia, apoiado no carro, cuidando em amarrar os cordões do tênis, onde HD lia uma marca estrangeira.

- Mas posso citar muitos que consideravam o nacionalismo como o responsável pelas guerras, ainda mais as do século 20. Nacionalistas de direita e nacionalistas de esquerda.

- Então, a globalização, ou a “mundialização”, como preferem os franceses, é uma boa? Era esperada?

- Uma boa? Depende para quem. Tem gente lucrando, com certeza. Mas é uma conseqüência provável desde as Grandes Navegações, que inauguram o comércio global em grande escala. Nada de caravanas, o lance são as caravelas, os navios abarrotados de mercadorias e especiarias! Não é o problema a mundialização. O nacionalismo, sim. O desejo das esquerdas foi sempre o internacionalismo. Mas alguns países estão mais preparados – mais protegidos - do que outros para o comércio em escala global. Assim, carregam tudo, e dão o preço.

- É mesmo! O próprio movimento anti-globalização só é possível porque existe a globalização!
Enquanto Flávio dá caça as espinhas se inclinando diante do retrovisor, HD se concentra nos rótulos coloridos e oscilantes exibidos nas mochilas das três mocinhas que passam. E como se ele não existissem!

- O que é preciso é uma Regulamentação nessa de “globalização”. Regras que levem a uma maior igualdade com melhor divisão e circulação de rendas. O problema não é a “mundialização”, mas o modo “salve-se quem puder pagar” como o processo está aí. A quem a globalização serve? Quem está lucrando? Não há drama em que a Terra se torne uma, como dizem, “Aldeia Global”, e que o seu tênis venha da Indochina, desde que os trabalhadores sejam respeitados, e as culturas regionais sejam preservadas.

- Concordo. Daí o povo precisar opinar, intervir na coisa toda! Por isso, sou a favor da democracia. Só nas democracias há verdadeiro diálogo.

- Flávio, esse seu idealismo me comove! Democracia? Qual democracia você quer? A formal, a representativa, a direta? E mais: a jurídica, a econômica, a social? A política, a substancial?





Inusitado foi o encontro com um tal Raul Miranda, nos corredores da Fafich. O tal Raul era amicíssimo do tal Castillo e era, certamente, aquele especialista em Era Vargas, que outrora despertara comentários. Especialista em Década de 30. O chamado “Período Entreguerras”, e todo aquele panorama mundial, etc.

- Então, o colega conhece o Castillo? Está organizando aí um comitê...

- É, o Darío me disse. Uma célula no D. A ....

-Não tive tempo de ir. Estou escrevendo um trabalho sobre a propaganda no Estado Novo. E também algo sobre o Integralismo.

- Interessante. Descobri, tempo atrás, que o Plínio Salgado também foi escritor...

- Propaganda! Atrair a massa através da literatura. Divulgar idéias reacionárias através, ou melhor, nas entrelinhas do estilo. Muito comum isso na França, na Espanha. Gente de direita e seus romances reacionários.

- Lembro do Graciliano preso, acusado de “subversão comunista”. Já leu “Memórias do Cárcere”?

- Não. Mas aí o Graciliano é outro caso: o escritor de esquerda. Mais outro turbilhão de 36. Mil novecentos e trinta e seis. Ano complicado. No mundo todo. Basta lembrar que estoura a Guerra Civil Espanhola.
E nisso o tal Raul se encostou na murada do corredor, apreciando lá de cima, o busto do pensador Emmanuel Kant, solitário meio aos arbustos do jardim, diante da Biblioteca. Dois rapazes passaram, compartilhando o cigarro. O tal Raul continuava.

- Sim, ano turbulento. Autoritarismo de direita, com os fascistas, os franquistas, os integralistas, os varguistas extremados, e os autoritários de esquerda, com os estalinistas, ensaiando para os “processos de Moscou”. Entre os extremistas, encontramos os socialistas moderados, os social-democratas, muita gente lamentando o fim da Luxemburgo, digo, a Rosa de Luxemburgo, pois seus livros eram então lidos, e comentados. A falência da social-democracia, a derrocada de Weimar, esses lances.

- Conturbado, o cenário. Acho que foi este ano que o Graciliano publicou o romance “Angústia”...

- Conturbado? Cê tá brincando! A Itália, sob o tacão de Mussolini, invadia a Etiópia, e Hitler, em plena ascensão, cuidava em perseguir adversários e ordenar a remilitarização da Renânia, fora a segunda visita do Marinetti, o tal futurista, fascista italiano, isso sim!, ao Brasil.

- Sei. O poeta já tinha aparecido por aqui antes. Acho que em 26. Os modernistas paulistas ficaram de boca aberta. Mas parece que você se esquece que em 36, o Sérgio Buarque de Holanda lançou seu “Raízes do Brasil”...

- Claro, claro. O grande historiador! Pena que o pessoal lembra mais é do filho, o Chico... mas é que me preocupa os movimentos subterrâneos dos Integralistas, e dos Comunistas. Um reação ao outro! Tudo o que Vargas precisava para instaurar o Estado novo, nosso fascismo tupiniquim.

- Ah, em 36, também, a primeira transmissão de TV! A BBC de Londres! Então já teríamos as imagens das bombas ao vivo...

- O colega tem boa memória, hein! Enciclopédico! Mas em História, meu caro, é preciso entender de processos. Não muito de info, dados, datas, eventos. Mas causas e conseqüências. Não isso de decorar nomes e títulos. Mas poder e forças sociais. Era uma época em que o sujeito político precisava se decidir, ou era a favor da mudança,ou apoiava a mesmice, os coronéis, os caudillos, os duces e os fuehers, sabe... e se o cara falasse demais ia sofrer alguma tortura, algum expurgo, ia parar na Sibéria... ou na selva amazônica...

- Ah, 36! Não é o “ano da morte de Ricardo Reis”?

- Você já leu o romance do Saramago?





Então, numa tarde sem data, HD encontrou Darío Sabine diante do busto de Kant. Daí se acomodar ao lado do amigo, a fim de comentar o livro que andava lendo.

- Se eu dependesse dos professores de literatura para gostar de ler, pode esquecer, cara!

- As aulas de literatura são a melhor forma de se odiar literatura.

- Mas o que você anda lendo?

- Um soco no estômago! “O Lobo da Estepe”, do Hesse.

- “Steppenwolf”? Sei. Já tive as minhas náuseas com o tal.

- De repente serve par alguma coisa.

- Lá vem você com essa de “ser útil”, de utilidade das coisas.

