domingo, 24 de outubro de 2010

Insônia das Almas - Capítulo V





Insônia das Almas

Capítulo V

Aqueles jovens que se perdem entre veículos e buzinas, afugentados, quando o frio desce sobre as palmeiras e os ipês floridos, e a escadaria da Secretaria da Fazenda não é mais um abrigo acolhedor, e transitam entre sonhos de eras perdidas, com as mentes cheias de lendas nórdicas e canções medievais, em cartas brilhantes com silhuetas de castelos enevoados e chamas rubras de dragões estilizados.

Ocupam o coreto e jogam suas cartas com desenhos, paisagens de sonhos, e ostentam suas vestes de cavaleiros medievais ou de vampiros aristocratas, em desfiles entre as palmeiras, na sombra das alamedas, no brilho difuso das fontes borbulhantes, enquanto pálidos, desprezando o sol e a luz, vivem a fantasia de uma noite eterna.

Divertiam-se em bosques fechados com bruxas sem face, num terror difuso onde o que apavora é o que não podemos ver, um terror de sala de cinema, arrepios em poltronas confortáveis, com bruxinhos voadores e vampiros com maquilagem e guiando carro-esporte, ou lobisomem com cara de vocalista de banda de rock pesado, onde o desejo de tortura psíquica é fetiche e explica os orgasmos de terror e os sucessos de bilheterias das salas de cinema dos shoppings. Terror “verdade” desde que bem editado e com trilha sonora de TV musical. Arrepios com acompanhamento de pipoca e coca-cola. E gritinhos quando um garotinho diz que vê pessoas mortas.

Sônia Regina volta, lentamente, ao longo do muro e das grades do Palácio do Governo, observando, do outro lado da Avenida, os vultos sobreviventes de antiga arquitetura. Florados alpendres, colunatas retorcidas, fachada em leve tom rosado, vitimada pela fuligem na plena modernidade dos carros. Sônia, que não suporta as inovações arquitetônicas, acha ridículas as curvas daquele edifício ali do Niemeyer, Nada contra o criador, mas, convenhamos, não posso deixar de admirar os belos traços de outrora.

Já não encontrará conhecidos na Praça, pois os jovens fazem o trajeto contrário, a descerrem para a Savassi. Os poucos, que permanecem no coreto, são neófitos. Exibem bandas novas, em suas camisetas escuras, ostentam novos saberes, com seus quinze, dezesseis anos, e pouco dispostos a compartilhar.

Não exatamente a sentir-se bem, ali entre os canteiros, mas Sônia deixa-se ficar, a adiar o retorno para a sua distante casa, para a sua íntima cama, para o seu descanso, abraçada a si mesma. Cada jovem que atravessa o seu caminho é um olhar de brilho desconhecido, e cada novo desconhecimento revela o abismo de uma solidão. E se casais passam, em amoroso abraço, não é inveja ou desconforto, o que ela sente alfinetar sob as suas unhas negras, mas tão-somente uma regurgitada tristeza.

Tristeza que se derrama a cada passo, afastando folhas secas, sementes enrugadas, restos de lanches e embalagens coloridas, reluzentes, que amanhã um funcionário, que sobrevive de seus serviços de limpeza e conservação, cuidará em remover os excessos dos que destratam os locais públicos, um oásis tão agradável meio ao deserto dos males urbanos. Mas cavando, em si-mesma, lembranças de risos e frases, de momentos não pagados de completo, ela encontra certa companhia. E andando permanece estática em monolítico passado, que não pode ser mudado, mas aceito e interpretado, acalentado e suportado.

Um estudante, alto e magro, oculto no brilho dos óculos, atravessa diante da área de segurança, com sua mochila de volume notável e uma camiseta de faculdade. Respira fundo quando atinge a Praça, como a se livrar de toda a poluição que antes respirara. Sônia pode distinguir o nome da faculdade (UFMG) e do curso (Ciências Biológicas), e segue, com o olhar, o vulto do rapaz que se perde na alameda.

Muito sério, parece em busca de sossego, Aqui até que se pode andar, o vento batendo lá encima e derramando estas folhinhas de verde maculado ou florações do ipê ou raminhos que se agarram no cabelo da gente, assim, uma semente aqui na ponta do nariz, e ele anda encurvado, com todo o peso daquela mochila, será que carrega espécimes mumificadas? Claro que não! São livros de anatomia, imagino. Ai, que horror, aqueles cadáveres no laboratório, que formol nauseante, que castigo!, e a Lídia levantando o lençol para ver a cara do moro, um negro com jeito de morador de rua, pois claro que o sujeito morreu indigente, debaixo desses viadutos e depois enviam para a gente estudar e retalhar os coitados! Ah, Biologia! Eu mereço! Quantas vértebras? Quantos nervos raquidianos? O que são angiospermas? Explique a Segunda Lei de Mendel, descreva o ciclo do oxigênio, dê exemplos do Reino Fungi, eu mereço!, mas ele é jovem, talvez da minha idade, tem cara de calouro, exibindo a camiseta assim, “Ciências Biológicas”, numa caligrafia artística, Ei, garoto, poderia me explicar a síntese de proteínas?

Deve ter a minha idade, mas eu perdi tempo, droga!, repetir um ano inteiro, e logo o primeiro!, e se tomo bomba de novo, lá se vai outro ano todinho!, e ficar neurada com esse troço de vestibular, que a Raíssa ficou um estresse só!, mas 'tá lá estudando “Administração”, cheia de estatísticas e tabelas nos miolos, querendo ser executiva e todo elegância, porque, mas ela tem lá as ambições dela, cada um tem a sua, e eu queria cantar, ser famosa, uma Morissetti, uma Dolores O'Riordan, mas nunca dá certo, pô!, eu “perco o meu valioso tempo com pessoas que não se importam se eu estou viva ou morta”, ah, chegar em casa e ouvir os Smiths, mas amanhã mamãe me quer diante dos livros, afogada em polinômios, que o trabalho é para segunda-feira, fora a pesquisa sobre o “Período Regencial”, aquele tanto de revolta, aqueles regentes cheios de pompa e solenidade, minha nosa!, e ninguém para trocar um “oi” ao telefone!

Mas se eu passar no vestibular, já é época de inscrições, que é uma competição fodida!, se eu conseguir a vaga, significa que outra pessoa ficará sem, deixada de fora, morrendo de frustração, coitada!, e por que não pode haver lugar para todos?, assim eu não me sentiria tão culpada pela minha conquista, com mamãe Clara Selma toda sorridente o senhor César todo orgulhoso, “Pelo menos nisso ela é competente!”, ele diria, oferecendo um mais de mesada, todo generoso, ou um presentinho, daqueles 'simbólicos', sempre avarento, e diria ainda “Você mereceu! Deixou os maus estudantes, esses preguiçosos, para trás!”, mas por que assim? Por que isso de um-leva-e-o-outro-chupa-o-dedo? Por que uns pisando os crânios dos outros? Claro, que se digo isso ao Oto, o cara logo vai zombar, Que o mundo é assim mesmo, só os fortes sobrevivem, e eu já li isto no livro de Biologia que trata da Evolução e está cheio de frases de um certo Sr. Charles Darwin, que embarcou num navio e se dedicou a coletar uns pássaros, catalogar uns répteis, comparar uns com outros, e a dizer que o homem veio dos primatas – coitado dos macacos!

Mas ele some no escuro, e ele parece o Oto, só que o Oto com aquela cabeleira viking, um bárbaro, minha nossa!, que cita Darwin, não só porque dia o tempo todo que o mundo é assim mesmo, um imenso triturar de ossos alheios, e que viver é competir, é guerrear, e que uns, os filhinhos-de-papai, ou as madames, já tem tudo na mão, e que sem luta e esperteza não se tira nada deles, e oto, o mesmo que de tanto 'lutar' afundara a banda, a própria banda! Pobre Oto!, agora a dizer, “Como você anda melancólica!” ou “Não tenho medo de cara feia!” ou “Não tenho tempo agora, liga depois!”, e o grandíssimo filho-da-puta!, e o que ele faz? Desliga o telefone, sai de fininho, finge que não ouviu, vai rabiscar uns versos, que ela, a coitada, só escreve quando 'tá deprê na fossa mesmo, “De flores o opressivo odor / (Fenecendo jazem os botões) / lágrimas orvalhando / as pétalas que caem”, essas coisas, que dizem nada dizendo.

Por que dependemos da pessoa amada?, ali ao nosso lado, para ser nosso apoio e sempre um incentivo?, mas é a pessoa que escolhemos amar, depois de seleções e seleções, iguais as do tal Darwin, selecionando a pessoa depois de critérios e estéticas, atitudes e gostos, que apreciamos, e se damos atenção ao que tal pessoa pessoa diz é porque nós demos um valor a ela, nós é que delegamos o poder que ela tem sobre a gente, ou seja, pense bem, Soninha, o poder de elevar nossas auto-estimas vem de nós mesmos, não é assim?, eu nem preciso ler Freud, se quer saber, com isso de Ego tal e escolhe Outros tais e reforço do Ego e tal, sei que não é qualquer um que ouvimos, que deixamos nos afetar, mas escolhemos e depois como se livrar da escolha? Ah, minha nossa!, aquele que desaprece na escuridão é mais bonito que o Oto! E quem sabe até seja mais legal!

Não adianta adiar. O retorno para casa é certo. Sônia Regina tem em si dolorosa lembrança daquela vez em que ficou fora de casa sem permissão. O regime 'draconiano' que se seguiu. A mudança de bairro e de colégio. A perda das amizades e a difícil conquista das novas. Se não fosse a mão amiga de Raíssa, ou o aparecimento súbito de Víctor, não teria saído de sua sólida solidão.

Mais palmeiras na descida da Avenida Brasil, onde charmosos e charmosas descem de seus caros carros importados, rumo às promessas de diversões em boates e restaurantes. Sônia não está muito atenta a estes vultos de endinheirados em busca de prazeres. Ela percebe e aceita, não ficará acrescentando rótulos e rótulos, não se deixará corroer por ressentimentos nascidos de viperinas invejas, e se está andando a pé é porque assim deseja, uma vez que tem dinheiro mais que o suficiente para um táxi.

Uma melodia foge de uma casa de shows e derrama-se sob as palmeiras, envolvendo os passantes, um gemido de saxofone, uma trilha sonora de sensualidade requintada, soundtrack de filmes noir da década de 50, e Sônia deixa a melodia passear em seus cabelos e repetir-se em seus lábios, no tremor da língua e no estalar dos dedos.

Onde eu ouvia um sax assim?, na casa do Stevam, acho que o irmão dele... mas estas meninas com tanta vontade de diversão, olha a moreninha que desce do táxi, olha os grandes vultos da recepção, e eles querem saber o que ela quer, mas nem ela sabe, com aquele ar de perdida, o mesmo olhar daquela menina que num banheiro de show destas noitadas meio anos 80, um show tumultuado, a casa pequena para tanta gente, e a garota no toalete, quando a luz se apaga no salão, não é muito seguro, mas ela quer sair, e não era boa idéia, e ela não ouvia conselhos, a reclamar da falta de segurança, nada ouvindo, dizendo que em outros shows a segurança é bem melhor, eficiente, organizada, e menciona umas bandas pop, e estranha continuar ali num show de bandas melancólicas, meio às faces pesarosas, mas diz estar acompanhando uns colegas, que são uns 'posers', com aquelas 'caras de maus', mas são iguais a todo mundo, cheios de 'ideias-furadas', e que só está junto deles para curtir a noite e aproveitar a qualidade do 'pó', e aquela 'patricinha' mergulhou na escuridão, e me deixou ali preocupada.

Isso antes de frequentar aqueles shows com o Oto, todo atenção mas com arrogância, fazendo um favor, mas numa força. Força. Uma força que vai arrastando. Oto pode ser um idiota que tira força da própria burrice. Uma mula. Ao contrário de Henrique, pois o Henrique, inseguro, todo pensamento, até admira e se intimida diante do Oto, todo segurança, todo arrogância, sólido igual uma pedra que rola da montanha, e ai! de quem estiver lá embaixo no caminho, pois o Oto pode até ser um idiota, mas jamais duvida de si mesmo, e até por isso mesmo, enquanto todo pensativo o Henrique fica se explicando, se justificando, sem perceber que é de todo inútil, diante de uma força que vai arrastando, igual àquela noite em que o Oto ajudou a desatolar o carro do irmão da Fla, que era namorada do Erik, lá no sítio, depois da Pampulha, onde depois quebraram o espelho do banheiro, aquele monte de bestas, mas quanto o irmão chegou, o carro dele atolou num lamaçal junto da porteira, e o Oto, já meio bêbado, todo euforia, pois quando ele está são é frio e distante, foi incentivar, aos gritos, o grupo de rapazes, “Força! Força! Vamos!”, que conseguiram tirar o carro, enquanto o Oto empurrava, praticamente as botas na lama, e depois todo sujo de lama vai deitar-se no sofá, sendo rodeado pelas 'ninfetas', as meninas de grandes olhos.

