sábado, 11 de setembro de 2010

final do cap. 6 da Parte 1 (Náuseas de Estudante)





Julho/2001

G-8 em Gênova, Itália. Autoridades esperam cem mil manifestantes.

Multidões cinematográficas.

Batalha campal. Confronto com as tropas de choque, os carabineri. Grupos anarquistas em táticas de protesto midiático forçam os policiais a defenderem se atacando.

Carlo Giuliani, máscara, rolo de fita adesiva no braço, é atingido no rosto. Tem vinte e três anos e em seguida será atropelado. Ao redor do seu corpo a exótica geografia de um lago vermelho.

Polícia genovesa continua alegando auto-defesa.





HD e os poentes derramados nas vidraças do apartamento. Ali mergulhado nas sonoridades viajantes de bandas psicodélicas, “Soon oh soon the light...”, num regresso a uma imaginária década de 70, ao lado dos rebeldes de longos cabelos, ao lado dos manifestos pacificistas, ao lado dos filhos dos sobreviventes da Segunda Grande Guerra.

Poentes que se deixavam ficar em cores ora douradas ora esmaecidas nas vidraças, mais ali dentro do que lá fora, quando ele, inclinado sobre a escrivaninha, lia aqueles romances em calhamaços de folhas já amarelas, onde gritos e sangue habitavam as entrelinhas, entre os símbolos tipográficos, como uma imagem atrás do espelho, ressoando e gotejando.

HD e sua vida tediosa, debruçado sobre as narrativas heróicas da Segunda Grande Guerra com seus avanços e retiradas, com os armamentos e os massacres, com a técnica e a histeria, onde a batalha se apresentava à porta e aposentos dos pobres civis, reféns dos exércitos ensandecidos, nos quais os próprios generais se perdiam em suas neuroses, com seus combatentes ao front, afundados em trincheiras ou massacrados em bombardeios ou esmagados por fileiras de tanques blindados e tudo tão insano quanto seus líderes, seus duce, seus fuehrer, seus generalíssimos, seus secretários-gerais, seus primeiro-ministros, seus estados-maiores, seus alto-comandos.

Fora o heroísmo das vítimas, confinadas entre quatro paredes, nos sótãos escuros e mofados, ou nas adegas frias e úmidas, sejam judeus ou comunistas, sejam famílias húngaras ou exilados russos braços, sejam estudantes polacos ou guerrilheiros iugoslavos, não importa, todos de uma forma ou outra, pobres companheiros de uma Anne Frank, reféns, prisioneiros, vítimas da guerra que inoportuna visita às suas portas, sob o clarão diurno do sol ou o clarão noturno dos foguetes, vem de súbito ocupar suas cidades, suas ruas, suas casas, quando todo o mundo se torna parte do imenso e grotesco campo de batalha!

Onde o heroísmo dessas vítimas? Onde o nosso heroísmo hodierno? onde também somos vítimas... Parando em cruzamentos e expostos a armas e lâminas, ou infelizes alvos de balas perdidas ou pálidos reféns de reis do tráfico, ou cúmplices inconscientes da epopéia trágica dos menores infratores, ou humildes e cegos cidadãos encurralados em praças quando de seu matinal ou vespertino cooper, ou mocinhas violentadas e abandonadas em madrugadas desertas do anel rodoviário, ou estudantes esfaqueadas por se recusarem a entregar o tênis de certa marca globalizada, ou idosos abordados em portas de agências bancárias quando levam, além do resto de esperança, um abrigo monetário para remédios e sobrevivência, ou pais-de-família deixados nus no salve-se-quem-puder das terras-de-ninguém dos viadutos metropolitanos, ou, ah, por favor, deixem-me! Deixem-me com minhas narrativas épicas, com os heróis de aço e sangue, longe destas mesquinharias do nosso cotidiano, de nossa civilização e seu poente!




Na hora de ‘puxar angústia’, nos bancos ali da Praça, diante dos bustos solenes dos pais da pátria, em alamedas de ares cinematográficos, com aqueles vultos idosos a relembrarem um passado além da literatura, da qual ambos se deixavam empaturrar até a indigestão, e ao transbordar.

- O grande Nada que somos!

- Como assim? O grande Nada? Somos os herdeiros da razão iluminista, não? Somos os além-do-homem, somos os ‘homens-ocos’, somos os assassinos de deus, aliás, somos os deuses!