- O que você acha?

- De útil? Mas útil pra quem? O produto livro? Útil para o autor, para o editor? Para o leitor? O enredo do livro? Idem, idem. Sempre se é útil para alguma coisa. E de repente nem se é útil para si mesmo. Servimos para os propósitos de alguém...

- Teoria da conspiração...

- Que nada! Mas é igual aquela velha pergunta: o que você vai ser quando crescer? O que VOU ser? Como assim? Eu AGORA não sou nada? Só serei alguém quando for útil? Quando pagar todo o investimento que fizeram em mim?

- Parece que é. Quando alguém perguntar quem você é, e você disser que é “doutor”, ou “especialista em idiomas”, coisas assim.

- Logo, a minha identidade é dada pela minha posição social, profissional. A forma como sou útil a sociedade.

- Ou inútil. Se for um bandido, por exemplo.

- Mas você está se esquecendo da utilidade aí! Pois sem bandidos não haveria empregos para carcereiros e carrascos...

Agora, cabisbaixo, HD encarava a capa nebulosa do romance. Imaginava o protagonista diante do espelho, uma navalha na mão. Ou num teatro de horrores. Voltou-se para Darío e seu semblante sério.

- Você não parece gostar muito do sistema...

- Que sistema? O que é sistema? O sistema. Sistema social? Econômico? Político? Sistema normativo?

- Sei lá. O sistema, essa teia de aranha ao nosso redor. Os cordões que nos prendem iguais se fôssemos fantoches...

- O que é isso? Bakhunin está afetando o seu cérebro? Diagnóstico: excesso de leituras anarquistas. Olhe, Hector, o problema aqui não é que haja algum “sistema” e suas normas. Normas precisam existir. Limites precisam existir. Mas o problema é colocar a “norma” acima do próprio ser humano. Para quem servem as normas? Normas que ordenam um jogo onde alguns ganham, e os demais perdem. Na verdade, a norma devia servir à todos, não nós servimos a norma. Sim, pois ao contrário da norma servir ao nosso bem-estar, nós é que nos curvamos sob o peso da norma!

- A norma é uma espécie de Frankenstein...

- Lá vem você com literatura! Mas é quase isso. Perdemos controle sobre as tais “normas” e elas saem andando por aí, a provocarem desastres. Ou então passamos a adorá-la. Imagine! A norma, a nossa criação! E passamos a adorá-la como se ela fosse outorgada pelos deuses! O racional (sejamos kantianos!) seria se utilizar da norma, e não se curvar diante dela. A norma é um necessidade, mas nossa vontade é soberana.

E HD folheava e folheava as páginas do romance, sem ler coisa alguma, notando apenas pontos de tinta negra em folhas quase amareladas, cheias de manchas e digitais desbotadas. E deixava o seu amigo Darío desabafar, e ele bem que precisava. O tempo de Hector ainda chegaria. Só esperava não se tornar também um prisioneiro de sua própria idéia de liberdade.





Era para ser uma segunda-feira comum. Juntar os currículos e sair para a tour de agência em agência. Nos intervalos devorar um sanduíche ou algum pastel suspeito. Mas recebera um telefonema avisando-o da entrevista às dez horas, na agência E. RH .

HD acordou cedo, após sonhos confusos, onde aceitava o convite de um amigo (quem?) para ir a uma boate de striptease, e a paquera ficara sabendo do programa e acabou por deixá-lo. Então ele implora aos Céus uma outra chance, e promete a alma aos poderes dos quatro elementos, tudo isso para poder voltar no tempo e reparar o seu erótico erro. Ao fim, ele realmente retorna no tempo, mas retorna muito tempo antes. Talvez uns dois anos, pois a garota nem morava na rua onde ele a conhecera, e quando consegue reencontrá-la, numa parada de ônibus, ela está de cabelos longos (ela que exibe o charme dos cabelos curtos...), olhar distante, e obviamente não o reconhece (claro, convenhamos, ela ainda não o reconheceu!) que cai na real e entende que precisa é reconquistá-la, fazer tudo de novo, mas como?, como foi mesmo a primeira frase?, não se lembra, então, suando perplexidade, ele desperta.
E foi dormindo dentro do ônibus, que (novidade!) demorou a aparecer e demorou a chegar a Afonso Pena. Dez minutos atrasados (segundo os ponteiros da recepção) o que não alterou muita coisa, visto ficar esperando até quase onze horas para que se iniciasse a tal entrevista coletiva. E com umas cinqüenta pessoas na sala! Lotada! Nem haviam cadeiras, que a instrutora precisou sair a procura...

A instrutora explica pacientemente, bem ao estilo nova pedagogia de pré-primário, os detalhes sobre a empresa contratante, que atua nos emaranhados da telefonia, e sobre as facetas do ansiado cargo, gentilmente (um poço de simpatia...) solicitando aos candidatos que se apresentem. O que as mocinhas fazem de modo lento, enovelado, narcisista, entre entediante e irônico, enquanto os rapazes se apropriam de um formato mais objetivo e claro. Mas (convenhamos que o tempo passa...) logo, nos aparelhos digestivos, soam as doze badaladas e uma anunciada parada (uma pausa, digamos) para o almoço (da instrutora, esclarecemos), propiciando aos ansiosos um relaxamento nas cadeiras ou um passeio pelos corredores.

Com o segundo advento da instrutora, todos são conduzidos a outra sala, no andar de cima, onde recebem as folhas com as provas de redação, português e noções de informática, enquanto HD escolhe um lápis com ponta decente, diante de questões que se apresentam simples e pouco originais (“acho que já vi isso antes...”, pensa HD, cruzando os dedos) que não exigem mais do que meia hora de tormenta mental. Registra-se que já são uma e meia (13 e 31 – em dígitos verde-piscantes) e que os candidatos são liberados para um lanche (rumam até as lanchonetes estrategicamente localizadas...) e quem foi aprovado deve retornar às três horas.

Na saída, um cidadão, com um maço de folhas impressas, bloqueia os passos de HD rumo ao paraíso dos pastéis. Trata-se de um jovem vendendo listas com endereços de agências de emprego! “Todas as da capital e arredores!”, ele garante.


Após o paraíso dos pastéis, o jardim das delícias. Dos doces. Na praça, sob as sombras deslizantes. Termina uma sequência de versos (que iniciara ainda durante a palestra da instrutora) e tenta ignorar o cataclisma do trânsito e o estresse dos motoristas, anotando um verso, devorando um doce.

