sábado, 18 de setembro de 2010

PARTE 2 - Insônia das Almas - Cap. 1






Parte 2 de DESENCONTROS GRAFADOS

Insônia das Almas




“As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.”
.
(Carlos Drummond de Andrade, “Os Ombros suportam o mundo”)
.
INSÔNIA DAS ALMAS
Capítulo I
O dia finalmente chega ao fim. O último funeral se arrasta quase ao anoitecer, os últimos familiares deixando o cemitério quando os portões se fecham.

Ajeitando o vestido, amarrotado por tantos abraços, a viúva, sempre amparada pela nora, recebe os derradeiros pêsames murmurados sob os torvelinhos de folhas secas, na brisa de frescor crepuscular.

Ambas de profundo luto, as estrias soturnas a marcarem as faces, a avançarem em passos medidos, cabisbaixas, junto aos túmulos, à sombra de poucas árvores seculares.

O cair da noite estremece os céus. Sônia Regina levanta o olhar das linhas impressas que transmitem impressões de tempos de outrora, rascunhadas por mãos de remoto passado. Um homem a sofrer por ciúmes nos salões parisienses. Seu vulto se esfumaça, quando Sônia levanta o olhar.

O tilintar de chaves destaca a figura do funcionário, e seu olhar de enfado. Altivo e solene, atitude assim respeitosa, as mãos unidas sobre o ventre, as chaves seguras, até indiscretas, deixa o olhar deslizar pelo cortejo, sem fixar ponto algum, flutuando acima dos semblantes desalentados, para ele comuns, vez ou outra a esboçar um movimento leve de cabeça num cumprimento mudo. A viúva, passos lentos, responde com mais silêncio.

Um fulgor de luar irrompe distante. O desenho, que marca a página lida, estremece. À bico de pena, reproduz “Dois homens contemplando a lua”, de C.D. Friedrich, onde vultos de homens, sob um grotesco salgueiro, acima de presenças abruptas de rochas, meio a névoa e os galhos secos de uma árvore a muito tempo morta, observam um distante pálido luar.

O cair da noite agora incomodado pelo motor rude da camioneta, a surgir no fim da alameda, a conduzir os coveiros e suas ferramentas. Alguns do cortejo se voltam. Sônia Regina observa quando o veículo suspira junto a escadaria da Administração. Os coveiros descem e seguem por um calçamento, e logo desaparecem, eclipsados pelo prédio.

Almas inquietas clamam sob tormentos. Tantas lágrimas em vão. “O infindo gotejar das lágrimas humanas.” Sob o “Eine kleine Nachtmusik” de Mozart, que muito agrada a Sônia Regina. Além de Beethoven e, claro, Johann Sebastian Bach. Mas ela sente a presença das melodias consigo, sem ouvi-las realmente. Nem um walkman ao seu lado. Não costuma carregar a civilização no bolso, além de roupas, identidade e um livro. Manter longe os urbanóides. O cemitério é o único lugar calmo na cidade.

O único lugar onde pode encontrar-se consigo mesma. A paz entre os mortos. “Dos Mortais para os Mortos”. MORITVRI MORTVIS. “Os mortos oprimem as mentes dos vivos”. Em forma de monumentos, nomes gravados no mármore, pedras com inscrições, com a ostentação dos túmulos. Opulento mausoléum se ergue.

Toda vez que vem ao cemitério, Sônia Regina se percebe a pensar em certa Sabina, de um romance tcheco, que procura um pouco de paz, andando em cemitérios, os de Praha, ou de Paris, como o de Montparnasse, “tentou acalmar-se indo a cemitério”, quando tornava-se insustentável a leveza de seu ser. E cada túmulo, por modeso que seja, atrai sua sensibilidade, tal a do senhor Lockwood no pequeno cemitério da tragédia naquele morro dos ventos uivantes.

O sonido das chaves de outro funcionário, lembra a Sônia Regina que é hora de se fecharem os portais do cemitério. Voltando a atenção ao livro aberto em seu colo, à imagem que ela mesma reproduziu, um arrepio de fim de tarde insinua-se sob o seu casaco escuro a erguer-se até a nuca, à base de seus cabelos curtos. Lembra que precisa voltar para casa, mas antes devolver o livro na Biblioteca. Fechando-o, seus dedos alisam a capa, “Marcel Proust – Em Busca do Tempo Perdido – No Caminho de Swann – Tradução Mário Quintana – 18 ª edição”, ali encostada à capela, cercada por túmulos, com suas cruzes e anjos. O livro repousa, a sua cabeça se inclina, vê a si mesma. Mocinha em vestes de luto sentada à porta da capela, tendo diante de si a paisagem de criptas, na inútil ostentação de mármore e imagens. Símbolos da dor inútil na inutilidade de todas as coisas.

Um gradil de ferro, uma árvore secular, inscrições que tornam-se ilegíveis. Ali repousa, quiçá eternamente, uma donzela de ascendência belga, a primeira a ser sepultada em tal campo santo. Quem terá sido essa senhorita Berta, saída da Europa e que, cruzando o vasto oceano, veio morrer nas montanhas da rústica América. “Sepulturas cheias de sonhos abortados.” E povoam lembranças de um sombrio TH, a deslizar em penumbras, que julgava os cemitérios “labirintos infectos”, incapaz de sentir sua paz de espírito, naquele soneto que ele, TH, dedicara à memória de Augusto dos Anjos, e começa assim, “Atento às cinzas sobre os túmulos Sentindo o odor da Fatalidade...”