O Henrique, onde estava?, ah, ele observava tudo, ali na varanda, discutindo ateísmo e literatura, diante de um estudante e um músico leitor de Saramago, o que era notório, talvez um colega da Fla, não lembro, e Henrique observava o retorno do Oto, e ao seu lado os outros rapazes são folhas secas, diante da presença do oto, que mais parecia aqueles caras que controlavam o ritmo das remadas nos porões dos barcos vikings, enquanto a marca de Henrique é a frieza, a observar o Oto se agitar diante das monstruosas caixas de som ligadas em plena sala, onde um solo de guitarra cortava janelas e paredes e uma bateria estremecia as vidraças, ali um Henrique todo racional observando um Oto todo eufórico, gritando, no agito, e não sabe se Henrique sente desprezo ou inveja, talvez as duas coisas.

Risos se precipitam na noite. Um carro com estrondoso som desce a Avenida Brasil e rapazes gritam festivos e assobiam e incomodam. Sônia Regina se esforça para ignorar. O veículo pára lá embaixo no sinal vermelho, o primeiro da área hospitalar, e os risos e assobios continuam, uma festa ambulante sobre quatro rodas, diríamos, e Sônia reduz os passos, não quer ser assediada, e o sinal brilha verde e lá se vai o carro e seus festivos ocupantes. E ela não pode ocular um desprezo mesclado de piedade diante de jovens ricos e tão indiferentes à realidade e à miséria, festejando, ao som de ritmos eletrônicos, como se vivessem no melhor dos mundos possíveis.

Não podem ver esses miseráveis sob as marquises?, onde um homem, um vulto de homem, e uma mulher, o que sobrou de uma mulher, discutem, disputando a proteção de um cobertor, não podem ver? Meu deus, como são idiotas! Uns pobres alienados! Bem que Víctor diz sempre, e sempre bêbado, pois não suporta este mundo, o coitado, o Víctor que suporta o Oto, vejam só, e eles estavam naquele bar, onde eu encontrei o Oto, o bar estava cheio, nada de mesa vazia, e muita falação, mas atrás de um rapaz todo de preto estavam dois lugares vazios e eu fui e Víctor me viu e levantou de repente para me abraçar e balançamos a mesa e o Oto fez cara feia, pois a bebida quase derramou, e eu não pedi desculpas, mas mergulhei naquele olhar, enquanto Víctor estava no meu caminho, e o Oto equilibra a garrafa e os copos, sem desviar o olhar, sem assumir que observa a desconhecida, mas diferente da segunda vez que o encontrei, uma sombra a estender-se sobre a mesa, depositando uma garrafa e dois copo, sem pedir licença.

Foi naquela noite em que seria a do show, ou me disseram isso, a banda do Oto vai tocar e tal, e dois rapazes desceram do mesmo ônibus, não sabiam onde ficava o bar, “É pra lá que estou indo!”, eu disse, e eles me seguiram, calados, ambos de ares sombrios, um com uma jaqueta, o outro com um blusão de flanela, e seguimos a rua Padre Eustáquio, comentando o casario de estilo antigo, os botecos, onde compraram cigarros avulsos, enquanto, vez ou outra, comentavam uma noite no cemitério, o do Bonfim, e enfim chegaram, e eu não vi qualquer conhecido, só a banda a fazer “passagem de som”, e não era a banda do Oto, mas aparece um coroa dando encima de mim, e paga a bebida, mas fui ao banheiro e me afastei, e fiquei do lado da banda, e quando voltei ao bar, o velho se mandara, lá estavam o Oto e o Víctor e uma garota, muito bonita, muito pálida e cabelos negros, mais longos que os meus, e era a Carol, e o Oto contorna a situação, até porque não se importa, sabia que eu era afim, eu que chego diante dele e digo, “Ora, me disseram que a sua banda ia tocar hoje!”, “Só se estão por aí, tocando sem mim.”, ele sorri debochado, aquele cínico, e o Víctor estende a cadeira, e chegam Erik e outros caras, e eu observava a Carol e suas pernas fascinantes saindo de uma saia minúscula de couro negro.

O que eu fiz?, ah, sim, troquei meia dúzia de monossílabos com a Carol e depois fiquei sozinha, e do outro lado, junto ao palco, um rapaz sentado no chão, meio alheio, mas depois ele se levantou e se aproximou e ele era digno de pena, com cicatrizes de agulhadas nos braços, “Estava ali e olhando, você aí sozinha...”, ele disse, com toda a presença de seus dezessete anos, visivelmente drogado, enquanto os seus colegas se queimam com pontas de cigarros, para ver quem é mais brutal, mais resistente à dor, e ele começa a falar de sua vida, mas os colegas, de onde saíram?, querem ir ao cemitério, o do Bonfim, mas ele e sua vida, ali inclinado, ele dizia que vivia com o pai, e sua mãe foi para o sul, e ele não tinha amigos, ainda que seguido por estes caras, e eu dizia que morava com uma amiga, muito trabalhadora, e nisso os caras foram embora, os braços todos queimados, fãs de bandas satânicas, rumo ao cemitério, pouco amigáveis, ele continuou diante de mim, até parecia mais leve, mas foi ao banheiro e não voltou, e depois descobriu que ele morrera lá dento de overdose.

Ressoar de sirenes junto aos hospitais. Onde, à princípio, espera-se silêncio. Mas os pacientes, pacientemente, esperam novos companheiros de quarto. Uma ambulância estaciona e paramédicos, estressados, vão conduzindo um corpo gemente numa padiola e vultos de alvas vestes angelicais ao redor, com toda a boa vontade do mundo. Talvez consigam salvar aquele ser que sangra. Quando uma sandália vermelha cai na calçada é que Sônia Regina percebe tratar-se de uma mulher. E jovem! A sofrer ali, no corpo frágil, uma sangria, uma dor tão grande que ela nem podia gritar! Seus olhos procuram outros vultos, e Sônia quase se deixa adentrar o templo dos gemidos, mas sente uma náusea iminente, como a sentir-se golpeada por todas as dores físicas e morais de todos os sofredores, no que Henrique já dizia, “Sônia, menina, você sofre de um complexo de Atlas, sente todo o peso do mundo nas suas costas”, o mesmo ela dizia ao Stevam, o cabisbaixo.

Foi Stevam quem me emprestou um livro do García Márquez, onde as personagens não fogem de suas solidões, aliás, “Cem Anos de Solidão”, onde Meme, a mais densa e interessante das figurantes femininas, ama mais o envolvimento, e as situações arriscadas, com o mecânico Maurício Babilônia (que nome!), do que o próprio rapaz, que ela considera muito rude e petulante, e é o que me lembra o meu caso com o Oto, tão seguro de si que satisfaz a gente, mas claro que só pensando no prazer dele, mas acaba dando muito prazer, ainda mais se a gente for masoquista, aí ele é o sádico ideal, só falta criatividade, no que ele é zero, mas não interessa, ele é direto ao ponto, ao contrário do Stevam, todo gentileza, que enrola e enrola e dá em nada.

E é por isso que o Oto leva todas e a Carol finge que não vê, a Carol, Ana Carolina, que não desprezo, mas que tem a mente suja de moralismos e julga que vai se livrar dos moralismos ao praticar o contrário do que exigem, entregando-se às safadezas do Oto como se purificação, e chegando a ir morar com o cara só para irritar papai e mamãe e metade dos parentes, e para descobrir que, no fundo no fundo, o Oto é mesmo um fraco, a morar naquela casa de subúrbio com a mãe viúva e abandonada e que não suporta o filho enquanto ele a odeia e não disfarça e o inferno que aquela casa é.

Ainda mais Oto e sua cegueira com aquele Bruno e a mulher dele, a Cida, ambos ali todos atenciosos, a dizerem que o Oto tem futuro, que ele pode mexer com computação, já que prefere ficar hibernado no quarto, ainda mais quando a Carol... aí eles não saíam da cama, mas aquela amizade do Bruno é só afetação, sim, pelas costas ele deve ridicularizar o oto, quando dizem que ele é um desajustado, um utopista de direita, e chegavam calorosos, bem vestidos, ao estilo rocker, mas com roupas de moda, e o Oto todo fodido, de jeans rasgado e descabelado, e o casal conversando “normalmente” com o Oto, ele no estilo 'cavernoso', como diria a Cida toda naturalidade, no fundo escandalizada! e ele entra no bar e ela, na penumbra, ouve o casal comentar as 'loucuras' do Oto, com todo o sarcasmo, pois para eles o oto significa apenas o que eles jamais desejariam ser, pois reafirmam o que são quando se julgam acima do Oto, o 'desajustado'! E claro que o oto nem desconfia, acha que sua atitude de 'doidão' é o que há! E nem percebe que após a 'conversa' com o 'doidão', o casal de 'ajustados' ainda mais contentes consigo mesmos, após o encontro com a “atração circense”, o “espécime exótico” que é o Sr. Oto Marques!

Mas, idiotas que são! Não enxergam! Vivem numa disputa de vaidades, de um lado o casalzinho a pensar assim, “Muita gente gosta assim, então eu gosto!”, e do outro, o Oto, prepotente, a gritar, “Muita gente gosta? Então eu detesto! Vou ser diferente!”, e aí o Oto não percebe uma coisa, que é até simples, deus-do-céu!, que não é o Oto quem aceita e tolera o casal, mas é o contrário!, pois é a maioria que tolera a minoria!, não é o casal que permite que o Oto seja o que ele é?, não é todo o mundo a tolerar o Sr. Oto Marques?, mesmo que não façam oposição aberta, não o recriminam nem o eliminam, mas criticam e ironizam, assim que ele se afasta, e depois de fingirem uma igualdade, mas pensam para si, imagino a Cida retocando a maquilagem diante do espelho do toalete, “O quanto somos superiores a ele! Permitindo que ele continue aí, tal como é! Pelo ridículo, que ele representa, eu prefiro ser o que sou, bem-sucedida na vida!”, e o Oto, o pobre 'outsider' perde toda a sua energia ao tentar ser o diferente, destoando do que proclamam seu “padrão”, ai, palavrinha toda séria!, e não que o Oto se aproxime submisso, ele jamais faria isso!, mas os seus amigos 'ajustados' já se sentem superiores, por terem a aceitação da maioria, e é assim que não é o Oto quem tolera os “almofadinhas', mas são eles que o toleram!

Vagueando em seus pensamentos, a ponto de falar sozinha, Sônia Regina percebe-se diante do Viaduto, notando a sua esquerda o hipermercado que já abaixava as portas. Casais conduzindo carrinhos de arrastavam até os carros ou acenavam aos táxis. Na escada, uma mocinha oferecia sorvete ao rapazinho ao seu lado. E todo casal é uma punhalada, ainda mais que o Oto, nunca uma promessa!, mostrara-se o trauma perfeito! Falando sozinha nas alamedas, Sônia atravessa trânsitos e desvia-se de pedestres e descobre um pedaço de lua cheia nas ramagens e tem vontade de abraçar e beijar aqueles caules seculares, mas toda aquela fuligem a assusta e desespera.

Agora, não que eu fique desconfortável diante daqueles idiotas, pois depois o Oto me apresentou ao casalzinho, e não me senti superior, mas fiquei na minha, e eles que encenavam muito bem. Não desprezo, mas sei que sou desprezada, ainda mais que não ganham nada com isso, sou um nada!, mantêm uma condescendência sadia, devem pensar quando chegam em casa, após a noitada, e tiram as máscaras, e trocam impressões, “Você viu aquela garota vidrada no Oto? Coitada! Toda pálida, parece que chegou de um velório! Outra doidinha!”, mas continuam o jogo, frequentam os shows, o Oto é conhecido, enfim, por que é que eu me importo com essa gente? Mas é que a descoberta da fraqueza do Oto, brotando de sua própria força!, me deixa com os nervos à flor da pele! E por que não vou bater à sua porta agora mesmo?