Voltando à agência de RH, ainda meditando, apenas para constatar que o tempo às vezes passa devagar. Descobre que faltam vinte minutos para às quinze horas. Instintivamente, ainda meditativo, procura um recanto sossegado, a fim de passar a limpo seus poemas.

- E aí, Hector, estudando um pouco?

Uma voz a procura de amizade. Ali, tranquilo, e finalmente reconhecido! O dono da voz é um dos rapazes da avaliação da manhã. HD, esforçando-se para lembrar o nome do cidadão, responde ao cumprimento. Enquanto o outro sobe lentamente as escadarias, os olhos de HD retornam aos parágrafos áridos de um texto sobre “O Capital”, do Marx, enquanto espera a hora, a temida hora da Dinâmica!

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LdeM

quarta-feira, 16 de junho de 2010

continua o cap. 4 (Náuseas de Estudante)

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Atravessando a Praça da Liberdade, ao sair da Biblioteca Estadual, HD alcança a avenida João Pinheiro, onde pretende esperar o ônibus para a Lagoinha. Mas o estranho é que o ponto está vazio.

Minutos para as dezenove. Um vulto apoiado no muro. Iluminado pela luz do poste. Um rapaz, olhar firme, um volume nas costas, certamente uma guitarra ou violão.

Outro cidadão notifica a ambos a tal greve. O jovem pergunta as horas. O cidadão informa. O jovem sugere o metrô. Seguem pelas ruas ruidosas, tomadas por veículos estressados. É a falta de coletivos. Em algumas esquinas, grupos de funcionários embarcam em kombis ilegais.

- Um ruído. A cidade é um imenso ruído.

O jovem músico concorda. HD complementa. – Ainda mais para você, que é músico, deve ser o pesadelo.

Uma maré de carros e buzinas desce a avenida, abafando as vozes. O músico comenta o ensaio para um show de fim-de-semana. Um rock’n’roll mais pesado e mais soturno. E reclama da quantidade de colagens e estilos de interesse comercial.

- Pouca arte, muito truque. – HD concorda. – Uma avalanche de músicas estrangeiras. O que você entende? É como ir à igreja ouvir a missa em latim!

- Na música, o que eu gosto é o solo de guitarra, ou a voz do cantor. A melodia, o ritmo.

- Daí tornar-se entretenimento. A música enquanto diversão. Distração. “Rock’n’roll a noite toda e festa todo dia”. Rebeldia enlatada. Outro consumo.

A escola de Direito. O músico lembra de uma calourda. Pergunta se seu interlocutor é estudante.

- Estudo História. – diz um lacônico HD.

Para o músico, tal matéria sempre fora motivo de torturas. Nomes, fatos e datas. Lutero, Reforma, Colombo, mil quatrocentos e noventa e dois, Descoberta da América. Mil e quinhentos, Álvares Cabral, acaso ou intencional? Dom Pedro Primeiro, Independência ou morte?

- Eu não suportava. E estudar isso dá dinheiro?

HD tentava ser diplomático: - Se dá dinheiro? Mas, diz-aí, você ganha alguma grana com esta guitarra? (e batia no estojo negro, sem saber que não se tratava de uma guitar, mas de um electric bass.)

- Nada. Trabalho com digitação.

- Trabalha por grana, não? Ou faz por que gosta?

- Não gosto. Mas é o emprego que arrumei. Queria ir pra faculdade. Estudar mais.

- Você é então um refém do mercado. Não faz o que gosta, mas o que é preciso. Se eu fosse olhar essas de “dá grana?”, não estudaria História.

- Ah, estuda porque gosta.

HD era mesmo paciente: - Não. Não é porque gosto, e sim porque é preciso!

- É, mas professor vive f...

- É triste. Mas é preciso esquecer as gratificações e pensar mais na necessidade de passar a limpo a História deste país.

Um repórter desceu do carro, diante do jornal Estado de Minas, e não pôde deixar de notar os dois vultos. Entrou na Redação, não sem antes ter o cuidado de jogar o cigarro na sarjeta. O músico pensava alto: - Pouca gente faz o que gosta...

- E fazem obrigadas. – HD empolgado. – E a questão nem é fazer porque gosta, nem por recompensas. Mas a necessidade. A necessidade de sobreviver versus a necessidade de serem esclarecidas.

HD não saberia dizer se o outro entendia. – Existem certos ‘engodos’, entende? Pregam as oportunidades iguais para todos, não é? Mas, observe, pare pra pensar, quantos carros, e quanta gente nas ruas sem transporte coletivo. É impossível que todos tenham um carro! Não apenas por diferença de renda, mas também por deficiência das vias públicas! Nem rodízio resolveria! Assim, somente alguns, os privilegiados, e os que prestam serviços aos privilegiados, podem manter tal conforto.

- É, meu pai vendeu o carrão, que quase chegava a ser meu...

- Então, imagine você precisar voltar pra casa, a pé, por falta de um serviço essencial como é o caso do transporte coletivo!
Desciam a rua da Bahia, onde, diante do mercado das flores, um cego pedia informações, e seguiram, com um olhar, a loira, de vestido preto, a atravessar o viaduto Santa Teresa.

Moleques ofereciam balas de hortelã no sinal fechado.

- O importante é observar. Aprender a observar e aprender a denunciar. Aprender sempre, da forma que puder. Nunca um momento sempre aprender algo.

- Tipo assim: para não desperdiçar o momento então aproveito para aprender?

- Isso-aí! E nada de viver como um sonâmbulo. Cochilando nos coletivos, hipnotizado pela TV, entorpecido nas filas dos guichês !

A Praça da Estação apresenta o espetáculo do início de noitada, com seus bares convidativos, moças fáceis, figuras com poses de malandro, ao estilo “malandro oficial”.

- Gente demais. O problema da metrópole: transbordando de gente, e rompendo o cercado original. Deformando todo o belo desenho. Cuidadosamente planejada pelo ilustre Aarão Reis...

- Pô, cara, mas que papo-cabeça, de historiador! Você já pensou em ser guia turístico?

Sorria enquanto seguiam pela avenida Santos Dumont. Nas asas da noite. Envolto pelo perfume das damas, envenenado pela luxúria. Ou asfixiado pela névoa de tóxicos. As buzinas envergonhavam o cantar sedutor das sereias, aquelas de pernas nuas, à espera de clientes.

- O que você pode aprender aqui?

O músico olhava ao redor, mas padecia de outras preocupações.

- Pô, irmão, tô precisando de um ‘intera’, pra pagar o metrô.