Uma capa esvoaçante, sombria. Cartola negra. Face pálida sob a farta barba. Um medalhão dourado devolve a luz da lua lúgubre. Uma voz rouca e profunda ressoa. Cavernosa. “Mortos! Saíam de seus túmulos! Venham a mim! Pois eu, eu não creio em nada!” Não crê, porque não crê. Um cruzar de relâmpagos, um redemoinho de vento. Ei-lo derrubado ao chão de folhas secas. E continua não crendo em qualquer juízo ou punição, “aquela voz era sombria como a do vento à noite nos cemitérios, cantando a nênia das flores murchas da morte”, não é mais Coffin Joe, mas Álvares de Azevedo.

Naquela soturna e surreal “Noite na Taberna”, a indagar “O que é o homem? É a escuma que ferve hoje a torrente e amanhã desmaia, alguma coisa de louco e movediço como a vaga, de fatal como o sepulcro!” O que sou eu, EU, que dá valor a um Ouro para assim afirmar o Eu? “Jesus te ama” só me emocionaria se Jesus significasse algo para mim. O Eu está tão afetivamente carente que qualquer um que o ame é sinal de esperança. Considerando ainda que Jesus seja sublime e divino então é uma honra, um privilégio, que o Eu seja amado por semelhante Ser! Mas e se falarem “Elvis Presley te ama?” Elvis Presley para o Eu tanto fez, tanto faz, que honra traz está condição, a de Elvis Presley amar o Eu? Antes fosse o Thom Yorke! Ah, meus botões, meus entediados botões, quando se está apaixonado, é o Eu que elege o Outro e valoriza, e em seguida espera o mesmo sentimento! Ora, é nada mais do que o Eu amando a si-mesmo através do Outro!

Passos no pavimento. Asfalto até na morada dos mortos. Afinal, os vivos precisam de trabalho eficiente. Mas por que semelhante lugar de desespero? Nada mais que um museu ao ar livre, com tantas esculturas que são verdadeiras obras de arte! Mas é um monumento à finitude. Os anjos de mármore. Não há esperanças? Os judeus é que são apegados à cemitérios, com inscrições e adornos, um culto à memória, pois ali descansam os mortos até o glorioso dia da Ressurreição. Há esperança! O cemitério é um símbolo da esperança! Os mortos não viram cinzas nos ares, mas aguardam a trombeta da renovação! Oh, nada mais doloroso que perder a fé!

Mas, meus sofridos botões, o assunto 'morte' é um tabu no baile de máscaras da vida social! Um jovem, sarcástico, mostra algo a outro. Jovens que não chegaram a duas décadas, não têm qualquer concepção de finitude. Mostra algo entre os dedos e diz, num sorriso, “Veja com os seus próprios olhos que a terra há de comer!” E um senhor, ali ao lado, esboça sua desaprovação, com o profundo mau-gosto do jovem. Não é delicado lembrar que morreremos. Memento Mori.

Preciso voltar para casa, fado meu! Um casarão, flores na varanda, uma margarida artificial para atrair os colibris, um sotão com restos de uma velha cômoda, farta de cadernos de séries anteriores, e a primeira bicicleta da irmã, com os pneus furados e pintura sumindo na ferrugem. O tempo vai passando e nada permanece. Nenhuma calma sob os céus. É estranho não podermos dizer simplesmente “Adeus” às coisas e aos seres! Carregamos trastes de velhos tempos, lembranças de amores passados, memória dos mortos sepultos.

Um casal passa junto a estátua do Cristo, em semblante de dor e penitência, Olha para nós, do alto de tua Piedade. Um casal. Jovens? Não, talvez trinta anos. Filhos de algum falecido? Talvez daquele Sr. Faria, ali sob a sombra de quase noite. Ou daquela Sra. Fátima, onde um jarro de cerâmica exibe pétalas que murcham.

Lembranças de amores passados. Um certo beijo com gosto de chocolate. Não fôra o primeiro, mas o mais emocionante. Ela completaria quinze anos, com promessas de festa e baile, e dona Clara Selma não disfarçava sua hostilidade para com o jovem, com aquele ar de superaplicado nos estudos, mas incapaz de um “bom dia” que soasse sincero.

Tantos encontros às escondidas, ou quando terminava a missa e ela ficava na praça. Hector, o nome dele, e pouco mais de dezoito, todo orgulhoso. Mas todo imprudente, ah esses meninos!, em aparecer no salão do baile, na manhã da festa. Claro que aproveitou-se da ausência de mamãe ou do Sr. César, nem a irmã por perto, e dizendo-se curioso quanto à preparação do baile, quem seriam os pares, alguém que eu conheça?

Aí ele se aproximou, queria alegrar a querida. Ela ajudando na decoração do salão, com muita seda colorida, balões nas cores do arco-íris, fitas a descerem de vigas de madeira, também nas cores mais exóticas, e ele se aproximava, sem hesitação. Ela comendo uma barra de chocolate. Ele a surpreende. Ela está contente por ele estar ali, e oferece o chocolate. Ele aceita. Ela exibe a barra entre os lábios, e diz “Vem pegar”. O beijo. Gosto de chocolate.