Alguns vultos se voltam ao ouvirem uma risada. Sônia Regina, rindo, propõe a si mesma uma visita ao desafeto, balbuciando fórmulas de gentileza, nunca desculpas, pois ele não merece. E é verdade que Sônia gosta de surpreender, evitando alguns formalismos, do tipo telefonar antes e agendar, ou avisar, ao menos, preferindo, antes, chegar de imprevisto, mesmo arriscando-se a ser inconveniente,o que às vezes ocorre. Ela aciona a campainha e assusta o anfitrião, o que desnorteia os que têm, segundo ela, o “péssimo hábito” de ordenarem os compromissos, os eventos, os encontros, segundo datas e horários. Uma noite, Sônia aparece na casa do Víctor, sem avisar. O amigo vem atender, após certa demora, de bermudão, e cara amarrotada, e marcas de batom no pescoço, “Sônia! Você aqui?! Pô, nem avisa!”, ela sorri, ele continua, “Eu tô acompanhado, Sônia”, e ela, com olhar malicioso, “você está...”, “É. (pausa) Não quer que eu te convide pra entrar, quer?”, “Quero.”, mas ele bate a porta. E é de tal incidente que brotam as suas risadas, as que atraem os passantes, enquanto Sônia sobe a Avenida do Contorno, diante dos bares e ds diversões noturnas, onde os seus amigos mesmos muitas vezes se encontram, ou ali diante da igreja matriz da Floresta, mas desta vez ela só tem risos para si mesma.

Casa do Oto. Som altíssimo. Hard Rock! Oto sem camisa. Calça jeans preta. Cabeleira solta esvoaçante. Magro, contra a luz. Agitando-se frenético em sua magra palidez. Com pesadas botas negras. E o jeans preto fazendo um contraste com a pele pálida. Calças justas, dedos nos bolsos, balançando a cabeça, agitando-se sem camisa. Peito a cobrir-se de pêlos, peito de raquítico – também com tanta bebedeira! Delirando com uma guitarra, um solo eufórico, dedilhando o ar, imaginando uma guitarra furiosa!

E o globo de luz, o lustre globular, todo coberto de elásticos, os filetes de borracha, mais a parecer arame farpado, a projetar sombras nas paredes acizentadas, num papel de parede de galhos retorcidos, garras deformadas, penumbra de bosque ao anoitecer. Ele lembra que ela está ali e até sorri. Ela se aproxima e afaga seu peito, sua barriga, deixa a mão acariciar o umbigo e adentrar a calça, agarrando a excitação dele, brincando e apertando, enquanto ele morde nela a ponta da orelha, quase arrancando o brinco, aquela pequena cruz negra.

Mas agora, Sônia Regina está diante do portão e lá dentro um manto escuro. Realmente ninguém em casa. O vento vem rodopiando junto ao muro e estremece o portão. Ela aciona o interfone e espera. São dez e pouco, ela deve esperar? Mas ele não tem forças para se afastar, e um desânimo a obriga a sentar-se na calçada, evitando sujar-se nas flores murchas que caem da orgulhosa árvore que no entanto, inclina-se para o muro. Uma lua espantosa atrai o olhar de Sônia e ela julga ver brilhos além das pálidas estrelas, e são brilhos que se movem e talvez sejam OVNIS, com maravilhosos, ou orgulhosos, ETs e talvez não estejamos tão sozinhos assim, e aquela árvore é testemunha de muitas loucuras desde a festa, e no tronco continua a rugosa marca “S & O”.

Era para ser uma festinha entre amigos, os “Eleitos”, como dizia o Oto, mas fugiu ao controle, e a bagunça noite adentro e quase que o vizinho chamou a polícia, mas ninguém pôde prever isso quando tudo começou, eu cheguei depois mas consigo imaginar, naquele crepúsculo, a chegada, até comportada, daqueles loucos, mas eu lembro porque descobri quem era o Oto, e pude observar de perto o Henrique, aquele espécime raro, e conheci o Stevam, todo complicado, meu deus!, que situação aquela, mas eu consigo imaginar o início de tudo.

Sei que o Víctor foi o primeiro, deve ter chegado com a bebida, pois quando cheguei todos já se ocupavam de seus copos, e o Erik já escolhia a trilha sonora e a Carol estava sentada no colo do Oto, com jeito de vadia, e o Henrique chegou de óculos escuros, todo vampiresco, e ficou na penumbra da sala, e chegou a Fla, que agarrava o Erik, e logo eles estavam se amassando ali mesmo no sofá e chegaram o Bruno e a Cida, os hipócritas-mor, e traziam vodka, e depois chegados do Oto, gente que nem conheço ou nem lembro, e o Víctor e Oto disputavam os CDs, e o Víctor corria com o controle do som, umas crianças!, e o Henrique todo sério, o único na sala, pois o pessoal acendera uma fogueira no quintal e comentavam sobre bruxas e duendes, e o Erik e a Fla se trancaram no quarto do Oto, fazendo o que todos imaginavam, só não ouvíamos os gemidos porque ele devia estar sufocando a menina com uma almofada, mas o Henrique estava sozinho, todo deprê, anotando versos numa folha de caderno, e eu com timidez total, não que o desejasse, mas ele era misterioso, sempre calado, e os caras ligaram a TV e colocaram um filme pornô, com uma garota chupando cinco caras de uma vez!, e os caras gozando na cara dela, e ela lambendo os beiços, e aquilo me deu um nojo, que filmes pornôs são uma náusea só, eu saí, fiquei junto da fogueira, e o Víctor com suas piadas macabras, de humor-negro, onde sempre aparecia um padre, um pederasta e um coveiro, e eu não entendia, e nem queri entender, enquanto os olhos da Carol brilhavam, a refletirem a dança das chamas, e o Oto alisava e beliscava aquelas pernas desejadas que findam numa meia em rede, toda preta e coturnos lustrosos, cheios de tachas, e a Carol estava fatal!, e se ela fosse mais legal eu até me jogaria aos pés dela, ó grande conquistadores do coração deste bárbaro!, ó domesticadora de desejos selvagens!, e só para irritar.

E para encher o saco, um amigo do Víctor apareceu com um violão e ficou cantando rocks nacionais, os mais piegas, e voltei para dentro, e o Erik já tinha saído do quarto, com aquela cara de contentamento que nós garotas conhecemos muito bem, depois que sem de dentro da gente e nem querem mais saber, pois gozou, acabou!, e eu não suporto um olhar igual ao do Aléxis, ali acomodado no sofá, esse olhar de “estou vendo a cor da sua calcinha, baby”, pois os caras só pensam nisso, a gente é um buraco ambulante, um corpo bonito, mas ali ao lado dele, eu percebi ao lado deles um rapaz que não me olhava assim, mas com até timidez, com toda calma do mundo e o Henrique levantou os olhos e viu a cena, e o filme pornô terminava, todo mundo gozava, isso no filme, claro!, que eu observava o rapaz, e não o seu corpo, pois ele é até um tipo assim fraco, sem qualquer atrativo, não é feio, mas também não é bonito, não tem a força do Oto, ou a elegância do Henrique, ou a malícia do Aléxis, ou a espontaneidade do Víctor, mas o rapaz era diferente!

Sei lá, pois eu não fico ligada no corpo, coisa tão essencial para os meninos, mas eu olhei os gestos, a entonação da voz, o olhar tímido, reservado, aquela indiferença para com a minha chegada, enquanto os outros, com exceção do Henrique, ali meio aqueles rascunhos, me desnudavam, me comiam, me devoravam, todos, com os seus olhos de brilhos sacanas, ah esses filhos de uma puta!, não podem me ver com meus peitos que estufam meu vestido vitoriano, ou os meus braços nus que ostentam luvas negras, mas o rapaz, e ele disse o nome, “Stevam Lucena”, sem qualquer comentário ambíguo ou obsceno, daqueles de um tipo vulgar igual é o Erik, que acaba de enrabar a pobre da Fla ali no quarto, na cama do Oto, fica olhando assim... e se a gente dá mole... e eu cismei que o Stevam me observava, mas do jeito dele.

E quem queria ficar comigo era o Aléxis, que tirou o filme pornô e programou clipes de bandas góticas obscuras e shows de bandas vampirescas onde mulheres se contorciam e gemiam dentro de gaiolas douradas e os vampiros saíam de tumbas e um vampiro beijava uma mão que saía de um túmulo e eu sentia o hálito quente de Aléxis enquanto ele me mostrava os desenhos, pois são desenhos muito bons, algo de Goya, de Van Gogh, mais sombrio, claro!, algo bem Bearsdley, de Salomé do Wilde, esses traços de mangás eróticos, mas com um tom mórbido, com criaturas de olhares de lobos, com meninas que se cortam, com meninas que sangram, igual o cristo no getsêmani , todo suando sangue, e o Aléxis pouco está preocupado com o cristo, ele ouve Marylin Manson, e isso é que o afastou do Stevam, no início, o Stevam dizia, pois o Stevam detesta estes tipos teatrais, e não poupava ironias aos clipes do Alice Cooper, ou do King Diamond, ou os clipes com monstrinhos tipo aqueles do Iron Maiden, mas isso nem era coisa que o Aléxis ouvia, pois ele se arrogava um bom gosto musical e ouvia Joy Division e adorava The Sisters of Mercy e música ritualística e worldmusic, cânticos celtas, ritmos sombrios das mil e umas noites árabes.
Mas eu não fiquei com o Aléxis, nem com ninguém, pois o Oto e a Carol voltaram à sala e comentavam os clipes do Cradle of Filth, aquele das garotas engaioladas, ou os do Satyricon, onde uma mocinha loira e pálida dançava nua diante de noturnos olhares sádicos que roubariam sua beleza e seu sangue, e eu me aproximei do Stevam, que olhava para a Carol, e eu olhava a Carol, aquela tão simplória pessoa, e que nem me dava ciúmes, lá toda cismada a doidona, e se eu a invejo é por sorrir sem angústias, enquanto eu fico aqui amargurada com bobagens, e é o mesmo olhar do Henrique diante do Oto, aquele olhar de “eu-te-invejo-porque-você-não-sofre”, enquanto Erik e Víctor se agitam envoltos num som assustador lá no quarto do Oto, e o Stevam lançava olhares de interrogação para o teto que estremecia, eu descobria o nome dele, e que ele tocava teclado, e timidamente declara sua dependência de estar sempre ocupado, escrever poemas, divulgar fanzines, estudar música, estudar para o vestibular, visitar os amigos, montar uma banda, tudo isso para não parar para pensar, pois pensar é perigo certo para ele, e se ele refletir muito ele se mata.

E depois foi o Henrique que apareceu no corredor, com uma taça de vinho, e o Stevam se afastou, respeitoso, pois o Henrique disse simplesmente, “Nem queira compreender”, e o Stevam abaixou cabeça, e eu não entendi, mas não era para entender mesmo!, e sustentei o olhar do Henrique, a comentar um trecho de “Hamlet”, assim sem mais nem menos, a morte de Ophélia nas águas, enquanto a Carol gritava querndo se apropriar do controle do vídeo, pois suas amigas chegaram e elas queriam ver um show do Metallica ou do Sepultura, não lembro, e o Henrique dizia que eu parecia a Ophélia, dapeça do Shakespeare, que eu falava sozinha, e olhou para o Stevam que se afastava e sorriu malicioso, e o mesmo Henrique que depois comentaria que o Stevam estava apaixonado por mim, ainda que não mostrasse isso no horário nobre, o Stevam apaixonado por minha saia curta, pernas nuas e pálidas, mas isso quando me viu no bar do Santa Efigênia, um mês depois, e eu estava com o Oto, e o Stevam amigável, não conversava, mas depois, de longe, com olhares de despeito e remorso, afinal eu era a garota – ainda que não 'oficial', pois essa era a Carol – do famigerado Oto Marques e ele, o Stevam, nem mesmo pensaria em enfrentar Conan, o Bárbaro, pois o Stevam não passava de um espadachim, um Hamlet perdido entre desejo e prudência.