HD tirou uma nota, a pensar, “Ele deve pensar que a companhia dele já é paga o suficiente.”

Nas despedidas, o jovem sorriu um “Adelfo”. E mergulhou na torrente de faces cansadas.



Não apenas mendigos e andarilhos se encontravam sob o viaduto Santa Teresa naquele fim de tarde, quando HD subia da Contorno para a rua da Bahia. Lento entardecer de quinta-feira, quando sua mente se voltava para as pilhas de livros nos sebos do Edifício Archângelo Maletta, onde pretendia encontrar um dicionário Español-Português para providenciar urgentes traduções de Lorca e Neruda.

Algo mais havia. Sim, uma voz.
- Pois as profecias estão se cumprindo! Haverá fome, diz a Palavra! E estamos passando fome! Nunca houve tanta produção, mas muitos rastejam em troca de um prato de comida! Muitos vivem de migalhas que caem das mesas dos banquetes! Meus queridos, a Palavra do Senhor não mente jamais!

E em torno da voz da trombeta (que ecoava de um microfone) reuniam-se outros homens de paletó e gravata. Um afinava um violão, pronto para uma intervenção sonora, com um hino de louvor, pois junto a ele uma mulher, jovem e de vestido longo, ajuntava as mãos em gesto de oração e fechava os olhos. A voz ondulava.

- E estão cegos! Todos cegos! Negam a Palavra e destroem o planeta! Com agrotóxicos, com poluentes, com químicas, horrendas, meus queridos! Esquecem do Todo-Poderoso que veio se sacrificar por todos nós, para que tivéssemos uma vida íntegra, digna! Então, a Mão do Senhor se abaterá sobre esses infiéis...

E aos pés do segundo engravatado, junto a escada, um mendigo enfiava uma coxa de galinha na boca quase sem dentes. Em suas mãos brilhava o invólucro metálico de um marmitex. Sim, entregue certamente pelo missionário. Ah, que providencial! Daí a atenção mesmerizada dos mendigos!

- Eis que matam a fome espiritual, e também a fome bem carnal, dos míseros ouvintes!

E ouvindo o surdo balbucio, HD seguiu além do banquete dos mendigos.





HD encontrou o ator mais uma vez, mas não se lembrava do nome dele.

O caso é que Darío Sabine o convidara para assistir aquele filme numa noite de Belgrado em plena guerra balcânica, em sessão disputada no Palácio das Artes.

Mas, antes, passaram numa lanchonete. Cream-cracker e vitamina. E numa vernissage. Nuances da Arte pós-moderna.

- O que distingue uma obra de arte de uma bizarrice qualquer?

Indagava-se HD, em voz alta, ao lado de Darío Sabine, seguindo ao longo das paredes, ou estático, diante de um fenômeno. Obra de arte? Um pano retangular preto, descendo pela parede. Na parte superior, um recorte de revista. Lábios rubros em amplo sorriso (de alguma propaganda de creme dental, ou batom) em contraste com (o que vemos?) um lírio branco, alvíssimo, fixado na parte inferior. Recém-colhido! (e nosso artista todo dia a substituir a flor?!)

Ficaram ali parados um bom tempo. Encaravam o prodígio. Até indiferentes aos risinhos sarcásticos de uma garota, agarrada ao namorado, diante dos quadros surrealistas. (Ah, como ela devia se sentir superior!)
Darío Sabine julgava que a arte (ou não) aquelas excentricidades eram apenas isso: o súbito espantar-se: fendas no cotidiano de hábitos. Pois discordar de uma estética é ainda considerá-la, desviar o olhar para ela! Outro critério: é arte quando nos atrai, não seguimos adiante, com indiferença. Ou seja, quando somos arrancados de nossa vã segurança habitual. “A prisão do hábito!”

Não convencido, HD julgava que toda aquela futilidade servia para distrair,para entreter os desocupados, nada denunciando da dura realidade da exploração no sistema burguês.

Concordando que a Arte distraí, entretém, Darío que, por isso, por trazer beleza à rudeza da vida, a obra artística pode nos redimir, evitar o ato suicida devido ao desgosto.

Não que HD discorde, mas ressalta que a arte deve servir para despertar os oprimidos, libertá-los da alienação, no sentido de que alcancem consciência da opressão.

Mas Darío pensa que Arte procura a Beleza não só por alívio, para um despertar social, mas para conferir algum Sentido, um Significado ao existir no mundo.

BARRIL DE PÓLVORA. O filme do diretor sérvio.

- Deixe-me ver. “Vidas que se cruzam nas ruas de Belgrado... Como é que é? Bure Baruta? Barril de Pólvora. Produção iugoslava-francesa, de 1998, do diretor Goran Paskaljevic...” Sei...

Sim, personagens que se encontram em Belgrado, numa noite de turbulências, num clima de conflito, no chamado “barril de pólvora”, onde teve origem a Grande Guerra, depois Primeira Guerra Mundial, lá onde, na Segunda Grande Guerra, duas décadas depois, o general Tito resistiu aos alemães nazistas, lá onde os conflitos étnicos e religiosos abalaram a esperada paz do pós-Guerra Fria.

Darío comenta o quanto a crueldade é desumana. HD não pode deixar de esclarecer que a crueldade é inerente ao ser humano, logo é humana, demasiado humana.

- Não entendo esta concepção de “humano” enquanto “solidário e justo”. Seria um humanismo positivista, uma vez que o ser humano é contraditório. “A mão que afaga é a mesma que apedreja”, assim não disse o Augusto dos Anjos?

Mas Darío Sabine já morria de tédio e arrastou seu amigo HD para um cerveja ali no Edifício Arcângelo Maletta.



O ator respondia pelo topônimo de “Lisboa”. Não que fosse proveniente de tal capital européia, mas por chamar-se Hélvio Antônio Lisboa. Estendeu gentilmente o convite a Dario e seu amigo HD, para um lugar acolhedor ao lado de uma atriz um tanto falante. HD acomodou-se ao lado da atriz, um tanto obesa, e Darío à direita de HD. Diante do olhar de HD e todo desgosto com a feiúra das mulheres à mesa, Darío sussurrou, “Está pensando que todas as atrizes são Luanas Piovannis?”. Havia, além deles, um casal, daqueles in love, que nada sabiam da conversa, ocupados em beijos e abraços.

Lisboa, à esquerda da atriz (a um tanto obesa) dava continuidade ao assunto “Estética”, ou melhor, “Anti-Estética”. Até porque o Lisboa estava em trajes um tanto punk aquela noite. Cinturão cravado de tachas, camiseta sem mangas e com palavras de ordem em inglês, denin & leather e botas surradas. Mas contraste maior era entre seu visual e sua habitual cortesia.