- Você está viajando...
- Ao contrário! Somos, ao menos, os assinantes de revistas semanais, somos os torcedores do Flamengo, ou do Atlético, somos os consumidores ávidos, somos os endividados dos “50 anos em 5”, somos os reacionários de plantão, somos os iludidos (ou desiludidos) com o progresso, somos aqueles que devastam o planeta, somos os “últimos românticos”, somos os navegantes dos mundos virtuais, somos os leitores de jornais (sensacionalistas), somos os colecionadores de gibis ou carros m miniatura, somos os desempregados estruturais, somos os individualistas culpados, somos, o que?, somos os bastardos da “indústria cultural”, somos os revolucionários de carteirinha, somos os “anarquistas graças a deus”, somos, mais o quê?, somos os “belos e malditos”, somos os deserdados do Estado paternalista, somos os fundamentalistas high-tech, somos os clientes do mercado global, somos os que rabiscam poemas nas noites de insônia, somos os que guardam cartas de amor, somos os que esperam a salvação, somos o “ódio aos burgueses”, somos os viciados em garotas e cinema, somos os assumidos e travestidos, somos os que “puxam angústia” na praça, porque lemos isso num romance, somos...

- Somos é um poço infindo de paciência, isso sim, meu caro Hector!




“Pronto, terminei!”, exclamou HD na solidão do seu quarto. Olhou pela janela lá fora, e viu o mar e a maré de edifícios a cobrirem-se de luzes, de frestas luminosas. Deu uma olhada para a tela, trocou um “ç” por um “ss” e salvou o arquivo no “Meus Documentos”. Mais tarde, talvez aquela noite ou madrugada mesmo, ele cuidasse da revisão. Por enquanto limitava-se a recostar-se na cadeira e pensar.

Ao número n de contos existentes no mundo fora acrescentado, logo n + 1. Sendo n um número finito, mas impossível de calcular. Quantos contos existem? Considerando-se todos os povos e idiomas. Milhões, não? Como calcular? E o que era um “conto” afinal? Uma narrativa curta? Uma estória concisa? Uma episódio que se esgota em si mesmo? Não sabia. Mário de Andrade dizia que um “conto” era o que o autor considerava um conto. E ponto final. Então, ele, HD, terminava aquela curta narrativa, se despedia das personagens e suas vidas, e dizia para si mesmo, “escrevi um conto”.

E quantos outros não faziam exatamente o mesmo – agora? (igual quanto transava e ficava imaginado quantos casais estariam na mesma situação!) Nada impede que agora um chinês em Beijing acrescente um último parágrafo ao seu próprio conto, em perfeito e estilístico mandarim, e um russo pingar um ponto final (no idioma russo há o ponto final?) em seu conto, em uma dacha nos arredores de Petersburgo, e um alemão esboce, com caligrafia atribulada, um conto, em uma casa pré-fabricada na periferia de Hamburg, e um escritor judeu norte-americano, quiçá futuro Prêmio Nobel!, digite a frase derradeira de seu conto, a ser premiado por importante revista literária de New York!

E, em seu quarto, HD acrescenta o conto n+1 ao espólio cultural da Humanidade, e contribui para a enxurrada, a cascata, o verdadeiro Salto Angel, ou Niagara Falls de informações que se acumulam nas bibliotecas, faculdades, colégios, arquivos de computadores, apostilas, documentos, redações, serviços secretos, que se acumulam e afogam os homens, os civilizados, os cultos, num caos de desinformação – causada por excesso de informação!

É impossível ler todos os livros, folhear todas as revistas, ouvir todas as bandas de rock, acessar todos os sites, imprimir todos os arquivos, comentar todos os ensaios, ler todos os e-mails, responder todas as cartas, divulgar todos os eventos, idolatrar todas as musas do cinema, ah, absurdo dos absurdos, hoje amaldiçoamos a nossa cultura, o acúmulo de milênios, num profundo mal-estar e caímos todos no sambódromo dos lazeres fúteis! Ou alguém se importa com o recém-encontrado conto inédito de um Tchecov?

E HD desliga a máquina, a resolver deixar para amanhã a revisão do conto, pois chega a intimamente temer que, caindo na vertigem de uma súbita náusea (daquelas sartreanas mesmo!), selecione tudo e aperte um “delete” (apagar)!



Provavelmente foi a fome que despertou HD naquela noite de domingo.