E o Henrique, sim, o Henrique todo didático a prometer o empréstimo de seus livros de Shakespeare, e de Lord Byron e de Oscar Wilde, “Portrait of Dorian Gray”, e realmente me emprestou os livros e alguns eu até devolvi – e depois percebi que as folhas de rabiscos, com as quais eu marcava as páginas de leitura, continuavam nos livros -, e morro de vergonha que o Henrique possa ler as linhas tortas com meus pensamentos, minhas confissões, e pensei em pedir os livros em novo empréstimo, mas não sei, e o Henrique exaltado contra a exploração da mulher, aquelas criaturas lindas e lascivas ali engaioladas, e que essa idéia de pecado era um “contra-senso” e que esses góticos mantinham a dominação do “absurdo cristão”, “pois é justamente o medo que a religião cristã gerou com seu dogma de Morte e Juízo, e Punição e Recompensa, é esta aberração, Céu ou Inferno, que dita, e legitima, que o ser humano nasce para uma missão junto aos outros e perante Deus e morre, ao fim, por seus pecados, e deve ajustar suas contas com o Criador e Juiz; crença que gerou o medo crônico, o espírito sombrio e funesto, a piedade caricatural, o desprezar a vida, a frieza ascética, o retiro e a melancolia, que caracterizam o Barroco, o Romantismo, a arte gótica, com sua arquitetura sombria, com suas pinturas medonhas, com seus vestuários solenes e lutuosos, com sua música soturna”, e sorria para os jovens espalhados no ventre da sala, onde Oto e Carol bebem vinho, junto a porta, e Sevam e Aléxis conversam no corredor, e Erik e Fla se espremem no sofá, e as amigas da Carol trocam sorrisos de malícia, e Víctor derrama cerveja no forro da mesa, e Bruno e Cida observam tudo como se fosse uma ópera-bufa!

O vento, enroscando-se em seus cabelos, afasta Sônia Regina de seus devaneios, e a lua brilha em sua fartura e brilhos no céu claro podem ser espiões-aliens, ou meros balões meteorológicos, mas a ausência de Oto Marques tira todo o encanto, no sofrer da espera, como não notamos os detalhes de uma ponte quando o nosso objetivo é atingir o outro lado do rio. Certamente uma hora se passou, e ela sente a solidez, a imponência daquele muro, que, se ela pudesse, ela estaria lá dentro e se deitaria à porta dele, e esperaria a sua chegada. Mas, Sônia, alisando o cabelo, se levanta e ousa um passo adiante, afinal, não há esperança e nem ninguém em casa. Enfrentando a noite, ela volta para a Avenida, a rever a Igreja matriz, e o barzinho, onde jovens se aglomeram em busca de prazer e esquecimento, e ela segue rumo ao bairro, o seu bairro.

Sônia atravessa as ruas tão sozinha quanto ela mesma, e chega aos arredores da praça, ouvindo uma voz de mulher que se eleva, a cobrir seus pensamentos, e atravessando a luminosidade de bares e alpendres vazios, ela reduz seus passos diante de um boteco modesto, onde, quem passa na rua pode ver, um casal, ele ao violão acústico, todo concentrado, e ela, cantando, toda beleza e jovial em voz e olhares, tocam para um público de semblantes fatigados e gestos mínimos. A cantora não deve ter mais de vinte, e o rapaz, uns vinte e cinco – tão jovens! Ambos alheios ao que se passa no bar. Sônia contempla a cena, mesmerizada, encantada pela voz da garota, numa canção popular, certamente Elis Regina, ou Milton Nascimento, enquanto os dedilhados se sucedem marcando os limites das sílabas, eo casal ali se entregando, viajante nas sonoridades, diante do público, para a diversão daqueles que pouco entendiam. Os poucos boêmios ali nem parecem perceber a letra da canção que fala de um amor perdido, onde a despedida da mulher é uma carta perfumada.

Ferindo o ambiente do barzinho, Sônia Regina entra e aborda uma das moças que ali servem bebidas e porções. Discreta, tem um pedido. Se poderia usar o WC, o toalete. Uma luz debaixo da porta. A garçonete não levanta obstáculo. Basa agora esperar. Mas o rapaz tem um olhar distante igual ao do Oto, ainda mais nos ensaios, onde o Oto fica na dele, até parece ausente, omite opiniões e tal, não influencia, mas cria o som do jeito dele, e se nota que é do contra, pois ele até desiste de interferir, ou interfere exatamente quando não interfere! Quando independente do que ele disser, todos chegam ao mesmíssimo ponto!

Exemplo? Aquele ensaio na casa do Víctor! Quando o Oto se sentia tão superior a tudo e a todos, todo indiferente, não dava idéia, pois julga que qualquer opinião sua é se expor aos outros caras, e o Erik pode comentar, e o Oto não queria 'descer ao nível' de argumentar e convencer, e se o Erik, ou o Víctor, discutisse seria pior, pois sua autoridade deve nascer do consenso, e mesmo quando não concorda com algum acorde, ou melodia, ou virada, ou acompanhamento, o Oto não se incomoda, por julgar tudo isso menor, quiçá desprezível, e tudo isso ficou mais claro depois das observações do Henrique que, naquele ensaio, chegou ao lado do Stevam.

O Adelfo não apareceu, e o baixo ficou a cargo do amigo do Víctor, o Toni, e o Víctor já afinava o instrumento, enquanto o Oto, depois de desembaraçar os cabos, golpeava a bateria num ritmo de barco viking, todo empolgado, sorrindo pra mim, como se dissesse “eu já comandei uma expedição até aqueles mosteiros no litoral – e muito sangue foi derramado!” e tal e eu olhava da janela e, ali o sobrado, pode-se ver a ferrovia, brilhando, e os fios suspensos do metrô, as artérias de alta-tensão, e era a janela dos fundos e então entra o Stevam e o Henrique, que, o Stevam explicou depois, o Henrique, ou o TH, como ele diz, apareceu na hora que o Stevam já saía, e o Henrique mostrou-se interessado e o Stevam deixou o poeta segui-lo, e assim ali estava, e o Víctor assumiu a bateria, e o Oto foi agarrar sua guitarra, e o Toni, ainda sem camisa, todo raquítico, de tanta bebida, também aquele magrelo, alto, com cabeleira de índio xavante, afinando o baixo-elétrico, e o Stevam vai logo cumprimentar o Oto e montar o teclado, mas não sem sorrir pra mim, meio constrangido, numa saudação discreta, pois o Oto está sempre atento, e o Stevam teme uma faísca de hostilidade, e eu sou a única garota ali, e não podem deixar de serem gentis, como bons cavalheiros que devem ser.

E o Henrique manteve silêncio, e todo serenidade, enquanto Víctor não perdoava a bateria, e o Oto e o Toni duelam nas cordas, e o Stevam experimenta uma frase de Johann Sebastian Bach, e eu ajeito o cabelo atrás das orelhas, e observo tudo e espero algo, e o Henrique permanece alheio, em pé, junto a estante de livros e bebidas ali na entrada, os livros que Víctor raramente lê e as bebidas que Víctor sempre entorna, com exagero, goela adentro, e próximo a cabeça de Henrique, lê-se o título, em grosso volume, THOMAS MANN - DOKTOR FAUSTUS, e senti um arrepio, sabendo do que se tratava antes mesmo de ter lido o livro, e o Henrique nada disse durante todo o ensaio, ali, parado, lendo os títulos dos livros, sem tocar ou folhear, voltado para o teclado, vez ou outra atento aos dedos do Stevam, ou lança um olhar ao Oto, e quando olha para o Oto um leve sorriso de admiração ou inveja, mas sem ressentimento, diante da segurança, ou arrogância, do Oto, o seu não-hesitar-em-fazer, o estar-sempre-pronto-para-agir, pois o Henrique é todo bloqueado porque pensa demais.

Sim, o Henrique, junto a estante, imóvel, incansável, ali por umas duas horas, me impressionava, pois ainda não podia represar a desconfiança e os arrepios que ele me causava, desde quando conheci esta figura num show onde o Oto nos apresentou, pois o Oto não trazia a Carol, e um cara alto e pálido, todo de preto, junto às mesas, na área do bar, olhando o movimento, mas todo centrado em si mesmo, e o Oto, fumando, se aproximou, “Resolveu aparecer?”, e o outro respondeu, sereno, “Espero não incomodar.”, “Então não esqueceu os ensaios”, “Fui dar uma volta. Pensei que você me queria longe” e o Oto até ousou um esboço de sorriso, “Não tão longe. Podia enviar uma carta.”, e olhando ao redor, “Não desapareça. Deixa eu apresentar uma garota”, e acenou pra mim, “Esta é a Sônia. Este é o TH”, e o desconhecido, inclinando-se, beijou a minha mão, como jamais um homem antes, e disse, com voz veludosa, “Prazer. Pode me chamar de Henrique.”, e até tentamos conversar, em voz alta, berrando, mas não adiantou, aquele som altíssimo!, cheguei em casa até com os ouvidos zumbindo.

E assim não pude conversar com aquele gentleman, e nos braços do oto, juntinhos na pista de dança, eu ainda observava discreta o tal Henrique, sentado, soberano, atento a toda a movimentação, igualzinho um rei no trono, um Luís XIV, contemplando o bailar de seus cortesãos, pois era isso que me afastava dele, que me assustava, esse quase-sorriso de “observador do mundo”, assim afastado, só a contemplar a comédia humana, a mesma atitude ali, junto a estante, sem se emocionar com a música que os meninos ensaiavam, o oto com sua cabeleira solta a se agitar em seus solos agoniados, enquanto o Víctor esmurra sem piedade a pobre bateria, e ainda bem que eu usava algodão nos ouvidos!, e as vezes o Stevam me estende um cigarro, e eu lanço mais fumaça, que até parecia gelo seco no estúdio, e o Henrique ali sem qualquer emoção, tão acima de tudo, enquanto o Oto se agita, o Víctor esmurra, o Stevam se emociona, o Toni desafina de tão empolgado, e eles comentam, orgulhosos, a variação do andamento, e um explica o compasso ao outro, ou revelam que um entrou na escala antes do outro, que falta sincronia, e começam tudo novamente, incansáveis, e eu aceitava outro cigarro e ficava de olho no Henrique.

E o Henrique nada comenta nem sorri, e não bebe nada, mas é o Oto quem vai ficando “grogue” e se inclina sobre mim, aquele bafo e me arrancando beijos, e eu não gosto assim, mas sou eu quem rastejo atrás dele, o que fazer então?, mas não gosto e pronto!, e nunca aceitei esse lance de andar de mãos dadas, coisa que ele pode muito bem com a Carol, a deslumbrada!, que se imagina a domadora... e o ensaio termina, assim todos cansados, menos eu e o Henrique, a platéia, digamos, e todos vão ao banheiro jogar uma água fria no rosto e encararem a noite lá fora, depois de cuidarem dos instrumentos, e perguntam o que Henrique achou do ensaio e ele responde lacônico, “Fora do tempo”, no sentido de que somos atemporais, “timeless”, “out of time”? Não sei se os outros entenderam, e ele não disse mais nada, não diante dos outros, e o Víctor recolhia os pratos da bateria, e o Oto recolheu os cabos, e o Víctor cobriu a bateria com um plástico e guardou as pobres baquetas machucadas, e o Víctor e o Oto saem conversando, e eu vou seguindo, sem chamar a atenção, sem dizer nada ao Stevam e ao Henrique que ficam no estúdio, onde o Stevam cuida do teclado, e sentada, junto a escada, poso ouvir a conversa discreta entre os dois, à medida que o Henrique folheia um livro, “Víctor coleciona livros que não lê”, “O que realmente achou?”, “O som não me interessa. Quero ouvir você cantar.”, “Assim que você escrever algo.”, “Poderia ter soltado a voz...”, “Tenho só a melodia na cabeça.”, “Quer que eu recite algo na parte instrumental?”, “Sua voz é ideal.”, “Não vão entender. Só querem o orgasmo, e o orgasmo deles é a vibração sonora.”, e aí eu não entendia se ele se referia aos outros caras ou aos futuros ouvintes, e o Stevam queria encerrar a questão, “Será indiferente para eles, por isso concordaram que você escreva. Por acaso, já não leu todos estes livros?”, então ouvi o som abafado de um livro sendo depositado na estante, e a voz pesarosa do Henrique, “Eu não li todos os livros”, e, como eles viessem saindo, eu corri para junto do Víctor e do Oto, sentados ao portão, enquanto o Toni lembrava de lendas indígenas, que eram a sua obsessão, assim como as sagas nórdicas para o Oto e o Erik, e afumaça subia, e eu já notava uma divisão na banda, uma fissura que aumentaria até a ruptura final.

Uma descarga ressoa, indiferente à melodia. Uma moça de olhos vermelhos surge, evita o olhar de Sônia. Sua vez. A humilhação de reclinar-se. Por sorte há papel. Vamos cobrir o vaso. Ah, ser um homem! É só mirar e pronto. Cuida-se em enxugar-se. As mãos se retorcem sob um jorro d'água. Apaga a luz e abre a porta. Outra cliente à espera, atenta ao conteúdo da bolsa. Sônia agradece á garçonete, que nada diz. Chega à porta, pronta para reintegrar-se à noite.