- Senso estético? O que é isso? O que é belo para uns, não é para outros!

E comentava com HD uma recente audição de Debussy, “Après Midi d’un Faune”, e o genial poema de Mallarmé. Ah, que pena não saber francês!

E a atriz (a um tanto obesa) começava a descrever bizarrices e enumerar as peças nauseantes com recursos escatológicos. Um ator fingia masturba-se no palco, ou pior (“pior?”) uma atriz atirava na platéia um absorvente íntimo usado (“usado, gente!”) e outras cositas más.

Sem falar da agressão anti-estética dos punks, dos jovens do novo metal pesado sadomasô e esquizofrênico, a obscenidade das tatuagens, o masoquismo dos piercings, o horror das marcas à ferro quente (“nas costas, meu bem, nas costas!”), a performance dominatrix de Marilyn Manson, a auto-mutilação à serviço da “Diferenciação”.

Mas, ao fim, a noite nada teve de bizarro. Exceto o fato de ninguém cair de bêbado.



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LdeM

quarta-feira, 9 de junho de 2010

Náuseas de Estudante (cap 4)

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Mal chegou para jantar e logo avisa que vai sair. A senhoria resmunga e HD passa à comida. Salada, empanado de frango. Pé-de-moleque é a sobremesa.

Abotoa a blusa de flanela e encara a brisa noturna. Clima agradável após a chuva leve.
Desce a rua da praça, sob as últimas gotas. E nem percebe os vultos sob os postes, juntos aos muros mais escuros, a fugirem da luz de mercúrio. Pernas à mostra, botas de cano alto, sorrisos lascivos. Quando se deu conta, já estava no território delas. “Uh, vem cá, gostoso!”, “Olhe que cabelo lindo que ele tem!”

Desvia sem mudar o ritmo, a observar, a evitar mal-entendidos. Insinuações de encher o ego do macho, jovem no cio. Passou adiante. Gemidos e risinhos. Eufóricas.

Observa-se. Calça jeans surrada, blusa preta, cabelos soltos. Mas não é narcisista. O problema é o desconforto. O desejo há, mal algo em mim envenena-me com culpa. As putas e os sorrisos de batom. O que me impede de ter prazer? Observa os vultos. Qual explicação? Sensualidade incontida? É caso de desestruturação econômica, desemprego? Alugar o corpo quando não se pode vender a mão-de-obra?

Vultos postiços. Para os travestis é ainda mais difícil. Toda uma hostilidade social. Só se revelam nas sombras da noite. A noite que arranca os véus. Homens de carros esportivos manobram sob as árvores, tecem propostas, escolhem, aceleram, desaparecem, tudo com discrição, status e um nome a zelar. Filhos de figurões. Fidalgos.

Operários seguem a pé, passam as mãos rugosas e calejadas na pele ainda sedosa das mulheres, rudes com hálito de bebida, luzentes de suor, cheirando a fumo vulgar. Elas negociam, enrolam notas entre os dedos esmaltados, manchados de nicotina ou cicatrizes de queimaduras.

Os operários evitam os gays. Se pudessem partiriam para a agressão. E os gays ficam num misto de medo e desejo, enquanto as mulheres são negociadas. Como fazer, se desejam os operários, machos potentes, mas que não ocultam o desprezo?

O que me impede de ter prazer com um homem, um daqueles travestis? Educação repressora? Os gregos não julgavam normal o que hoje é abominação? Porém toda uma tradição patriarcal, onde o macho fertiliza a fêmea submissa, a perpetuar o sangue e o nome do patriarca, não concede lugar ao invertido.

Imagine aqueles haréns com dezenas de jovens submissas! E só de imaginar vem toda uma auto-censura! Reprimir a sexualidade... então surgiu o Sr. Freud e escandaliza meio mundo com a revelação de desejos ocultos, retorno do recalcado, sexualidade pervertida... já dissera Sade, o marquês...

E sinalizou ao ônibus. As imagens das mulheres na penumbra se esfumaçam, mas, logo acomoda-se, percebe as curvas d suas passageiras. Uma de pé, logo a frente, acompanhada por um garotão, e outra sentada, nos bancos paralelos, vestidinho curto, pernas magníficas. Seu hálito recende a sexo, possuído de um torpor lânguido. A imaginação aumenta as formas, completa as linhas que o vestido oculta, e redesenha, em dimensões voluptuosas, ao acrescentar pequenos retoques. Apaga desproporções, maquila traços da face, retoca aquele batom. Em suma, passados alguns instantes, ele julgava diante de si as duas fêmeas perfeitas!
E um desassossego, um aperto na calça, dedos trêmulos, um suplício. E ainda a modelo peituda a sorrir no outdoor, e ainda a propaganda de meia-calça, e ainda a letra caliente daquele samba de batida sensual. Olhos fechados: a imaginação em delírios. Olhos abertos: as formas desejadas ao alcance das mãos.

O casal a se esfregar. O garotão, um tanto afobado, insiste em alisar o vestido da mulher, enquanto ela protesta, num controle intimidado, a afastar as mãos atrevidas. Em cada gesto cúmplice e moralista, e se entrega e se recusa, seduzindo e castrando.

Aqueles embalos sensuais o afligem, e se fecha os olhos uma figura sensual chega esvoaçante com as formas e o sorriso de um desejo conhecido. Naína ofertando os lábios fartos. Ouve os risinhos abafados e eis o voyeurismo aberto.

Aí a luz se paga por instantes, e quando refazem a luz o Don Juan grita: “Ah, apaga a luz, pô!” a vulgaridade é desculpada pela névoa ébria?

Amassos, luz que pisca, buzinas, vizinho querendo ler, o outro quer que apaguem a luz, todos querem algo, todos querem transar. Como agradar todo mundo?

E eis que entra um cidadão, a arrastar consigo uma garotinha, despenteada, coberta com farrapos. E ele não está em melhor estado. Inicia uma ladainha, quiçá decorada, de que não deseja fazer nada de ‘errado’, diz ele, que desculpem, mas deseja só um minuto de atenção, e lamenta sua situação, recita sua desgraça, ele pai de família desempregado, nascido no interior, aquela ali é a caçula de suas três filhas, e a mulher mal tem forças para lavar roupa, e que ele não consegue emprego, desculpe incomodá-los, aqui pedindo auxílio, qualquer contribuição, a caridade ali dos ‘corações cristão’, qualquer centavo, vale-transporte, mesmo uma palavra amiga, se não podem ajudar, ao menos não façam ‘cara-feia’, ou ar de compaixão, ele um homem trabalhador reduzido a um pedinte, aponto de perder a família, a ponto de ‘virar mesmo um marginal’, hoje está pedindo, amanhã – que Deus não permita – pode estar tomando, lesando o próximo, ele homem trabalhador...