Girou o corpo e ligou o walkman junto à cabeceira. Depois do solo de guitarra, o locutor informa prestativo serem vinte horas e trinta e cinco minutos, e aí vem um bloco com duas músicas do mesmo artista.

Tirou os fones e resolveu levantar. Pés descalços no chão frio, pois nem se lembra dos tênis. Assim a dormir demais? A beber demais? Uma boa noitada de sábado! Beijou alguém?

Recapitulemos. Chega de madrugada. Dormi até às duas horas da tarde. Almoça (o último freguês!) na churrascaria assistindo a um final de filme (daqueles nada inéditos!) e u programa de auditório dominical com aquele apresentador-inflado-que-se julga-engraçado.

De volta a pensão, dormira novamente. E o celular acusava duas mensagens recebidas. Darío Sabine. Flávio Toledo.

Agora abre a janela e descobre que chovera à tarde. O ar úmido e frio invade, a levantar levemente as cortinas, meio envergonhadas. Nuvens de vaporação junto aos prédios e ruas novamente se ressecando.

Gasta um tempo, lavando o rosto (para ver se acordava!), trocando a roupa, enquanto medita seriamente se pede uma pizza. Não, já comera pizza ontem! E nem que fosse de calabresa! Melhor um sanduíche natureba (daqueles que o Sabine adora!), mas então precisaria comprar pão de forma.

Desceu até a portaria, ouviu a vinheta musical do Fantástico vazando por debaixo da porta da senhoria, e caiu logo na noite. Muito agradável, aliás.

As ruas logo estarão secas, mas as poças de lama são um perigo ao transeunte desatento. Como é o caso de HD, semi-sonâmbulo.

A menina se chamava Raquel ou Rose? Ou Isabel? Olhos negros, cabelos em cachos. Mas detestava política. Preferia discussões sociológicas sobre as bandas do hit-parade, as inglesas para os de classe média e deprimidos, e as ianques, pop-grunge, para os proletários, mas ‘deslocados’ (ela dissera assim, descolados, nem deslocados, nem revoltados!), e pedia, se pausas, refrigerante de limão (e ela pagando o próprio gasto!)

Talvez Rose, Rosa. Flor, mas nada de romântica. Calça jeans e sem maquilagem. E ele bebeu o quê? Caipirinha, certamente. Pois cerveja era um tédio. E vinho somente o de qualidade. Mas ele andava sem grana...

Na esquina, descobre que a padaria está fechada. Na verdade, acaba de ser fechada. Poucos segundos antes. Ainda havia luz lá dentro...

O jeito agora é a loja de conveniências do posto, mas é pros lados da Contorno. Fazer o quê? Mas nessa lerdeza você vai chegar lá no ressoar das doze badaladas!

Mãos no bolso, contando as moedas, conferindo mentalmente o valor das notas na carteira. Enquanto isso, nuvens se formam acima da sua cabeça.

Esquece das poças, molha os tênis. Também quase-adormecido segue o trânsito, a vida por trás das vidraças, os olhos mesmerizados diante dos espetáculos fantásticos nas cores da TV. Sim, apenas os brilhos de mil cores dos televisores! E carros raros. E pessoas, raramente. E um sono quase eterno sobre as coisas. Mas que vai durar até a aurora... Amanhã é segunda-feira...

Sim, amanhã é segunda! Mas por enquanto é domingo, é fantástico, é globeleza, é namoro na tevê, todo mundo na nostalgia do fim-de-semana, aproveitado ou perdido, pois amanhã é (irrevogavelmente!) segunda-feira, monday! Monday is money!

Mas nada diferente para ele. Sem emprego. E sem aulas. A greve promete se estender e daí não nascerá nenhum domingo sangrento e nenhuma revolução. Apenas não vamos cumprimentar o senhor reitor e vamos pagar as aulas ns férias de verão. Assim, nada há de diferente na segunda-feira (monday is money!) que vem chegado. A cada paso. O domingo agoniza, a segunda-feira revira-se no útero do tempo.

A segunda-feira! A promessa para os trabalhadores, para os patrões para os banqueiros, para os funcionários públicos, para os policiais e soldados, para as donas-de-casa, para as empregadas domésticas, para os agiotas, para os narco-traficantes, para os acadêmicos, para os mafiosos, para as aeromoças e comissários de bordo, para os vendedores de enciclopédia, para os representantes de seguradoras, para... Em suma, para o lucro e o prejuízo nosso de cada dia.