A festa, a prometida festa. Acham que assim acertam tudo! Quando a menina pede um vestido é prontamente atendida, isso não é coisa que se negue. Quando a mesma menina mostra o desenho que terminou de colorir naquela tarde, trancada em seu quarto penumbroso, é sutilmente afastada, não há tempo, há um relatório, há uma planilha de cálculo, há uma pilha de serviço, depois veremos isso. Não, ela não pode reclamar. Tem boneca que fala, tem dez vestidos novos para a tal boneca que fala, tem uma casa de bonecas, tem estojo de maquilagem, tem a bolsa que papai mandou. Quando vou ver papai? Vou visitar papai? Mas papai mora longe? Não deve fazer perguntas assim ansiosa diante do bondoso Sr. César Souza, que agora merece todo o nosso respeito e afeição! Ms ele é o pai da Roberta, não o meu!

Sem dúvida que ela ganhou uma bela festa, todo mundo comentou.; as primas então! Até a Cíntia que ficava piscando para o Hector, mas deu o maior apoio à loucura deles. Ela tentava se animar para a mascarada, mas nem as anedotas da prima conseguiram ressuscitar um sorriso. Ela, a pobre debutante Sônia Regina Dalmas, sabendo que será difícil que o seu Romeu consiga entrar no baile dos Capuletos, que já avisaram os seguranças da portaria.

Sônia dança com o primo, aquele sacana do Régis, que fica de olho no decote e só gosta de filme censurado. Outros quatorze pares ocupam a pista. Alguém deita um sussurro em seu ouvido, “Você está linda”. É ele, o audacioso, é assim que se diz?, Hector Dias, nos volteios da dança, à rigor, irreconhecível! Claro que um pouco deslocado, mas é inegável que ele é um bom ator. Não atrai atenções.

Na hora das palmas é que ele abusou. Happy Bithday for You e ele todo exaltado. É quando as tias reparam, as corujas Capuleto, sempre à espreita, mas elas entendem, sabem de quem se trata, “Ele não perde a oportunidade”. E ela, a debutante, a linda, a invejada, esquarteja, ai que termo forte!, o bolo, distribui glacê e recheio de abacaxi aos familiares, a mamãe Clara Selma, ao novo pai César Souza, a irmã, por parte de mãe, Roberta, ao irmão, por parte de mãe, Carlos, ao tio Anselmo, à tia Carla, à prima Cíntia, à tia Carmen, ao vizinho Olinto, ao vizinho Nilo, a vizinha Vicentina, ah tanta gente!, e depois recolhe um pedaço, recobre, e vai procurar o seu Montecchio, o seu Romeo. Ele é quem a encontra, a ela que atravessa sem hesitação o amplo salão. Ele a sentir-se ali o único digno de sair com a dona da festa, em abraços, “Agora você vai me dar atenção”. Ela oferece o bolo, ela sabe que ele gosta de recheio de abacaxi, ele degusta satisfeito, “Vim levar você daqui!”

No fundo do salão, ele sabia bem, estendia-se ampla varanda, e ele todo disposto a amarrotar aquele vestido, mas ela encostou-se a pilastra, no resto de luz e ouvia sua voz e o hálito de abacaxi, mas logo notariam sua falta na festa, ora, ela é a rainha! E ele não entendia, jamais poderia. Dedos que raspam seus lábios úmidos e ansiosos. Ele jamais aceitaria, mas ela se afastou.

E uma sirene ecoou. Surpreendidos? Não no passado. É que em breve o cemitério havia de fechar seus portais. Uma porta se fecha e fica tudo escuro, o mundo inteiro. Mas é que a festa exige, não pode existir sem a sua presença. É ele, o abandonado, quem fica desnorteado nas trevas. Voltará depois para raptá-la.

Com o caderno de desenhos junto ao peito, além do romance francês, Sônia Regina arrepia-se a cada passo como se mãos brutais ousassem carícias em seus seios, como se lábios com gosto de abacaxi massageassem os seus e um corpo morno pesasse sobre o seu, e não pode deixar de considerar estranho aquela ameaça sensual num campo de morte. Não sabe diferenciar os arrepios de terror ou distingui-los dos de desejo. Mas a porta fechada, as trevas caídas sobre a varanda foi a ofensa que ele nunca perdoou.

Certa tarde, seu querido vai saindo de casa, sob uma chuva fina, e alguém grita da calçada defronte, com uma sombrinha, mas ele não ouve. É ela, claro. E desiste de seguir seus passos. Aí, na tarde seguinte, ela é encarregada de devolver o vestido. Missão que ela cumpre ligeira, pois vai visitar seu querido! E ele chega e não acredita, “Até que eu não estou tão sem sorte hoje.”, ele que estava às voltas com o alistamento militar, ele que tem horror a isso de guerra, é um a dizer-se pacifista. E ele quer ser amável, bom anfitrião, com suas anedotas sem a menor graça, seus gracejos sem qualquer originalidade, a ler seus escritos, um projeto de romance de ficção científica, uma viagem á lua, sei lá, acho que ele andou lendo muito Júlio Verne, apesar que eu gosto muito de Júlio Verne, aquele no fundo do mar, no submarino, o Capitão Nemo, uma figura, pode crer!, mas o romance dele, do Hector, era um tédio só e ele ainda autocensura a cena de amor do mocinho e da mocinha, e fica lendo piadas prontas, de quem?, do Millôr Fernandes, ou do Jô Soares, sem nem ousar ser original, e piadas que estão longe de me agradar, mas vou sorrir para ele não ficar magoado.