E Sônia Regina atravessa a Praça, a da matriz e a do colégio militar, a Praça com nome famoso nos anais da História do Brasil, o célebre Duque de Caxias, que ela sabia realmente chamar-se Luís Alves de Lima e Silva, e esteve na Farroupilha, na Balaiada, na Revolução Liberal, para pacificar os ânimos, e a destacar-se na Guerra do Paraguai, tudo isso é importante – pode cair no vestibular!, então ela se concentra, e atravessa a praça, atenta ao coreto, e aos vultos abraçados, e um outro coreto se mostra.

Um coreto onde realizar um show, onde nos vocais eu seria o encanto do fim de tarde, e até fiz aula de canto meu pai insistiu, afinal, no interior, a música é mais clássica, algo barroca, com todos aqueles corais de missa e tal, e meu pai, apesar da mulher dele, insistiu e ele me emprestou a bicicleta e sai pelos campos, com um walkman e ouvindo uns troços que eu descobria, e era Mister Ozzy cantando “Sabbath Bloody Sabbath”, e eu pedalava, toda abismada com aquela manhãzinha de brumas, o sol escondido, todo tímido, enquanto a melodia noturna, “ninguém jamais vai te deixar saber, quando você perguntar pelas razões”, destoava da amplitude das planícies, e quase que eu podia ver o mar, “Eles apenas que você está por sua conta, e enchem sua mente de mentiras!”, mas havia o solo que, mesmo sombrio, iluminava mais que o sol, e aí eu atravessei o bairro, e vi a praça, e vi o coreto, com trepadeiras em volta e colunatas e brilhos de flores que pareciam arranjos florais, feitos ali mesmo, por capricho da tal natureza e pensei que um dia eu ainda poderia cantar ali encima, e pedalei com mais ardor e cheguei ao conservatório da cidade e fiz minha inscrição, mas não apareci nem à primeira aula, pois mamãe exigiu a minha volta, e quando mamãe Clara Selma exige – então sem discussão!

E assim eu não aprendi a cantar, eu até experimento, mas me falta uma certa técnica e o que posso fazer?, hoje eu desisto de tudo, não tenho ânimo nem para arrumar o meu guarda-roupa, nem para recopiar minhas poesias, e comentava isso com o Henrique, quando encontrei o cara no bar do Santa Efigênia, e o Oto conversava com o Erik, junto ao bilhar, e eu e o Henrique só no vinho, quase na calçada, e ele dizia que “toda banda gótica, se fosse autêntica, se vivessem mesmo o que escrevem e cantam, deveriam acabar em suicídios coletivos, com os músicos se matando”, pois para o henrique as bandas sombrias, de estilo deprê, só se legitimavam com a morte, o funesto com funesto e por isso considerava seriamente o Ian Curtis, o do Joy Division, e acusava as bandas góticas de hoje de só pensarem em ganhar dinheiro, “o cara pode até pensar em se matar, quando começa a banda, mas por que concretizar o propósito depois que a banda faz sucesso e vira uma fonte de grana?”, e eu dizia, “Mas você deve imaginar que esses caras são sempre tristes, mas é tudo pose!”, e ele dizia, “Se levassem a depressão à sério, os músicos se matariam, e os fãs também, e o nível de suicídio acompanharia o nível de sucesso, e se os fãs compreendessem a tortura do vocalista, a profundidade das letras, mas não!, os caras vão no que chamam “festa gótica”, vão beber e fumar, “curtir uma viagem”, e ouvindo os desabafos de Nick Cave, com total apatia”, e dizia mais, “som deprê é pra se ouvir no cemitério, sobre as lápides”, e eu dizia, “Pois eu ouço no escuro, lá no cantinho do quarto, com a porta trancada”, ele olhava ao redor, deitava olhares aos jovens a beberem e se drogarem, junto ao som estridente, com suas vidas sem sentido, que “em breve se aliariam aos seus carrascos, amanhã os adultos apáticos e resignados num sistema mercenário, o mesmo que prometem enfrentar”, e eu ouvia tudo com m vazio no estômago, no coração, sei lá!, aquela voz que acariciava e por isso me assustava, e por estar longe dos meus amigos, pois julgava serem meus amigos, é que o Henrique se aproximou e desabafou, “Pobres crianças!”, e eu observava as crianças, hoje rebeldes, soturnas, cheias de asperidades, ouvindo um som macabro, mas e daí? O que construíram?, é só uma fase, não é?, só um preâmbulo antes do “mundo adulto”, onde arrumam um emprego, um noivo ou uma noiva, e filhos e filhas e pagam honestamente os seus impostos, os “honrados cidadãos”, e o Henrique interrompia, lúgubre, “E se o Inferno se abrisse gora sob os seus pés? Quantos realmente se deixariam cair?”, e acusando a todos de não saberem “dar sentido” às suas existências, não criarem um “sentido”, pois apenas negam o “sentido” dos pais, dos adultos, dos professores, mas não criam um “novo sentido” e acabam voltando aos dogmas e moralismos que criticavam, e a adolescência acaba não passando de uma fantasia, uma “mera concessão dos adultos”, e eu já me sentia cúmplice ao seu lado, e contra os “meus amigos”!, e pensava que ele me consideraria uma amiga, mas para o Henrique a amizade é um “ideal”, muito improvável, e ele disse, sondando os meus olhos, “Não sou seu amigo. Sou seu confidente.”

E os muros do colégio militar se erguem enormes, verdadeiras muralhas e sufocam a gente, opressiva! E nem um vulto nas ruas, nem humano, nem canino, nem felino, um roedor talvez, e os vôos dos morcegos, tudo opressivo – e dá vontade de fugir, do jeito quando o Oto se enfurece, “Se quer ficar assim!”, e com aquele olhar, “Não tenho medo de cara feia!”, gritava, e eu gritei também, “Na sua casa não tem espelho, não? É a sua cara fechada é que me deixa assim. É o tempo todo assim. Depois sou eu quem irrita as pessoas! Você é que só de te olhar eu já tenho calafrios!”, e aí ele, com aquele sorriso irônico, “E eu sei que você adora isso!”. E ela se afasta, e continuou a limpeza pois havia combinado, ela e Oto, de limparem o local onde seria o ensaio do fim-de-semana, na garagem do Toni, e os outros chegariam à noite com os instrumentos, e ela marcou às três horas, pois às seis tudo já estaria limpo e seco, e ela esperou o Oto por meia hora, então começou a limpar, sozinha mesmo, e o Oto só chegou às quatro, sozinho, irritado, pois o Víctor é um “tratante”, um “enrolado”, e apontando defeitos no trabalho dela, e que “isso aqui é trabalho pra homem”, e saiu esguichando água em tudo e esfregando udo de novo, e ela reclama, “Pô! Você demora aparecer e vem atrapalhar o serviço!”, e ele com aqueles olhares de Grande Inquisidor, e ela se defendendo, “Por que está me olhando assim?”, “Já vejo qual é o seu trauma.”, “E o meu trauma é esse seu ar de juiz, é igual a minha mãe, do jeito que ela faz comigo! Aí você faz também!”, “E você nessa teimosia.”, “E você julga as pessoas assim, nem tenta entender! Apedreja para depois saber qual era o pecado!”, “Não vou discutir. Pode ficar aí falando até de noite.”, “É por isso que esse mundo é essa guerra! Ninguém procura compreender o outro!”, e ele em silêncio, e ela não terminou ainda, “Todo mundo se acha o tal, o dono da verdade, e o outro é o imbecil, o falso, o infiel! Aí cada um pega a sua arma e - droga! - para afirmar a si próprias, porque precisam desqualificar o outro, negar e esmagar!”, e aí ele disse, “Não tenho medo de cara feia!”

E eu fiquei com medo, e se ele me batesse?, igual a vizinha que apanha do marido, e todo mundo sabe e ela não faz nada, parece que gosta!, levando tapa na cara e andando nas ruas depois, eu é que teria vergonha!, e Raíssa também ficava, ainda mais é nervosa, toda revoltada, e quando soube então que o marido foi punido com o pagamento de uma cesta básica!, e assim mulher denuncia a agressão, mas o marido, crendo na impunidade, continuava aterrorizando a coitada, e Raíssa ficava perplexa, “Ora, se o castigo é uma cesta básica, então nada impede que a mulher apanhe todo fim de semana! O cara bate na mulher e depois entrega a sacola da feira!”

E assim, falando sozinha, cabisbaixa, Sônia Regina volta para casa, descendo a ladeira, ao longo da ferrovia, pensando no quanto é jovem, no quanto é bela, mas não há ninguém disposto a ouvir, para um minuto de afeto, não há ninguém a quem ela possa entregar tudo o que é, e comunicar tudo o que é, e revelar, enfim, o que sente e o que sofre, o que aprendeu e o que ensinou, revelar, enfim, tudo o que silenciou. E seus passos preenchem o vazio da rua, a ladeira onde vultos felinos escalam os muros rachados por ramagens, e um distante sonido indica o aproximar de um metrô, e as janelas às escuras revelam o avanço das horas e o sono dos povos. “A quem entregar tudo o que sou?

E Sônia nota o brilho das unhas, e a palidez dos dedos, e ela, em breve, vai fazer dezenove, e aí ela já envelhece, aquele corpo que produz tanta aflição em certo rapaz, e tanta possessividade em outro, e tanta inquietação em ainda outro, e ela está em seu ápice, daqui por diante só há o envelhecer, o fenecer, pois ela está no apogeu da “curva normal”, e depois do clímax, vem o “anti-clímax”, o “aftermath”, sim, depois da elevação vem a queda!

A queda, a decadência. Assim diz um amargurado Oto Marques. Que essa civilização a proclamar-se “cristã” ( e com que nojo ele diz essa palavra! ) é uma degeneração. E Sônia até pode compreender. Quando Oto ouvia as sonoridades opressivas, e ela ao seu lado, cabeça pesada, sob o lúgubre da voz, a lamentar o reino perdido dos deuses, do grande deus-caolho pregado na árvore do mundo, ladeado por dois corvos, e de como a cruz venceu a fúria dos guerreiros, humilhados por rezas e incensos, quando os cascos de seus cavalos pisavam as terra distantes, quando seus barcos imensos singravam os mares, assustando as aldeias dos litorais, deixando as praias em chamas, enquanto entoavam hinos ao grande deus do trovão e da guerra, em sua carruagem puxada por furiosos bodes, que trovejavam nas cúpulas do céu, nas tempestades que estremeciam os corações dos homens.

E o que Oto fazia? Parecia sofrer? E sofria por derrotas de mil anos atrás, quando as tribos do norte foram humilhadas diante da cruz, e os povos vikings se ajoelharem diante dos ícones da fraqueza e do remorso, sim, essas tribos de homens valorosos então humilhados diante de quimeras sanificadas de um deus-homem sacrificado, e o último baluarte caíra, desde Carlos, o Magno, que cristianizara os saxões pelo fogo e pela espada, enquanto seus cavaleiros faziam o sinal-da-cruz e atacavam e saqueavam e violentavam e queimavam em nome de um deus de amor e justiça, que enviou o seu filho como “boa-nova”, mas eis o fogo e o enxofre, espada coberta de sangue de inocentes, de mulheres e crianças, a deixarem seus corpos para os corvos e bestas do campo, enquanto os arqueiros julgavam pacificar os povos e os lanceiros julgam propagar o evangelho, quando seus olhos brilham no ardor do ódio, no delírio da cobiça, impelidos por uma sede de poder.

E as aldeias e suas crianças, e seus bardos e seus velhos e seus ferreiros e seus animais e seus guerreiros e seus sacerdotes e suas rendeiras e suas promessas de futuro, tudo agora pisado pelos cavalos com seus cavaleiros, arqueiros, lanceiros, escudeiros, com enormes cruzes bordadas, confiantes numa ousadia de domínio, antes de descerem ao calor abrasante dos desertos, com suas areias ondulantes, suas paisagens andarilhas, suas odaliscas cheias de mistérios, seus pastores de cabras, seus mascates em camelos, as cidades e suas mil e uma noites, antes de tudo isso, as excursões ao nórdico, o sangue no gelo, os santuários dos deuses em chamas, as sacerdotisas apunhaladas, as velhas lendas transmutadas em heresias, em fontes de blasfêmias, quando a Deusa de três faces foi apedrejada como puta, em praça pública, não mais Virgem-Mãe-Anciã, não Guerreira-Parteira-Curadeira, mas símbolo do lado escuro da luz, como se somente o deus do mediterrâneo agora dominasse tudo, auxiliado por uma puta sagrada, sendo virgem mesmo sendo mãe, pálida figura a usurpar o trono, agora a proclamarem Senhora e Nossa!, e tudo isso, em tom ressentido Oto dizia, e ela cuidava em ouvir, assustada quando ele abandona sua frieza em momentos, como então, em ardores de ira acariciada, há séculos adormecida em seu peito de derrotado bárbaro!