Nesse drama, HD não sabia se fingia dormir, se prestava atenção à chuva lá fora, num retorno tímido, ou ao casal inquieto, ou se encarava o homem, ser desumanizado, reduzido a pedinte, imagem do fracasso que tomos tememos, a enfrentar a hostilidade muda de homens e mulheres urbanos (“a vida na cidade não é fácil!”) confinados no coletivo lotado, aos solavancos, no retorno do trabalho, exaustos, reféns do salário de fome, mal-humorados, dentro de suas conchas. E o que aparece? Diante deles uma prova tocável (e mal-cheirosa) do tão falado “êxodo rural”, e viravam o rosto, ignoravam.

A garotinha olhando, à espera. O pai, agora calado, nem sabe o que fazer. E se ele começasse a se cortar? E se furasse os próprios olhos? Qual seria a fala adequada? Onde está o roteiro? (Se há, indaga-se, quem ousou escrever um enredo tão grotesco?)

A garotinha continua olhando. HD precisa descobrir rapidamente qual o papel a ele reservado. O de implacável juiz dentro de sua concha? Ou a ignorar, fugir, fechar os olhos? Mas ela não desvia o olhar, espera algo de mim, até uma ofensa se não posso oferecer elogios, mas que não aceita ser ignorada. O que me encara através desses olhos infantis, lavados por lágrimas, sujos de poeira e maculados de medo? O que será deste pequeno ser, se sobreviver? Será a puta de dez reais de amanhã?

Mas tudo se assemelha a um pesadelo, com o agravante de ser real. Cabisbaixos, os vultos figurativos da Miséria, se afastam. Precisam aceitar que não existem. E o coletivo pára, e os vultos se precipitam na noite. Meio ao estremecimento da arrancada, HD ainda vê, lá fora, sob a chuva que aumenta, pai e filha, ambos desalojados, desamparados, a correrem rumo a uma marquise.

E quando se percebe livre de pai e filha (personificações da Miséria) seu olhar gira à procura das belas formas (personificações da Luxúria). É assim que somos: mal nos livramos da Miséria corremos à Luxúria!

No vidro explodem as gotas, a distorcerem e a confundirem faróis e néons dos outdoors. Eis a viagem: um tédio entre a partida e a chegada. Eu sempre ignoro o que se passa entre o ponto do qual vim e o lugar para onde vou, e consciente dessa negação (ainda que insistamos ser precioso cada momento!) onde estou me perdendo a cada instante nesse transportar de A para B, e que já não sei se é a somatória de barriga cheia e sacolejar que me causa essa náusea.

Reclinado, com um tremular na nuca, vai a embaralhar idéias. Sexo. Sexo gerando miséria. Surge a imagem da garotinha e seu olhar que implora. O homem que declara sua honestidade na pobreza, não tem onde reclinar a cabeça, mas com três filhas! Qual o futuro reservado para tais sombras humanas? Servas, escravas, putas! Marginais, presidiárias. Sexo irresponsável, excesso populacional, crime de lesa-pátria?

Não, não, e se o agora pedinte antes fosse um empregado de confiança, ou mesmo um médio produtor, contando com o sucesso de deixando a mulher procriar, e de súbito as três pancadinhas da miséria em sua porta...

É inútil, não há como relaxar. Abre os olhos a tempo de perceber que o casal no cio está descendo meio a cortina de gotas, e que um vendedor de colchas se acomoda no espaço reservado aos deficientes físicos, a desempenar as costas, contorcendo a face num esgar, como a tirar do lombo todo o fardo do mundo.

Mas não pode ficar a contemplar o seu Atlas, pois percebe ali o centro da metrópole, a promessa de outras luxúrias, mescladas a outras misérias.

O coletivo pára. A chuva ainda ameaça lá fora. Abre o guarda-chuva e mergulha na noite alagada.




CDs se sucediam no aparelho. Livros se acumulavam no carpete.

Então, Darío Sabine apareceu e eis o ânimo para cair na noite.

Seguem a ferrovia até o Santa Efigênia, onde adentram um bar na avenida do Contorno. No piso inferior, jovens, de roupas escuras e faces pálidas, jogam sinuca, sem empolgação. Conversam sobre os mortos-vivos.

No ambiente superior, outros casais se beijam ao som de Queen, “Bohemian Rhapsody”, “Is this real life / Is this just fantasy”, onde HD paga uma rodada. E saem com uma garrafa de vinho. “Mama, life had just begun...”

De súbito, se percebem no Edifício Archângelo Maletta. Lá encontram um ator, velha amizade de Darío, de antes da tour pelo Nordeste. O ator a beber sozinho.

O ator convida os amigos, um segundo depois, a compartilharem a bebida e (quem sabe?) a noite. Com certa condescendência, com o ar de “concederei alguma atenção”. Mas logo surgem questões existenciais, e “vou pegar pesado com o cara”, pensa HD, quando comentam o romance “A Hora da Estrela”, de Clarice Lispector, “sim, quem espera sempre alcança. É?”

- Uma moral baseada na esperança?

O ator: - Você é existencialista?

HD revela suas leituras nauseantes. Clarice, Woolf, Joyce, Sartre.

O ator: - “Nascemos entre urina e fezes”. Não lê por afinidade, imagino.

- Leio para criticar.

E saem os três vultos pelas ruas, em diálogos sem nexos, arrotando contra a lua, mijando nas sombras da Avenida Augusto de Lima, no ar úmido da noite.

O ator se afasta na esquina do Mercado Central. Seu vulto se perde além da praça Raul Soares. E os amigos seguem nas entranhas da avenida Paraná. HD ouve um som pesado caindo de uma casa noturna, e pretende entrar. Um som áspero, com melodia ainda. Um estilo grunge, indie rock, quando brilha um reconhecimento nos olhos de Darío. Contudo, Darío chamou HD à razão, pois é óbvio que o show está nos últimos acordes e o vocalista sem voz.

Na parada de ônibus (se houver ônibus!) os amigos esperam, alçando olhares até as janelas iluminadas nos edifícios. Num dos apartamentos, janela aberta no quinto andar, um vulto humano. Um homem debruçado, a observar o sono da metrópole, fumando um cigarro.