Vou dizer que quando faço algo que vão reprovar, e sempre acontece, ou chego tarde em casa, com daquela vez, junto com a Cíntia, ela a bondosa dona Clara, mamãe toda generosa, Deus abençõe, grita, com ares de traída, “É assim que você me paga aquela festança toda!” vou matar o ridículo bom humor dele com os meus problemas? Melhor elogiar esse enredo sem-pé-nem-cabeça que alega ser o original dos originais, como é isso?, brasileiros disputando com franceses e chineses para construir uma nave para o transporte de exploradores de minério até a lua? Ele nunca leu romantismo não? Acha que vou engolir essa de que a lua não passa de uma cinzenta rocha suspensa nos céus?

Tá bom, ele não quer servir ao Exército, e eu não quero voltar pra casa. Pra quê? Pra varrer os cacos do meu vinil que mamãe quebrou? Agradeço o seu interesse, querido, mas não tenho que ir essa tarde, essa noite, então é a sua oportunidade de enfim raptar sua Julieta, vá em frente, faça logo. Pois o digníssimo Sr. César sempre encheu Sônia Regina de mimos e brinquedos, bonecas caras, mas nada de atenção, jamais preparou Sônia para o “mundo-cão”, e seu pobre papai, nauseado, o Sr. Marco Dalmas, foi para beira-mar, onde se limita a ensaios fotográficos e ler Pablo Neurda. Então que culpa eu tenho de ser é uma filha toda à marge, assim entediada, ou querendo chamar a atenção? Vou ler ali no livro sobre Pais e Filhos, “Educar não é impor, é compartilhar sentimentos e conhecimentos, preparar o(a) filho(a) para a vida”, faltou acrescentar “para a vida num mundo cruel”.

Sônia Regina aceitou o chá com bolinhos de fubá e agradeceu a dedicada dona Hilda, que conhece de cozinha, enquanto ela, Sônia, sofre até para fritar um ovo, não exagere, minha querida, que eu já assei bolo de cenoura e fiz a cobertura de chocolate, e o querido também elogia a mãe, mas ela, Sônia, quer sair com ele, andar ao crepúsculo, você sabe o que é romantismo, querido? Aprenda na poesia do poente. Ele se despede da mãe e diz que volta em breve. Pobre dele, não pode prever as sombras que a noite reserva.

A noite cai, os edifícios adquirem esta dor dourada fulgente, e brilhos passeiam nas vidraças, e os perfis de árvores e telhados se confundem. Assim também naquela época, mas era verão. As noites chegavam com uma lentidão, mornas e lânguidas. E podia-se ficar nas varandas, ou nas esquinas, em conversas intermináveis sobre lendas medievais ou contos de terror. E foi numa noite daquelas que, após aceitar bolinhos de fubá e chá, ela foi acompanhada, em sua pretensa volta para casa, pela presença e humor do seu Romeu.

Ela também se imaginava retornando, mas lembrava da angústia de um “é assim que você me paga aquela festança toda!” e seus passos se tornavam lentos, com um peso acrescido de discussões de outrora, de sonoras ofensas de outrora. Mais em silêncio do que entregues ao humor, seguem ambos, que muitos observam juntos, mas com pesarosas distâncias sem compreensão. Ela pode até se inclinar para desapertar a sandália, e ele pode até ajudá-la, mas além desse contato são duas solidões que se protegem, que se sufocam.

E se Milene estiver em casa?”, ela diz. E ele reconhece, Milene é uma amiga em comum, sabe dos desconfortos que sofrem, muito devem a sua amizade, que, em tempos passados, pode-se dizer que ela unira o casal, antes de Sônia Regina visitar o pai em Niterói, onde ficou mais de um ano, pois antes foi Milene quem conheceu Sônia na classe do catecismo e, na época, Sônia cantava bem, sabia todos os hinos e a liturgia, não se sabe hoje em dia, mas deve-se a Milene todo o carinho, ela que adaptara aquela versão para o Filho Pródigo, onde Hector era o tal filho que sai de casa, esbanja toda a herança e volta miserável, e Sônia fazia o papel da irmã que recebi o irmão, jogando-se os seus pés, pois o irmão mais velho, o que ficou ao lado da família, não aceitava a volta deste irmão irresponsável, “Imagina só, gasta a grana e volta com essa cara de remorso, e todos acreditam”, não, o irmão não aceitava o banquete para o irmão que perdeu e agora volta, e Sônia, a irmã, se jogou aos pés de Hector, o irmão, e quase beijava mesmo aqueles pés desnudos do irmão ferido em andanças, ela toda humilhada diante da perdição dele e da aceitação do retorno dele e da compreensão do remorso dele, e Sônia, não mais irmã, a pensar no gesto, durante aqueles dezenove meses á beira-mar, saindo nas pracinhas e beijando garotos bronzeados, mas sem uma mancha daquela perdição, e não que Hector fosse bom ator, longe disso, mas ela sabia ser uma boa atriz.