O vazio e o silêncio das ruas. O sobrado se destaca passos adiante. Talvez sua mãe Clara Selma ainda esteja acordada, ela sempre alerta, e não perderia uma oportunidade de torturar a filha, pois é quase meia-noite e a menina a vaguear por aí, “Não tem noção do perigo, não?”, lá vai ela para o quarto sob o bombardeio de sílabas, sem sequer um “boa-noite-minha-filha”, mas Sônia Regina continua, não atenta aos passos, pois que vagarosos a assustariam, mas a meditar no mistério do amor, de amar e ser amada, quando consideramos o amado um ser supremo, acima de tudo, acima de todos os outros, e procura a aceitação deste outro, cumprir as expectativas, desejando “estar à altura”, e se o amado corresponde à paixão, o apaixonado se eleva, e considera-se à partir da considerações que o amado dedica, e há um enlace, eu e o outro somos um, mas se há um rompimento, a separação!, abre-se um abismo entre o eu e o outro, e a perda da consideração do outro afeta a consideração do eu por si mesmo, “Se o outro não gota de mim, eu também não gosto.”, Sônia murmura, ao retirar a chave do bolso, com olhares acima do muro, no rasgo de cada janela, a perceber o ressonar da casa que dorme às escuras.
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(fim do Capítulo V)
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LdeM
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sábado, 16 de outubro de 2010

Insônia das Almas - Capítulo IV




Insônia das Almas

Capítulo IV

Voltando da Zona Sul, Sônia Regina vai oscilando em si e no balançar do ônibus. Desistindo de esperar a amiga Raíssa, e sentindo-se outra folha seca naquela praça, onde uma mãe e um pai embalam uma criança e tantos sonhos, e um jovem, possivelmente universitário, lê um romance, o qual Sônia descobriu ser alemão, isso é, o romance, quando ela se levanta e atravessa a praça em direção a ele, lendo abaixo do imenso HESSE, o título “O Lobo da Estepe”. Quem é ele? De onde veio? Para onde vai? Será que vou reencontrar esse cara algum dia? Onde? E ele – quando vai morrer? Como será? Por que?

Agora, nos espasmos e estertores do coletivo, quando atravessa o bairro e suas silhuetas de edifícios, ela, Sônia, um tanto pensativa, não pode deixar de estender olhares aos seus companheiros de viagem, ali, sentada sozinha, em banco duplo, tendo, diante de si, um casal de idosos, acima dos sessenta, cabelos brancos ou grisalhos, pele de pergaminho, o espelho da finitude, mas em comportamento um tanto juvenil, iguais a jovens enamorados. O homem balbucia anedotas ou casos picantes, em gestos, em risos, com certo escândalo, e a mulher, sendo mais moderada, “Ora, mais compostura, meu velho. Estão nos olhando!”, mas seduzida ao clima dele.

Lá fora, as paisagens, em sua dicotomia, palavra erudita, que ela aprendera na aula de Biologia, mas com um sinônimo de contraste, de um lado, precisamente à sua direita, o bairro residencial classe média, do qual o ônibus emergira, e do outro lado, à sua esquerda, a “comunidade em risco social”, ou, vulgarmente, “favela”, tendo como ponte, transposição entre o fosso e o abismo, uma simples passarela. E o casal a incomoda, a velhice é outra máscara, e pior ainda, velhos agindo como se fossem jovens, “As coisas feias não merecem existir”, ela pensa, abraçando o seu caderno de desenhos, disposta seriamente a reduzi-los à fragmentos.

Sônia levanta-se, e resolve ir em pé, mais ao fundo, sem se expor aos olhares inquisidores dos demais passageiros, o que muito a intimidade, a sentir calafrios como se a vigiassem. Ao seu lado, uma garota atrai sua atenção, quando abre uma bolsa com flores, deixando leve aroma invadir o ambiente, e entrega-se a leitura de um livrinho, iguais aqueles de catecismo, aquele livretos com orações e preces já prontas, pré-cozidas, e tenta meditar, balbuciando sílabas, e Sônia sabe que a garota sofre com o ambiente do ônibus, igualzinho a ela mesma, que detesta embarcar em coletivos, se pudesse ela andava a pé, ou melhor, nem saía de casa, mas a garota, aquela ali com o tal “bonsai”, é fraca e recorre assim à auto-ajuda, ao misticismo, pois sem isso, possivelmente, a garota se desesperaria, não é do tipo Sônia, assim sobrevivendo sem essa de pensamento positivo ou coisa do tipo, simplesmente se abriga dentro de si mesma.

Então o ônibus emparelha com um ônibus e Sônia Regina tem a visão panorâmica do interior do outro coletivo, da parte traseira até o motorista, onde um jovem no penúltimo assento, sozinho, fones no ouvido, boné caído meio de lado na cabeça; adiante um senhor idoso com chapéu de cowboy; adiante duas garotas de pé, talvez se preparam para descer, e trocam palavras, e mascam chiclete; adiante uma mulher, de meia idade, tenta ler um livro, talvez um romance; do outro lado, um homem engravatado, terno e bem sério, a observa, quando ela vira a página; adiante duas senhoras idosas, sentadas lado a lado, conversam, talvez sobre a juventude de ambas, então a cobradora, de costas, junto a roleta, está olhando o homem de terno?, então, adiante, uma garota cochila, com a orelha esmagada contra o vidro da janela; então, o motorista, com seu olhar fixo, sonâmbulo, entediado – DELE DEPENDEM AS VIDAS DE TODOS AQUELES! O rapaz com os fones, o senhor idoso, as duas garotas, as duas velhas, a mulher com o livro, o elegante de terno, todos, todos, eles dependem da atenção e do profissionalismo daquele motorista, e caso ele se permita cochilar – então é o fim!

E é assim que Sônia toma consciência de que sua situação é a mesma! E ela quer agora vislumbrar o vulto do motorista, muito ocupado, por sinal, ao encarar a maré de faróis, numa frenagem brusca, com alguém lá no fundão a gritar, “Desgraçado! Não é a sua mãe que 'tá aqui!”, e ela olha os passageiros, perdidos em indiferença e hostilidade, e ela olha através da janela, o São Pedro é aquele bairro ali à esquerda, e ela percebe em si um desejo louco de sair dali, saltar do coletivo, e percebe seu braço erguer-se e tensionar o cordão que dispara o sinal, e sabe que é inútil, que vai andar à toa, mas paciência tem limite, e salta na avenida, ainda distante, uns seis longos quarteirões, da Contorno, e daí?

Área mais arborizada, gemidos do vento entre os galhos, uma cascata de folhas, a primavera se inicia com frio e vento, lá em cima as estrelas, o traçado do escorpião, e mais uma vez Sônia se lembra da noite encima do telhado, ao lado do Stevam, a observar as estrelas que ela julgava eternas, até que o TH, não, TH o quê!, o Henrique, naquela visita, afagando os gatos do Oto, a revelar que tais estrelas, ele dizia “astros”, estão tão distantes que talvez nem estejam mais lá, somente a luz que emitiram viaja eras e eras até os nosso olhos. “Parece eterno? É mera aparência...”

O Henrique que surgira das sombras, diante do barzinho do Santa Efigênia, onde comentava com o Oto o eclipse de 11 de agosto, e as ameaças apocalípticas, mas já estamos em setembro e o mundo não acabou – ainda não. O eclipse do sol do Canadá à Índia, as profecias de derrocada planetária, as rezas e mantras – por que? Ah, o medo do fim! Do não mais existir! Mais medo da morte do que amor à vida! Henrique, com essas melancolias, a discutir com o Stevam sobre onde era o centro da “alma” : o cérebro ou o cerebelo? Um outro dizia que era na “medula espinhal” e só faltou o Elias, o gordo, para trazer seus livros de esoterismo, mas logo o outro falava sobre o filme “A Cidade das Sombras”, e fiquei interessada, eu que me assustei com o filme, verdade! Os ETs tiravam o “Eu” das cobaias, e procuravam a essência das pessoas, enquanto observam os comportamentos das cobaias a cada mudança de situação e posição social: um cara dormia médico e acordava policial! Seria a mesma pessoa?

Mas por que me lembrei do Henrique? Ah, o lance do eclipse, e o fim das estrelas – que as estrelas se perdiam na imensidão, talvez nem existissem mais, afundadas na escuridão do espaço, onde a luz era exceção, um milagre, “estamos rodeados pela escuridão”, o Henrique dizia, do jeito sombrio dele, que dava arrepios! Mas, arrepios, arrepios, eram as “aventuras” do Stevam com o louco do Germano, louco de pedra, mesmo!, e não me admira!

No telhado, Stevam deitado, agora, pois Sônia se lembrara de Germano, agora em narrativas de certa aventura ao lado de Germano e seus discípulos, antes qque ela se envolvesse... Entediados de ouvirem sonoridades apocalípticas e ásperas sinfonias, Ariel e Lino, os adeptos, concordaram com Germano, o Mestre, em um passeio no bosque, e Germano pedido lá na zona norte, pros lados do Jockey, guiaria os celebrantes trilhas adentro, rumo ao bosque, e Ariel gritava, naquela noite de lua cheia, na escuridão aliviada por um luar a furar a cortina de névoa, e Ariel por pouco não pisa num besouro, espécime rara, mas Germano elevara a voz, imperativo, que aquela pequena vida era parte integrante de Gaia e outros pensamentos elevados e ecológicos, cheios de espiritualidade Wicca, que era uma espécie de novo paganismo, ou ressurreição do velho e arcaico, não havia entendimento sobre o assunto, e ninguém discutiu, e Stevam apoiou Germano, apesar de nada entender, mas era mais contra aquela pose de Ariel, de brutal violador de donzelas, enquanto Lino silenciava, pouco se importando, um inseto a mais ou a menos, grande diferença!, em sua pose de “estou-acima-destas-questões”, como bom materialista que é, apesar de toda essa pose de “filho da Grande Besta”, a viver o macabro enquanto divertimento, diante dos filmes B na madrugada, quando não flagrado assistindo “Pânico/Scream”, com a pobre-jovenzinha, a assustada Neve Campbell.

E seguiram até uma lagoa, coisa modesta, dentro de uma fazenda, evitando os cães raivosos, e uivaram para a lua e tiraram suas roupas, ao que Stevam ofereceu resistência, afinal não sabe nadar, e eles pularam na água e entoavam hinos que talvez julgassem pagãos, e se degladiaram, e se golpearam, e se esfregaram, e Stevam junto a margem, num silêncio pesaroso, temendo a aparição de alguém, e, pior!, armado de uma espingarda, e então eles saíram das águas, e passaram a correr em ladainhas no que talvez julgassem latim, sob uma alegado feitiço da lua, à espera do Grande Deus Cornudo, e depois ao redor de Germano, de braços erguidos, e se inclinavam, e cada um, a sua vez, depositou um fervoroso e devotado beijo em seu raseiro pálido de Mestre, OSCULUM OBSCENUM ! e depois passaram a procurar Stevam, a poucos metros, no escuro, vendo tudo, recostado no tronco de uma árvore a muito tempo morta.

E assim Stevam narrou o inusitado de como se recusou a prestar a homenagem ao Mestre e não fora aceito no “inner circle”, como eles diziam. E Sônia, de boca aberta, já pensava que ele daria um ótimo contista, “Já pensou em ser escritor, Stevam?”, e ele sorriu, e agora ela sorria, diante da praça, lá no outro lado da avenida, andando lentamente, afinal nenhum compromisso, ninguém a preocupar-se se ela estava viva ou não, afinal “na vida perdia muito tempo com pessoas que não se importam se estou vivo ou morto”, como cantava o Morrissey, e em passos sem pressa, diante da arquitetura gótica-urbana dos casarões antigos e adiante os arranha-céus, arranha-noite, ela a procura de uma lanchonete, sim, precisa de água, eis uma luz a cair na calçada, janelas iluminadas, é um restaurante. Sobe a escada, surge um garçom, e ela apenas deseja uma garrafa de água mineral, ele vem de um corredor lateral, e assim que ela diz “Boa Noite!”, ele estende a mão rapidamente, e alcança seu ombro, na base do pescoço, “Uma aranha aí, moça!”, e uma aranha, pequena e negra, cai ao chão e é esmagada pelo sapato lustrado do garçom. E Sônia ali a sorrir constrangida, toda envergonhada por mostrar-se desconfiada do gesto, e passa a nota para pagar a água e sai com todo o silêncio possível.