Única janela em luz no caule de concreto.


HD esboça um poema, num rabiscar frenético no verso de um folheto.

Um suspiro rasga a noite,
dispersa a fumaça do cigarro,
torna audível o silêncio.

Olhar solto na noite adormecida,
humano – presa fácil do indagar,
“em verdade estamos sós?”




....
...

quarta-feira, 2 de junho de 2010

Capítulo 4 de Náuseas de Estudante


Capítulo 4


Mozart. Sinfonia número quarenta. Primeiro Movimento.

O vizinho até que tem bom gosto. De olhos fechados, a face ocultada na espuma, HD se deixa embalar pela melodia.

De súbito, imagina-se em Paris! Num sobrado parisiense a barbear-se! E a lembrar-se (sussurrando-os para si mesmo!) versos de “Ô Saisons, ô Chateaux”, de Rimbaud, “Que comprendre à ma parole? Il fait qu’elle fuie et vole! ”, assim, “Que esperar desse blá-blá-blá? Que possa por aí voar ! ”, sim, do poeta que foge da província para morar em Paris! Sua caminhada pelos campos,sob as tormentas, rumo ao sonho parisiense, regurgitando desprezo pela estupidez e marasmo da província.

Abre os olhos. A lâmina desliza. Um espectro solar se insinua pela janela, ousa propagar-se pelo quarto, a rastejar pelo chão, a escalar a mesa, a parede, s roupas nos cabides.

Fecha os olhos. Século Quatorze. Manhã fria em London. Na Torre de London. Um nobre é barbeado com água fria. O Lord Mortimer. Mar morto. Onde lera isso? O Lord Mortimer aprisionado pelo rei. Qual?

Mortimer lá no Século Quatorze. O que há? Ainda bem que tenho água quente. Apesar da manhã não ser tão fria. Mas por que pensar num sujeito morto há quase setecentos anos? E por que não penso ali no meu vizinho, ouvindo Mozart e s barbeando? Por que não penso em todos os pais de família que fazem a barba agora sob os telhados deste bairro?

Mas por que, para sentirmos o momento, precisamos relacioná-lo a outros momentos passados, a biografia de ancestrais? Até que pensemos o hoje como pretérito... Ah, aquela manhã quando eu me barbeava a ouvir uns acordes de Mozart que vazam da vizinhança... Ah, o peso do passado! Ora, fico contente ou não, quando descubro que naquela mesa de bar, onde me acomodo, acostumava abrigar, em suas noitadas, o ilustre escritor Fulano? E que vivera três gerações antes! Tiradentes, afinal, barbeava-se na prisão?

A navalha desliza através da espuma. Alguém bate à porta. Darío chegando tão cedo?

- Então esta é a sua contribuição para o grau de desordem do universo!

Darío Sabine adentra e surpreende HD de cuecas. O quarto algo abafado, com apenas uma janela semi-aberta, oculta por pesado cortinado.

- Por que isso? – apontando a penumbra do quarto, com cortinas fechadas.

- É que, às vezes, quero esquecer que a há um mundo além dessa janela.

E volta ao banho.

Enrolado na toalha, diante do amigo, HD esboça sorrisos, meio em rubores. Em ânsias de riso, mas a comentar, sem nexo, o que anda lendo, ao perceber à vista, sobre a cama, um volume aberto de “Antologia Poética” de Carlos Drummond de Andrade.

- Como vê, informação não falta. Estou sepultado nela. Eu jogaria tudo isso fora. Claro, só deixaria ali, no seu cantinho, o livro do Drummond.

Enxuga o cabelo, enquanto Sabine se acomoda na cama, revirando os jornais aos montes ao pé do cabide.

- Se precisar para pesquisa, pode buscar. Estou sufocado.

Sabine agradece. Abre o encarte sobre eventos culturais.

- Olhe, uma pasta de recortes sobre a História do Brasil, todos estes cadernos com poemas franceses. Naquele canto minha coleção do Caderno Mais! Desde o ano passado. Fique à vontade.

HD ocupa-se em escolher as roupas. Calça jeans desbotada, botinas reforçadas, camisa de flanela,óculos escuros. Ajeita o cabelo, enquanto se observa no espelho (ou o que sobrou deste), pensando em sua juventude, de cara lisa e raras espinhas. Ou efeitos da poluição no franzir da testa.

Pensa que o momento que vive agora, naquele quarto que o faz lembrar-se de Raskólnikov, ou Charles Bovary, vestindo-s enquanto Darío folheia as Revistas Cult sobre nova literatura brasileira, esse momento lê lembrará daqui a dez, vinte anos, com tons nostálgicos, “ah, meus vinte anos!”, e o momento será histórico, a virada do milênio, o milenarismo profético! E as próximas gerações, em outras épocas nebulosas tecerão, num mosaico nostálgico, como toda geração idealiza anteriores e projeta posteriores, “ah, se eu tivesse vivido o maio de 68!”, “ah! Se eu vivesse na belle époque!”, ou “Imagine, querida, os bailes da Corte! Dançar sob os olhares do Rei-Sol!

Mas Sabine indaga sobre um certo conto, e HD emerge do túnel do tempo. Em que livro do autor tal conto habitaria? Mário de Andrade publicou, houve quem dissesse. Ou seria Kafka? Em pilhas e pilhas de livros, volumes, encadernados e apostilados, nada encontram que seja uma pista. Mais fácil é acessar Internet. – Isso aqui é, de fato, o Caos Primordial!

Um conto que fala da morte do pai. HD tece comentários sobre Freud, aquele lance de “complexo de Édipo”, onde o filho deseja matar o pai, para possuir a mãe, e Sabine lembra trechos de Sófocles, em “Édipo-Rei”, e de Dostoievski, em “Irmãos Karamázov”, onde Ivan confessa que todo filho deseja matar o pai, e HD relembra que intitula-se justamente “Dostoiévski e o Parricídio”, a referida obra de Freud.

-Sim, a mais risível das comédias!

- Não entendi. Qual? – Sabine, desatento ao argumento.

- O espetáculo encenado pela espécie humana. O mais cômico, por isso tão trágico. Somente fala-nos furar nossos olhos...

E abandonam o útero do quarto.




Parece que as leituras e releituras foram as principais ocupações de HD no início do último ano do milênio.