Chegam à casa de Milene, casada, mãe de um menino, Cássio, todo engenhoso, que devia dar muito trabalho, a ela, nova ainda, longe dos trinta, uma professora a deixar-se até de madrugada a inventar exercícios e a corrigir avaliações. E Milene não estava, mas o portão todo aberto, ela era mesmo muito distraída, coitada, achava que Deus protegia mesmo, que malandragem não tem vez, veja aí a proteção divina que nos ampara, e deixa assim o portão aberto, para qualquer um, mas somente eu e meu querido vamos entrar.

Hector, com uma voz até comovida, lá de cima de onde avistavam o bairro novo, lá da varanda nos fundos, com sua voz até apertada, comenta um filme sobre guerras, ele todo apavorado com Exército, onde numa estação de trens os soldados em despedidas, abraçam as amadas, ou acenam debruçados das janelas, e elas agitam os lenços, em choro discreto ou convulsivo, quantos voltarão para casa?, quantos ficarão caídos nos campos de batalha?, quantos morrerão abraçados às fotos de suas queridas distantes e desamparadas?, e ele tem a voz apertada, quase sussurro, e ela toda sensível, numa ânsia de choro, “Me beija”, e ele desfez aquele choro iminente com seus lábios não menos ansiosos.

E ela se lembrou de sua família? Lembra agora, enquanto caminha entre as lápides, enquanto os portões se fecham? O que Sônia Regina pode dizer para se desculpar? Quem dissera que ela era uma boa filha? Quando elogiada, e sinceramente? Mas ela se esforçou mesmo? Como poderia agradar? Vive se culpando, mas terá culpa? Quem tem culpa? Deus é o único culpado? Os homens querem fechar o lugar, mas ela vem devagar, a culpa pesa um tanto, os passos de uma mente pesada. Mas ela aceitou sepultar o choro naqueles lábios!

E ela aceitou que ele saciasse o desejo em seus seios, que aqueles lábios lambessem ávidos, e que aquela língua quente e atrevida lhe adentrasse o umbigo! Ela não só aceitou, ela desejou, ela exigiu! Não serei a condenada, serei a cúmplice! Sugue em meus peitos todo o prazer que você desejou, menino, e pelo qual esperou tanto tempo! Sugue tudo até meus biquinhos começarem a latejar, e doer e golpear com arrepios! Amasse estes peitos com força mas com perícia, com agressão mas com carinho! Ou rasgue meus lábios com os teus dentes e tire sangue de minha língua, para que ela silencie os gritos e no silencio eu possa ouvir os teus gemidos! Assim, queira mordiscar a borda rendada de minha calcinha roxa e invadir com o teu nariz o segredo de meus íntimos aromas! Não tenha pressa, mas seja menos tímido! Teus dedos aprisionam a fortaleza de minhas nádegas e preparam a invasão aos meus pontos frágeis! Deixarei que adentre o castelo julgando-o invadido, deixarei que duvide de tão pronta rendição. Tua língua já passeia em lábios outros, degusta meu íntimo prazer líquido, doando meia arrepios e uma vontade tão louca de deixar entrar a cavalaria!

Não pensava em mamãe, pobre Clara Selma, toda ressentimentos, agasalhados e acariciados, nem em respeito ao Sr. César, nem aos seus filhos e também de mamãe, nem em ninguém, nem em si mesma, mas no estar-com-ele, sentindo o corpo dele, com todo o desafio que o gesto representa. E ela o afastou quando ele gemia, no final ele devia estar fora, no último momento, o supremo, já estar distante! Em plena união prever a separação.

Ah! A tristeza depois do amor! Depois, ele quis ser companhia até a sua casa, afinal já devia ser meia-noite e Milene devia estar na casa da mãe, sei lá, não apareceu a nossa amiga, e deitando o braço juvenil às suas costas, a aproximar-se mais, e ela toda abalada, tremia até, recusava aquele braço como se fosse confirmação de posse, Não se aproximem! que esta já é minha!, mas que desconfiança boba, as ruas estavam vazias, é muito mais de meia-noite. Então ela se sentou sob uma marquise, ali onde funcionava a padaria até às vinte e uma horas, dia de semana, e até vinte horas, sábado e domingo, e o choro voltava, e não sabia se choraria pelas donzelas ou pelos soldados, se choraria por si mesmo ou para o sorriso sacana do seu querido, Por que eles sempre fazem essa cara de satisfeitos?

Ele, todo envolvente, sentou-se ao seu lado e novamente tentou um abraço, e ela o afastou, ele a ousar convencer a moça a voltar para o abrigo do lar, e ela o silenciou, então ele declarou ter uma idéia, um plano B, assim todo estrategista, ele devia ver muito filme de guerra, e mencionou o amigo, Amigão mesmo, o Heleno. E subiram no primeiro ônibus que passou, que devia ser o último, e voltaram à parte alta do bairro, além da garagem dos ônibus, e a praça.