Gritar e onde estão os deuses? Deus ou o Diabo, quem atenderia? Aquela poeta europeu que Henrique elogiava tanto, numa elegia, “Se eu gritasse agora que anjo ouviria?” Rilke? Ah, sim! Andar pelas ruas e encarar esses vultos que de perto apresentam feições humanas, aquele ali posso segui-lo com o olhar, e imaginar quem seja, o que confere sentido a sua existência, será que algum dia o conhecerei? Trocaremos algumas palavras? Compartilharemos experiências? Seremos corteses ou seremos hostis? Em cooperação ou em competição?

Imagine que sou rica, e tenho consciência de que tenho o que muitos não tem, logo devo agradecer, não? A Deus, ou a quem quer que seja, agradecer semelhante dádiva, e logo agradeço, não importa uma enorme maioria que pouco, ou nada, possuem, assim agradeço por estar bem, e pouco me interessa se os outros apenas sobrevivem, mas se, por outro lado, se não agradeço, sou ainda mais mesquinha, por ser mal-agradecida, por não reconhecer que tenho, enquanto muitos não, e reconhecer que sou merecedora, abençoada pela Providência, e estou num impasse, agradeço ou não agradeço? Agradeço e sou culpada, não agradeço e sou culpada! Em todo caso a consciência de que tenho e os outros não! Em todo caso se sou consciente há a culpa!

Andando e falando, em resmungos, em colóquios íntimos, Sônia Regina percorre a Avenida, sob a penumbra dos galhos trêmulos, sob um vento onipresente, num redemoinho d folhas secas, pensando em cenas de outrora, cruzando com olhares indiferentes, ausentes, inclementes, dos transeuntes, sob o riso de mocinhas que se apressam às luzes do novo shopping, que por andarem em bandos, se sentem mais fortes, e atiram risadas aos que julgam diferentes, deixando à Sônia a incerteza de seus passos, se foge da ignorância ou se para esta se encaminha, no tropeçar de pensamentos, a gaguejar em sua língua cativa, a implorar um tempo ao ódio, pois odiar mais ela não pudia, ela tão fiel a si mesma, se é que tal “si mesmo” existe, a suportar estes olhares, estes risinhos de desprezo, ora , assim, desprezar para não precisar dar ouvidos, desprezar porque desisto de tentar compreender, sabendo que compreender não é aceitar, mas um tentar mudar, pois se compreendêssemos uns aos outros não haveria fingimentos, nem meias palavras, havendo um estender de mãos, mas ficar guardando mágoa, Aguentando essas idiotas rindo da minha cara, aí é demais!

Mas ela insistia, passos sem pressa, sob as sombras, a passos inseguros, mas em esforços de parecer segura, esbelta e completa, mas não!, surgia uma pedra, um buraco, uma sarjeta, um tropeçar e um ressoar de risos, como se o mundo todo não passasse de uma única e altissonante gargalhada! O mundo todo rindo, caçoando dela, o mundo a observar, a julgar, o mundo todo erguendo muros, recolhendo pedras para solene apedrejamento, enquanto ela, a sem rumos, a sem-lugar-no-mundo, segue vacilando, jogando a culpa de volta, sem sequer dispor-se a ouvir sua versão dos fatos, sem que ela saiba exatamente quem ergue acusações ou mesmo dos termos de tais acusações, condenada por um mundo que é promotor, juri e juiz, Às vezes, ela pensa, Sou igual, assim tipo o professor de filosofia, sempre hesitando, incerto das palavras, mergulhado em pensamentos, a gaguejar frases que nunca conclui, e ela não entende o motivo de tanta insegurança, mas é por pensar demais, pensar em abstrato, a escorregar nas esburacadas calçadas do Real, onde os padrões de linguagem e conduta parecem instáveis, incertos, meros joguinhos, sempre nebulosos e vazios.

As pessoas que andam tão seguras de si mesmas são amparadas por todo um pensamento pronto, comum e aceitável, que transmitem a superfície calma de um lago, onde apenas vez ou outra uma brisa ou uma ave aquática vem perturbar em arrepios e singelas ondas, são pessoas que caminham seguras por trilhas já comuns, a constarem nos mapas dos guias turísticos, sabendo onde pisar e quando, como falar e de que forma, não se preocupam muito, não pensam, somente em ação, e que elegância! Que eficiência! Em gestos prontos, palavras adequadas, mas, oh, meus pobres botões!, quão desastrados, quão deslocados são os que pensam! A não encontrarem a palavra, a expressão certa, e adequada, a transmitirem seus turbilhões de idéias, não sabendo como se adaptar as regras do jogo, sem os trajes adequados, incapazes de usarem a etiqueta, então rejeitados apesar de toda a novidade de seus gestos, mas temendo não ser engrenagem que se encaixe perfeita e eficientemente ao maquinário, e temendo ser a qualquer momento descartada.

Por que, meu atribulados botões, sou tão insegura, por que dou tanta importância ao olhar dos outros? Por que quero que me respeitem, me levem à sério? Por que não suporto o desprezo? E por que não desprezo, como as outras fazem? Quando um homem na rua acena ou sussurra que daria tudo para lamber a minha bunda, por que eu não consigo responder, ou rir na cara dele? Será que é por que julgo todos eles uns pobres cegos ignorantes? E ainda assim me importo com o que pensam ou dizem? Por que “deixo que suas mentes ridículas aumentem a minha agonia”?, não diz assim aquela canção do Anathema, que ouço em prantos? Eles, os pobres cegos ignorantes, não posso culpá-los por não me compreenderem, pois eu mesma não me compreendo!

Lembrem-se que só há vagas para os melhores!”, dizem os outdoors, dizem as apostilas, dizem os professores, como se o lance é ser “gerado para ganhar”, pisar cabeças, dominar e conquistar, sempre no pódio em primeiro lugar!, pois dizem que o mundo tem uma ORDEM, assim em garrafais, ORDNUNG!, gritava o Oto, com o Mein Kampf debaixo do braço, como se fosse Bíblia, mas tal ORDEM parece não passar de um imenso “Salve-se quem puder!” onde as poucas oportunidades são disputadas entre os enriquecidos e os desonestos, então por que nos ensinam desde criança a pensar em solidariedade, honestidade, não mentir, não ser invejoso, se os adultos são tudo isso e fazem o que vivem reprovando? Se formos seguir tais recomendações, vamos é morrer à míngua num mundo de competição, ganância e mentira, onde não se sabe onde há hipocrisia pior, essa de criar o jovem com ideais sublimes e depois jogar o pobre no mundo-cão, onde será destroçado junto com os seus altos ideais, sob os golpes dos adultos, aqueles mesmos que falavam em “amor ao próximo”, “justiça divina”, “igualdade de oportunidades”, tudo uma vergonhosa coleção de mentiras!, Por que não nos ensinam, tal faziam os pais da Raíssa, já dizendo “bem-vinda ao mundo cruel”?, de uma vez! que o mundo é essa desordem, essa flor da sarjeta, esse lamaçal de dejetos, esse inferno de desejos, no lugar de encherem as nossas mentes juvenis com fábulas e contos-de-fadas! Pois não temos a oportunidade de sermos bons e se ainda tentamos logo somos esmagados pelo fardo da corrupção!

Nossa espécie é um parasita no corpo de Gaia”, dizia o Germano, todo sábio, em meditações, sem saber que a época dos hippies já passara, todo cheio de inquietações de pensares naturalistas, zombando dos ecologistas, “que nãopassavam de outros porcos burocratas”, e ela digerindo toda aquela sabedoria daquele homem alisando o esboço de barba, em sua imponência de Mestre em sua solidão de heremita, abordando o “complexo dos jovens dos países desenvolvidos, onde cada um polui o ambiente, a consumir inumeráveis produtos, no que acaba por equivaler a trinta jovens dos países subdesenvolvidos, e assim se consumíssemos tanto quanto eles, lá do Primeiro Mundo, o mundo inteiro já teria se tornado uma imensa lata de lixo, pois vivemos, insistimos em viver, e assim o mundo vai se poluindo” e ele já até defendia uma extinção da “pulga humana” e que a humanidade desistisse da insanidade que era aquilo de procriação!

E por que agora a lembrar-se de Germano, e seu ódio? Ali diante da fachada daquela igreja, atrás de suas grades, a subsistir como uma testemunha de gritos silenciados e penitências indignas, a lembrar-se daquela fachada do castelo do Conde no “Drácula de Bram Stocker”, filme do Coppola que ela assistira ao lado do Germano, em seu sítio, aliás da família dele, lá na região norte, em seus braços, sentindo o seu respirar quente em sua orelha direita, tendo calafrios quando o Conde Drácula mordia um pescocinho e Germano a apertava por trás só para ouvir seus gritinhos, noite em que acordou alta madrugada, a virar-se na cama, seminua, sentindo um frio onde deveria estar o corpo quente do Germano, assim tateando à sua procura, mas o vazio na cama acaba por despertá-la, e ainda meio sonâmbula, entorpecida pelos orgasmos, ela ouve a voz pesada dele, lá na sala. Levanta-se, tenta entender, Ligando pra mulher? Disc-sexo? Apoio à vida? CVV?, vai lentamente até a porta, o corredor às escuras, luz somente lá na cozinha, com a sala em penumbra, e ele ao telefone, em fala pausada, sombrio, a lamentar algo, mas não estava tão fogoso na cama, agarrando seus cabelos, quase mastigando seus mamilos, com estocadas a rasgarem dentro?, e não parece ser coisa com mulher, apesar de também não parece ser com homem, pois Germano não conversa tão abertamente assim com ninguém que ela conheça, muito menos com os ditos amigos, seja o Victor, ou aquele Ariel e Lino, o magrelo Marcelino, bolas!, não, não falaria assim, ou ouvindo em silencio atento, um interlocutor a despejar considerações e, pior!, conselhos, quando Germano é só megalomania, tendo sempre a última palavra, agarrando todas as mocinhas, mocinhas iguais a ela, uma trouxa!, uma otária de marca!, que se deixa seduzir, enquanto ele conversa noite adentro com um ser desconhecido, ouvindo um som deprê, cheio de violinos e sopranos, onde o vocalista macabro se revela “o poeta que eleva odes à morte”, e ela sabe que ele a notou, mas ele nem se importa, a dizer que “um dia eu senti que a minha única companheira é a solidão”, e ela precisa concordar com ele, pois ela vai embora, mas deixemos para amanhã, ela agora volta à cama e adormece, embalada pela tristeza dos violinos.

A água desce fria, e escorre em seus seios, quando Sônia pressente um leve engasgo, ali em pé diante da fachada do solene gótico-urbano, e vem um arrepio de frieza e desamparo, como sentia tantas vezes quando ligava para o Germano, depois de resistir a contar seus dramas, os acontecimentos de seu dia tedioso, mas enfim reclinando-se ao imperativo do telefone, e ele, como sempre, indiferente às inquietações dela, por exemplo, quando começa a falar de música, “O álbum Sin/Pecado do Moonspell tem fortíssima influência de The Sisters of Mercy, com um vocal denso, profundo, depressivo, declamatório, com bases eletrônicas, e mais, podemos até dizer que o teclado do Sisters inspirou certamente o Anathema, no álbum Alternative 4, com teclados ora clássico, ora barroco, ora sintetizado, bem deprê, com passagens melódicas e asperidades nos vocais, tudo sob a profundidade do baixo opressivo, ou solos de piano, assim trinados de rouxinóis na beira de uma cascata estrondosa” e aproxima o telefone das caixas de som e ela ouve por instantes a doce melodia, enquanto alguém promete tirar a “segunda pele”.

A questão é: o que faz com que ela, a pobrezinha Sônia Regina Dalmas, busque aquele Germano? O que ela vê nele? Não mais que um egoísta, egocêntrico o suficiente para não compreender, para nem tentar entender, assim ela toda confissão ao telefone, e ele aumentando o volume do som, a julgar certamente que não tem obrigação de entendê-la, afinal não são namorados, não têm compromisso, ela aparece vez ou outra, “Dias chuvosos são perfeitos para se ouvir música triste, numa cripta úmida”, ela dizia, e lembra dos dias de chuva, passados no sítio do Germano, ouvindo música lúgubre e as gotas atingindo a vidraça, a água escorrendo, o céu cinzento, o cheiro de terra úmida, as gotas caindo lá dos galhos, ou certo crepúsculo, ouvindo música medieval, nas mentes desfilam cavaleiros, cruzados de faces pouco penitentes, com suas armaduras a reluzirem ao sol poente, em marcha para libertarem Lisboa das garras dos mouros, e vai escurecendo e estrelas surgem, e ela insiste em compartilhar essas imagens, os marinheiros cansados de tanto ver água, cruzando o oceano, descendo nas costas brasileiras, e mocinhas orfãs enviadas de terras lusitanas para casarem-se com os fidalgos locais e disseminarem descendência branca, na origem de todo um povo, inclusive ela e ele, os dois ali juntos, filhos da longa travessia, tal ela lera num livro chamado “Desmundo”.