Na tarde de 23 de fevereiro, HD entrou na Biblioteca Municipal e solicitou, às quinze horas e treze, uma “Antologia do Conto Brasileiro”, com pérolas de Machado de Assis, Lima Barreto, Mário de Andrade, Fernando Sabino, Clarice Lispector, Murilo Rubião, Rubem Braga, Luiz Vilela, entre outros. Antologia que ocupou sua atenção até o fechamento da Biblioteca às dezoito e trinta.

Na manhã de 03 de março, HD está novamente na referida Biblioteca ocupando-se da leitura empolgada de contos de Machado de Assis e crônicas de Affonso Romano de Sant’Anna, segundo consta no índice de consulta empréstimos. Leitura que o hipnotizou até a hora do almoço. Deve ter almoçado por perto, pois há uma nova solicitação às 13 horas e cinqüenta e cinco, de um “Tópicos de Literatura Brasileira”.

Um mês depois, em primeiro de abril, às quinze e vinte, uma solicitação referente a uma coletânea de estudos e ensaios sobre o tema Tolerância, a contar textos de Voltaire, Rousseau, Merleau-Ponty, Sartre, Camus, Simone de Beauvoir, Deleuze, Foucault, Derrida, entre outros.

Em cinco de abril, novamente está ali o leitor fiel. Consultas sobre Literatura Francesa, até quase dezessete horas, hora em que solicitou alguma apostila sobre o Mercosul. Que ligação há entre as duas temáticas, não foi possível restabelecer.

Em vinte e três de abril, HD consultou guias turísticos sobre cidades européias. Principalmente três: Madrid, Lisboa e Paris. Com qual objetivo não se sabe. Levou de empréstimo um romance de José Saramago (“A Jangada de Pedra”) às dezesseis e quarenta e três.

Em dezessete de maio, novamente à tarde, HD regressa à Biblioteca Municipal para consultar “A História da Segunda Guerra Mundial”. Não levou empréstimos.

Um mês depois, quinze de junho, na mesma Biblioteca, HD está dedicado à leitura de “Apocalípticos e Integrados”, de pensador italiano Umberto Eco, além de “Era dos Extremos”, do historiador inglês Eric Hobsbawn, e finalmente levando como empréstimo m título do literato argentino Jorge Luis Borges, “História Universal da Infâmia”.

Aquele pessoal de vestes brancas, junto aos self-services, não havia saído de um hospício ou de um congresso espiritualista. Tão-somente o pessoal da Nutrição, a coletar amostras do cardápio par posterior análise. E o pessoal de calça branca eram os egressos da Veterinária, e discutiam as vacinas a serem aplicadas nos rebanhos na prevenção da febre aftosa.

Ao passar adiante, HD acrescentou a salada e foi acomodar-se nas mesas mais centrais, onde imergia em tudo. Ruídos difusos, estridências de talheres, fragmentos de conversas, ecos de opiniões, risinhos após anedotas pesadas, filtradas meio às deglutições e suspiros.

Vindo da direita, um par de vozes femininas, em tom mais sério:

- ...cada dia melhor.

- Cada dia como se fosse o melhor?

- Algo assim. Dizem que fomos feitos a imagem de Deus. Acho que a gente devia melhorar essa imagem a cada dia. Ser melhor hoje do que fui ontem. – Uma pausa. Um talher desce ao prato. – Uma missão, aqui.

- Missão? Você acha? Não diria tanto...

Um silêncio. Alguém mastiga. Outro alguém corta um bife.

- Ah, Cris, penso assim. É o um jeito. Tem umas coisas ... não se explicam.

- Certas pessoas, logo que conhecemos – são de uma simpatia! Outras, ao primeiro contato, já causam mal-estar! Por que eu gostei logo do Nando, e não suporto o André?

- Não tem explicação? É coisa de Empatia. Ou afinidades.

- Ah, querida. Uma intuições que eu sinto!

Novo silêncio. A outra, num tom cúmplice. – não é só você. Eu já tive sonhos os mais estranhos...

A outra interrompia: - Olha, nem te conto! Eu sonhei com o Nando antes de conhecer! Um homem moreno, alto, e um olhar firme.

- O quê? Acontece que o Nando se encaixou nos seus sonhos, nas imagens idealizadas...

- Quê isso, Cris? Eu senti um troço forte quando vi o Nando. Era ele mesmo! Aquele olhar que...

Ao longo do corredor, dois vultos. Jovens de ares tranqüilos. Acabam de se sentar entre HD e as estudantes.

- É ter confiança. Está na Bíblia. – soa a voz calma e pausada.
- Hoje é fácil. Está na mídia.

- Mas, você se esquece dos tantos que morreram, os mártires. Sangue para diversão nos circos romanos.

- Não nego. Pelo contrário. – O outro flutua, entre um concordar e um convencer – É justamente o que digo: eram fiéis. E até ao sacrifício. Mas hoje qualquer um veste a camisa. Slogans e versículos bíblicos. Como se fosse uma moda.

- Mas a Bíblia diz que “pelos seus frutos os conhecereis”.

HD, enquanto partia o bife, deslizou, discretamente, o olhar para o vizinho e distinguiu em sua camisa branca,o logotipo da Aliança Bíblica. E o jovem, com aquele brilho no olhar, a empunhar o garfo tal uma espada:

- É preciso evangelizar! Pregar até os confins do mundo! Desbravar os rincões da África...

- A medida da geratriz somada a ...

Um casal acaba de atravessar o vão junto a mesa, numa ostentação de camisetas com o logo das Exatas. Numa floreada caligrafia. Matemáticos, mas sorridentes. Aos a observação da jovem, o companheiro sorriu conivente. Certamente também errara a mesma questão na prova.

No agitar de suas lembranças, HD reencontra esta moça da Matemática, com seus longos cabelos negros, nas primeiras semanas, ao vislumbrar o seu vulto nas alamedas, na parada de ônibus ou na arena da praça central. E ele permitia-se imaginar as miríades de equações, cifras e gráficos a voejarem no antro daquela cabeça. E se conversasse com a garota? Sua fala regurgitaria algarismos? Ela iniciaria um elogio ao Pitágoras? Não, ele não saberia.

- A confiança de Marx é a superação da luta de classes com a revolução da classe operária...

Com as camisetas das Ciências Sociais, dois militantes adentram o refeitório, logo abordados por um colega, com longa saia neo-hippie e sandálias, a carregar um fardo de panfletos. Confabulam e entram na fila da carne e das tortas naturebas.

Novas lembranças. Não fora na semana passada que pudera antevê-los diante da TV, na salinha do D. A . das Sociais? E nada dispostos ao diálogo?...

....


LdeM