O casarão todo às escuras, e Hector a contornar a cerca até o quintal, pensando em pular, e sorte sua não ter uma cerca de alta-tensão ou algum cão bravo, mas cão bravo havia e daqui a pouco aparecia!, mas ele se julgava muito esperto, chegaria a janela do quarto de Heleno, lá nos fundos e estaria a salvo, pois o cão bravo não trepa em muro, ela toda assustada, Vai que passa a polícia e a gente é presa?, mas ele tem um quê de autoconfiança que é de tirar o fôlego e arrasta a gente, e Então vai lá, mas vai rápido!

Não, Heleno, você não está sonhando! Sou eu mesmo! Preciso é que você abra o portão pra mim. Estou em apuros!” E o Heleno, num torpor, talvez a sonhar com suas loiras peitudas, acionou o portão eletrônico e segurou o cão bravo, o nome dele é Sadam, imagine!, enquanto entravam pela cozinha, Graças a Deus estamos sob um teto. E no maior dos silêncios possíveis, Sorte ninguém ter acordado, e foram para o quarto do Heleno, onde ele deixou a cama dos hóspedes para a moça tímida, e apontou o sofá para o audacioso mocinho, que não sabia como agradecer, Heleno, você é um irmão pra mim!, Quem isso, cara, você é que é muito louco!

E conseguiram dormir, e ela acordou cedo, a tempo de ver como ele dormia, parecia um bebê, mas bem poderia ser um bêbado, desses que a gente encontra caído nas ruas, agasalhados com roupas em trapos ou jornais velhos. Estaria ele tão desvalido quanto um mendigo? O que fazer afinal? O que ele poderia oferecer? Rapaz a alistar-se, ou a evitar o alistar-se, com projetos de vestibular e faculdade, sem qualquer renda exceto a do papai, então o que poderia fazer? E ela, que nem terminou o mínimo de sua formação? Poderiam ficar juntos? Poderiam fugir?

Não fugiram. Não foram capazes. Deixaram-se ficar mergulhados nos olhares um do outro, estupefactos com a ousadia da ação, agravada a todo momento em que ecoava a voz de Clara Selma, “é assim que você me paga aquela festança?”, uma eterna cobrança a pesar sobre os ombros da filha, refém de tamanha generosidade! Suspensos nos olhares e nas redes da varanda, até que a dona Joana, mãe de Heleno, acordasse e soubesse do feito do casal, “Mas vocês saíram de qual romance?” e Heleno já prepara um lanche com bolachas e geléia, e chocolate quente. Enquanto Joana conhecia Sônia Regina, Hector chamou o Heleno à parte, e logo explicou que passaria em casa para “levantar uma grana”. O que ele nunca deveria ter feito, pois certamente foi seguido.

Mas foi em casa, disse uma mentira qualquer, não deve ter percebido o vulto do padrasto dela, e voltou logo, quando ela, na sala, escolhia CDs junto ao aparelho de som e queria dançar. Dançar junto dele, entenda-se, ele todo tímido, nada entendia de passos e giros e ficou estático, enquanto ela rodopiava e flutuava ao som de certo sucesso pop dos dançantes anos 80, com letras românticas e sonoridades de transe eletrônico, “Essa não é a primeira vez que você tenta ir embora”, diz a canção, e ele segurava firme pela cintura, e ela o arrastava com gestos e sorrisos, os cabelos ocultando o brilho no olhar, “Vá – Não vá! Não poderia ficar comigo mais um dia? Se nós aguentarmos mais uma noite...”, diz a canção, num refrão que não era euforia, mas desabafo.

Sônia Regina saiu do cemitério, junto com o casal, e percebeu que a moça não ocultava os olhos vermelhos, enquanto o rapaz era todo silêncio. Junto ao carro, sob a tília em flor, ela se encolheu e ele a abraçou. Depois, entraram. Em manobras curtas, semicirculares, o veículo deixou o estacionamento e desceu rumo a Avenida Pedro II, até deixar um apagado brilho de farol.

O farol então sumiu e Sônia Regina notou finalmente o escuro da noite. Fez às pazes com a penumbra da rua a surgir à frente, onde seguiria meia centena de metros até a próxima parada de ônibus. Aconchegou o caderno e o livro ao peito e contava os passos, assim fizera naquela distante manhã, dançante, dançando com ele numa brisa a tornar-se tempestade, aquela tempestade de um dia, um dia apenas em que viveram tudo de uma vez!

Ela, cansada de dançar, deixara-se cair na poltrona, e ele foi cair sobre ela, a apertar seu corpo e sugar seus lábios, numa ansiedade imensa que toda uma espera legitima, “Isso tudo parece um sonho, Sônia!”, ele dizia, menos sorrisos, algo solene, com temores de que pudesse enfim acordar. Não se preocupe, querido, logo vai tornar-se um pesadelo. E ele trocou a trilha sonora e o arrastou para a placidez da varanda, sob as samambaias e os crisântemos, e o abrigou em seus braços, como o reconhecimento da longa espera dele, e o ocultou em seus seios, que palpitavam com toda a brevidade do prazer,

Quem um dia irá dizer que existe razão
Nas coisas feitas pelo coração? E quem irá dizer
Que não existe razão?”

Então, você gosta de Legião Urbana?”, ela queria agradar e assim esperava que a música agradasse. O olhar dele confirmou e ouviram, abraçados, sabedores das tantas diferenças, não tanto quanto os protagonistas da canção, que se amavam em mútuo completar, sim, a menina mística, o menino moderninho, a menina avançada, o menino aprendendo.