Talvez o que ela procure em Germano é a segurança, de uma mente que observa, mas detesta classificações, igual a ela mesma, ambos incapazes de suportarem os colecionadores, os calibãs, os catalogadores, os rotuladores, os funcionários, os burocratas, os classificadores, que agridem a reduzida estética do mundo com uma obsessiva frieza cientifica, ofertando uma estética artificial de mundo artificial, enquanto as flores e as borboletas e as aves e seus cantos são belezas para os olhos e ouvidos, numa beleza gratuita, não para serem arrancadas, capturadas, ressecadas, dissecadas, coladas em herbários ou espetadas em isopor com alfinetes entomológicos, mas ela sabe mesmo assim que vai abandoná-lo, que não vai ficar entregue aos seus caprichos, serva disposta a agradá-lo, e corda antes da aurora, dormira pesado após ouvi-lo ao telefone, agora já vestindo a calça jeans e atenta ao ar adormecido dele, ela vai se vestindo, não quer acordar o anfitrião, mas ele não dorme, apenas deixa-se fingir, e logo a voz dele soa forte e clara, “indo embora sem se despedir?”, “Preciso ir, já vai amanhecer.”, e foi embora e não voltou mais.

As buzinas assustam Sônia Regina quando ela se encontra na foz da Avenida que deságua na Contorno e seu olhar gira em busca de apoio, e nenhum conhecido está ali na faixa de pedestre, e nenhuma face amiga está ali na casa de vinhos, e nenhuma mão se estende quando ela atravessa ao sinal vermelho, nenhum carinho a espera do outro lado da rua. Ela que frequentava tanto aquela babilônia noturna de cores piscantes e anúncios em hipnoses coletivas de “beba isso” e “compre aqui”, ela que já devia estar acostumada!, não pode evitar arrepios de terror, pois ela sabe intimamente que pode se comprar muitas coisas, mas nunca se poderá comprar um amigo.
Percebe-se na praça da Savassi, onde se reúnem os desgarrados da noite, vultos noturnos que flutuam nas ruas sob as luzes difusas, com pupilas cansadas cheias de luzes artificiais e sonhos sem futuro, entregues, com suas almas juvenis já maculadas, aos desvarios dos gestos inúteis e das palavras vazias, lugar muito frequentado pelos amigos do Stevam Lucena.

Mas, da última vez, não encontrou o Stevam, naquele universo paralelo junto ao borbulhar do transito, e sim o Víctor todo soturno, reclamando atenção, do tipo “ninguém se importa, não é?” e ela se sentou junto dele, mesmo querendo ir embora e gente saindo, saindo do serviço, gente saindo para a noite, gente indo para as compras, outros para as labutas noturnas, alunos fugindo às aulas, garotas oferecendo seus corpos, e um som, de um carro de portas abertas, flutuava até a Praça e era uma banda irlandesa, voz feminina envolvente, com certa estridência e certa tristeza, narrando idílios, dramas e fracassos, à la Joni Mitchell, com narrativas de tom Lou Reed, “Percebe o que ela diz? Nada a ver com o que vivemos , não é?”, ela diz, mas Víctor desconhece o idioma britânico e está mais preocupado com o solo de guitarra, daquelas baladas hard rock dos anos 80, dos programas românticos-saudosistas nas madrugadas, “É como se começássemos a recitar poesia árcade meio ao trânsito enfurecido, ou lêssemos as baladas de Ossian na avenida central, ou declamássemos estâncias de Shelley meio a estridência de buzinas”, ela ainda insiste, quer ser compreendida, mas Víctor saberia algo de Ossian ou Shelley?, certamente o Henrique, mas o Víctor?!, e a voz triste canta seus fracassos e frustrações, e jovens aqui nos trópicos ouvem e não compreendem meio a aspereza urbana, longe das campinas irlandesas, longe das sagas célticas, desconhecendo quem tenha sido Yeats, longe de paisagens de filmes épicos, lugares onde jamais ela pisará, mas onde uma jovem lamenta o sangue derramado de seus ancestrais.

Mas agora nem Víctor nem Stevam nem qualquer vulto conhecido ali está, e Sônia Regina continua a se refugiar em lembranças, ainda a se indagar seriamente: por que saíra de casa? Para andar e andar e não encontrar? Sentada sob o brilho néon das noites urbanas, estou aqui, a observar o menino com o skate, o menino com vestes funéreas, a menina com olhos egípcios, e a pensar que o mundo é mesmo ridículo, não “mau” como eu pensava, entregue ao Demo e seus asseclas, pois isso mamãe dizia, eu sofria, como ser feliz se o mundo é só crueldade?, mas meu ódio matou o Cristo em mim, aceitaria o mundo mau, tornaria-me “um-com-o-mundo” para ver se assim eu me sentia em casa, assim aliando-me com o Mal estaria aliada ao mundo, teria então prazer em viver aqui, mas nada disso aconteceu, tudo quimera, isso de “mau”, “bom”, tudo fantasia, é cada um por si, não há potestades, exceto os banqueiros e os que “algarismam os amanhãs” como diz o Henrique, folheando antologias do modernista paulista, e o mundo é uma selva tanto para os hedonistas quanto para os cristãos, tanto para os satanistas quanto para os ateus!

O Henrique ainda que ressentido mas com razão pois o pai não sai do pé do cara que “todos aqueles que despertam, com um mínimo de consciência, sofrem aqui; só aqueles adormecidos no mundo, e que nunca acordam, vivem em conformidade, tal o diretor naquele filme do Truman, “Aceitamos como natural o mundo onde vivemos”, e quem era Truman? Nada mais que um homem com vocação para navegador, mas preso, sem saber, numa redoma de vidro, vigiado por câmeras de TV, mas se Truman fosse um cara acomodado, feliz com o que lhe dessem, jamais descobriria a farsa toda.

“Não é que me percebo dizendo o mesmo que Neo para Morpheus, 'Não gosto de pensar que não tenho controle sobre a minha vida', e a pensar se há algum destino, e se misericordioso...”, ela dizia ao pensativo Henrique, ocupado em acariciar os gatos, quando comentou o filme “Matrix”, coisa gótica e industrial, terror tecnológico, que ela assistira recentemente, ou outro filme qualquer, “Será que estamos representando uma peça qualquer para alguém? Para os deuses talvez! Ou pra os anjos? Eu vi um filme, um tempo atrás, um anjo rebelde (o próprio Gabriel??), lá no alto de um prédio, a observar lá embaixo, num beco-sem-saída, um jovem casal, a menina ao volante do carro, e o cara ao lado, prontos para se matarem, e o anjo contemplando o jovem casal de suicidas, será que os anjos se prestam a isso? Não têm mais o que fazer? Seríamos atores ridículos num palco ainda mais ridículo? Olha, pode a coisa toda ser um filme, ou atuamos num sonho na mente divina, mas não! Acho que Deus já se esqueceu de nós..”

O morcego, em círculos, voeja em torno da árvore. Os galhos filtram um luar despedaçado – lu a em estilhaços. E cada um com sua diversão. As meninas de mãos dadas. A ruiva, gorda, com a mochila, e gestos de homem. A moreninha pequena de tênis de cano longo. De coturnos pesados me lembra a Poliana. Com suas roupas de velório, e discman no bolso do vestido da era vitoriana, diga-se, com as bandas mais moderninhas, sem sequer suspeitar que um dia existiu um Joy Division ou um Sister of Mercy, nessas coreografias de casais apaixonados, por que nos apaixonamos?, a Carol nos braços do Oto, e a Poliana, o que tem a Poliana?, nem conheceu o Oto, lá no mundo dela. Shows nas noitadas e bandas obscuras, que só ela conhecia. Quando a banda fica famosa – ela renega. Nisso até me faz lembrar o Oto. No mundo lá dele. Quer ser o único, o diferente, o Eleito. Com seu sobretudo e cabelos rubros – um corvo em chamas. Hilárico. Ele se julga sombrio, mas não passa de uma peça cômica. Onde o limite entre o trágico e o cômico? O drama e o dramalhão? O sacro e o profano?

O que sobrou para eles? Ídolos de videoclipes, músicos com poses de vampiros, frankensteins com moda pop, e pareço o Henrique, que está distante séculos disso tudo, com a amargura lá dele, outro que não entendo – mas quem entende alguém? Todo mundo numa luta, num confronto só. Com suas crenças, o bem e o mal, e para haver uma luta tem de ter o bem e o mal? E o Oto é culpado? Ele que já sofreu o inferno lá dele! Perdeu o pai, precisou suportar o padrasto, conheço bem de perto o inferno!, de levar lá uns tapas – tapas?, o padrasto não quebrou um cabo de vassoura nas costas dele?!, e depois o padrasto deixou a mãe, não é?, acho que o Oto atirou o carrasco contra a porta da cozinha, a cabeça contra o vidro, e sangue e estilhaço pra todo lado, porque o padrasto chegou bêbado e pesou a mão na cara do Oto, que não represou mais o ódio lá dele e “cara, não encosta a mão em mim não!” e desceu a pancada! E assim o Oto, que culpa ele tem? Ele é mau? Ele que me bateu! Eu até perdoei. Não o tapa, isso não! Mas a condição dele, do Oto. Afinal, o que ele sofria! O que fazia? Retribuía a agressão! Em mim, que nem culpa tenho dos lances na casa dele! Oto que não sabe ser gentil, nunca se esforça por compreender – viveu a vida num inferno.

Ah, e a outra garota, junto a garota que lembra a Poliana, assim tão íntimas, a outra garota, de pernas abertas igual homem, e se abraçam, velhas amigas?, quase cúmplices, e sei que logo se beijam. Garotas que se gostam. Não suportam os caras – e se beijam. Num abraço, juntas, em carícias leves – longe da brutalidade dos homens! Sem aquela pressa dos caras, com as mãos nos peitos da gente – e elas se beijam. A Carol num jeito assim – do jeito da que beija mais. Por que a Carol? Ah, daquela vez! Quase a gente nuns amassos! Faltava ela rasgar a minha calcinha com os dentes! Quase! E se eu deixasse? Como será transar com uma mulher? Namorar uma mulher – mansamente. Os lábios e as mãos dela entre as minhas pernas... Ah, essa praça cheia de putaria! E nem um carinha aqui pra mim! Só esses meninos de quatorze, quinze, matando aula. Até meninas juntas e eu sozinha! Ah, elas apertam os peitos, alisam as barrigas, a que tem jeito da Poliana senta-se no colo da outra, a com o jeito da Carol, e são abrigo uma para a outra. A ruiva com jeito de homem, mas com voz derramada de mulher, em exigências, quer ser o que não é.

Cada um com sua diversão. Aos beijos. Em quedas. Os skates em disputa de manobras suicidas de braços quebrados narizes em sangue pele esfolada e os ciclistas caindo de suas duas rodas sem controle nos pneus contra o asfalto no obstáculo do meio-fio em quedas. A ruiva, gorda, com gestos de homem. A moreninha, submissa. Os assobios. E dois mocinhas trocam olhares, e logo carícias, com suas calças jeans justinhas. Cada um se diverte como pode.

E um rapaz lê um livro na praça, se deixando sepultar por folhas em queda, e outro rapaz rabisca versos, escreve poemas, e os meninos com suas bicicletas, seus potros enfurecidos de duas rodas, assim cavaleiros com seus corcéis sem bridas, com patas de borracha, de corpo metálico, quem será o mais ousado, contra os outros – e contra si mesmo! Um rasga a bermuda no cimento, o outro golpeia o braço contra um galho, ainda um outro vai quebrar o nariz num poste. Amam o perigo, a queda possível – e uma possível fratura. Tudo é adrenalina. Nada mais.

Outro acaba de cair. A menina ri nos braços da outra. Os meninos trocam beijos, se sentem observados. Temem o que? Que alguém atire pedras? Acabam por se afastar. E que tal uma troca de casais? A menina-mais-menino com o menino-mais-menina! Que química! Cada um com sua diversão. Por que sexo precisa ser feito à dois? Deixar o corpo se divertir! Seduzir, usar o outro... somos objetos? Deixar o corpo por conta própria? E a alma? A alma vai para onde?

(fim do Capítulo IV)
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LdeM
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