E sob a morte-vida da canção, enquanto talvez previssem a brevidade daquele romance, na loucura de um gesto de evasão, perdidos na noite, embalados na canção, abrigados sob o teto de um amigo, um atento ao mistério do outro, aqueles olhares e aqueles cheiros, aquelas descobertas de prazeres, aqueles dedos em carícias e aqueles lábios nos mamilos, aquele volume de que ele se orgulhava e aquela procura de nunca acabar. E nem ousariam juras eternas, pois sabiam que o dia seria único e breve, e almoçaram diante do Heleno, e sua mãe, Joana, mas como se estivessem sozinhos, mais nutridos pelos olhares cúmplices do que pela salada e os espaguete. “Hector, eu sempre considerei você um rapazinho ajuizado, e agora você me apronta essa!”, reprovava a dona Joana, ainda que com olhares de simpatia, e Sônia já estimava aquele apoio velado, toda uma atenção que desconhecia, vivendo entre os “fascistas”, como dizia o Hector, vivendo com uma mãe “irmã do Mussolini”, como dizia, ainda, o Hector, e achando que diálogo fosse uma espécie de benção só destinada aos Eleitos, aos Iluminados, mas ali o Heleno e sua mãe, Joana, descontraídos, recebiam o telefonema da irmã do Heleno, a Helena, não a de Tróia, Helena que é noiva e vai chegar daqui a pouco, e todos aproveitam a sobremesa com chocolate e licor.

Sônia Regina lembra, enquanto espera o ônibus, sob a sombra do muro do cemitério, que ainda ousara uma visita à dona Joana, duas semanas depois, com a mudança marcada, pois seus pais não mais hesitam em afastar a filha de certo ambiente e certo rapaz inconsequente, coitados!, e a muto simpática dona Joana, ainda tão jovem, em conversa jovial num frescor de tarde e comeram pudim e beberam chá de camomila. Não ousaram abafar as lembranças daquele dia e mencionam o Hector, que a terra engolira, o moço morrendo de vergonha, ele obrigado a se afastar, sem rumo no jogo das famílias, que trocavam ofensas patéticas, onde ela, Sônia, era “dessas garotas fáceis”, e ele, Hector, era “um sedutor descarado” ou “um raptor de garotas ingênuas” e, não demorou nada!, ele e ela dedicaram-se a uma troca de ressentimentos. Sônia ainda o encontraria uma última vez, sem sentir qualquer resto de afeto, mas a dona Joana nada saberia.

Foi no fim da tarde que mamãe e o Sr. César finalmente surgiram nas escadarias, acompanhados pelo Sr. Ramiro, o pai do Hector, mas antes Helena deu-se a conhecer depois do almoço, a sensacional Helena!, já apaixonada pela Sônia, e a revelar que Hector não escondera uma paixão por ela, a Helena, mas toda sorrisos, coisa do passado, ela ainda debutante, quando Hector passou a frequentar a casa, o amigo do Heleno, em estudos juntos, unha-e-carne, as lições de matemática ou montando aquelas experiências dos livros de Ciências, dissecando rãs ou fabricando sabão com sebo ou abacate!, sem poupar críticas às bandas pop que Helena ainda ouvia, e aquele vinil do Oingo Boingo não seria dela?, ah, o Hector!, amigo do irmão, mas de olhos grudados nas pernas dela, quando ela andava pela sala, mas o Hector é gente boa!

E as duas ousaram um banho juntas, para desespero do Hector, disposto a dar a vida para contemplar, por apenas um segundo, aquelas duas musas nuas, as duas belezas desejadas, e ele em rodeios diante da porta do banheiro, ouvindo os risinhos delas, claro!, até surpreendê-las de toalhas, elas correndo, mais risinhos, protegendo os peitos, com os cabelos molhados, gotejando ao longo do corredor até baterem com estrondo a porta do quarto de Helena, e quando é ele ao banho, elas é que se apoiaram à porta, ouvindo os barulhos que ele fazia, se gemendo ou não, pois Helena, maliciosa, apostava que ele se punhetava todo, todo tesão, não é, menina?, pois não somos pouca coisa não, que somos duas 'miss', não é?, e ele tem mesmo é que ficar com água na boca, e ele demorava-se, mas saiu todo cheiroso, descalço, aqueles pés brancos marcando o corredor até o quarto de Heleno, a exibir o peito nu, a cobrir-se lentamente de pêlos, e um volume sob a toalha enrolada na cintura, e ria-se aos risinhos delas, e fazia gestos na intenção de deixar cair a toalha, mas era só brincadeira, hóspedes eram em casa de amigos, não vamos abusar!

E mamãe e o Sr. César chegaram e acabaram com a festa, e a dona Joana conversava com mamãe e o Sr. César e o Sr. Ramiro marretavam o pobre Hector, que agora se encolhia, e se humilhava aos olhos dela, que queria, ainda aquela manhã!, fugir com aquele herói, que herói que nada! Nada mais que um moço a gaguejar diante do pai, o sério Sr. Ramiro, e diante de César, o padrasto, que por pouco não o esmurrou ali mesmo, mas trata-se de residência alheia e não podemos abusar. “É assim, minha filha, que você paga todos os nossos esforços?”, gritava mamãe, aquela Clara Selma, toda possessa, “Mas ela não é grata, essa sua filha!”, bradava César Souza, este senhor grisalho entre nós, ecos do que depois descobri em “Romeu e Julieta”, quando desembestei a ler Shakespeare e outros lunáticos, no bom sentido da palavra, e mamãe a arrastar-me sem preocupar-se com os olhares nada aprovadores de dona Joana, que sabia tratar seus filhos, que sabia olhar nos olhos e simplesmente conversar, e ali mesmo mamãe começou a falr em mudança, e que eu seria levada para longe de certo “mau elemento” e nem ousava olhar para o Hector, e quando finalmente olhou, já indo embora, disse “Eu esperava mais de você, rapaz”, e não sei quem entendeu isso, e ele ficou a olhar pra mim, quando me arrastaram, ele ao lado do pai Ramiro, agora silencioso, longe de estar orgulhoso do filho, pois o Sr. Ramiro é “homem honrado e cumpridor de seus deveres”, assim o Hector dizia também, e o Hector ficou todo olhares, e eu aceitei ser levada embora e jogava olhares para trás, não, apenas uma vez, e ele ainda estava lá.

O vulto de um homem descia a rua e o ônibus não surgia. Não que sentisse brotar o medo, mas Sônia Regina sentia um novelo de emoções pesarem sobre o estômago. Ela, que nada comera desde o almoço, sentia um golpear confuso de congestão e fome, de algo que se acumulava e não saía, até que forçasse um vômito, ou gritasse para a altivez dos muros, ou ofendesse com injúrias o senhor que se aproximava, e que até parecia um pouco com o pai do Stevam, outra figura, o Sr. Olavo Lucena, mas era tudo uma anacronismo só, pois quando vislumbrava o Hector ao lado do Sr. Ramiro, nunca poderia imaginar que no mundo haveria um Sr. Olavo, pai de outro estranho rapaz, o Stevam, que só agora, coisa de menos de um ano, ela conhecera. E aquele senhor também estava à espera do ônibus, e à espera de um acontecimento, ou indo para casa ou seguindo para a noitada. Outro vulto nas sombras.

Noite que prometia e noite em que Sônia Regina queria encontrar abrigo. Abrigo não encontrado nos braços de Hector, filho daquele Sr. Ramiro, “homem honrado e cumpridor de seus deveres”, que voltava com o pai para casa, a ser reprovado aquela noite e para toda a vida, pois Sônia nada saberia, nada sabia agora, “Onde está o Hector?”, e o senhor ao lado olha como se ela fosse daquelas loucas a falarem sozinhas, mas é que o Hector já deve estar na faculdade, já pode estar conquistando uma noiva, já deve ter se esquecido de uma garota chamada Sônia Regina Dalmas que ele agarro aos dezoito anos, isso se o Hector estiver vivo...

Ela só o reencontrara uma vez depois do drama, de sonhos e projetos, olhares e beijos, e por intervenção de um amigo em comum, confidente das duas famílias, tipo um Frei Lourenço entre os Montecchio e os Capuletos, para continuar plagiando o clássico inglês, que conseguiu marcar, de parte a parte, um encontro num restaurante, para que conversassem e confessassem, pois o amigo em comum era justamente um padre!, Padre Gustavo, justamente, e ele, diplomata à mesa, deixa o casalzinho à sós, para que se aliviem das mágoas, que reconheçam que não passam de péssimos atores numa encenação escrita por outros.

E o Hector todo cordial, todo remorsos, que não deviam ter feito aquela loucura, querer fugir da família, que agora seremos afastados, que deveríamos é ter paciência, mas toda aquela ladainha me enervava, “Olhe, Hector, não sei quanto a você, mas eu não me arrependo de nada!”, não queria ser grosseira, mas ele se entregou a um silencio resignado e passou uma carta, em folha toda dobrada, onde me considerava “única e insubstituível” e que jamais me esqueceria, e que eu me cuidasse quanto a minha família e quanto a minha família e quanto a outros amantes, agora que estaríamos separados, e aquela aceitação dele, como se fosse destino, e aquela covardia toda, como se fosse resignação heróica, me enervaram tanto que me levantei, deixei-me ser abraçada e fui embora.

E o senhor ao lado lança aquelas olhadelas de sutileza, a pensar o que uma mocinha, assim toda de luto, faz aqui, junto ao cemitério, neste anoitecer de luar e certo vento, uma mocinha que talvez o interessasse, ou passeasse em seus pensamentos e desejos, com essa pose de senhor tão respeitável. E desde que se acostumara a esses tipos, desde que ali morava, meio à boêmia do bairro Santa Tereza, longe da calma da periferia, lá nas ruas escuras do Barreiro, onde crescera correndo para chegar à escola, onde corria para alcançar mamãe em passeios e tantas compras, quando.

Mas o senhor levanta bruscamente o braço! E ela, encolhida, é cegada por um farol, ensurdecida por freios gementes! Contudo, aliviada! É o ônibus que esperava! E o senhor, gentil, a deixa subir primeiro.






(Fim do Capítulo I)



LdeM
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