A segunda-feira! Mas ainda é domingo, e sentimos a agonia, lenta e cruel, do ócio que finda. É domingo e o táxi passa, é domingo e a única mocinha nas ruas espera o ônibus, é domingo e o único movimento são os jovens com um carro e seu potente som, abalando a avenida e o posto, com os últimos sucessos e batidas das pistas de dança, enquanto os frentistas até se animam a dançar junto para esquecer o cansaço e o tédio.

Ainda é domingo e façamos as nossas compras, pagando quinze por cento a mais, devido ao local e ao horário. Afinal, é domingo!
Ele juntou os pacotes, conferiu o troco (sempre esse cuidado!) e voltou pelo mesmo caminho.




- Se estou ligando tarde? Dez horas? Mas é domingo à noite! E foi você que enviou mensagem! Pra saber o resultado do concurso público? Mas eu nem fui fazer as provas! Estresse total! Vou tentar aquele da Biblioteca Municipal. Em setembro. Ah, sim, o mês que vem! Semana que vem! Mas a inscrição é até dia vinte. Isso se o mundo não acabar antes! E a pesquisa? Se engavetada? Na verdade, pesquisa tem pouco apoio. Os estudantes nem se interessam. O lance é pegar um diploma e enfrentar o mad max que é o mercado. Si, a universidade virou supermercado, self-service, sei lá. E o que mais aparece é revendedora de diplomas. Aquela velha história: sucatado o ensino público, sobra para o setor particular tirar um lucro bacana. Do you understand me? Se eu estou bêbado? Acha que passei do ponto? Eu passei no posto e comprei pão e vinho. Para a ceia. A minha Santa Ceia! Sanduíches natureba (do jeito que você gosta!) e vinho do Porto. Qual o problema se gastei um quinto da minha mesada? Eu, bêbado? Don’t kidding! Embriagamo-nos sim! Para esquecer, par suportar o fardo (não dizia o maldito poeta francês, ou poeta francês maldito?), para fugirmos de um mundo patético, onde está tudo errado. Mas o mundo continua e nossa embriaguez (desde o ébrio Noé!) o mantém, nossa permanente alienação o sustenta. Embriagamo-nos sim! Para esquecermos nossa condição, e embriagados permitirmos que tudo continue sendo o que é. Sei, sei. Sei tudo isso. Já li a cartilha, eu caro Sabine. Que não devemos fugir, mas permanecer prontos para a ação! Que devemos modificar o mundo! “Os filósofos se contentaram em interpretar o mundo, mas o importante é transformar o mundo!” Modificar o mundo, e não se drogar, não se entregar a putaria... Mas diga-me como vamos viver sem diversão, entretenimento? “Tudo bem, dissipação de vez em quando é bão”, não é o que diz a música, aquela do Skank, mas não continuamos “pacato cidadão, o pacato da civilização”? E não conseguimos ficar sozinhos, não é? Mesmo solitários nas multidões. “Não se pode deixar o indivíduo sozinho, entregue a si próprio”, já dizia o Marcuse, aquele mesmo, o de 68, contracultura, sei, mas não precisa muito, basta ler (com atenção, claro) o romance do Orwell, “1984” ou aquele do Huxley, “Admirável Mundo Novo”, onde o cidadão nunca está sozinho, isso para ele não pensar. Porque se você parar para pensar, você desiste! Pensar um pouco mais nos levaria ao desespero, por isso ‘eles’ pensam por nós! ‘Eles’? Não só papai ou mamãe, ou a mídia, mas ‘eles’, os que tentam seqüestrar nossa subjetividade. “O crime de pensar não implica em morte, o crime de pensar é a própria morte”, está no livro do Orwell. Pois pensar é ir-além do ‘que é’ e imaginar um ‘devia ser’, mas a ordem social está aí, todo mundo de televisores ligados recebendo pronta a interpretação do mundo. Quem me dera receber um projeto de vida pronto, que não precisasse de constantes decisões! (Por isso muitos buscam o consolo das religiões!) Ter aquele ‘sossego’ dos regimes autoritários, onde o Chefe, o Condutor, o Grande Sábio, ilumina o caminho e decide sabiamente a nossa felicidade futura! Como você mesmo já disse (acho que foi naquele almoço lá na Direito...) vivemos numa democracia em construção e precisamos arcar com as conseqüências de cada decisão. Se eu estou falando tudo rimado? Sei lá! É que ando lendo muita poesia! Mas deixa eu falar, pô! (Está ouvindo uns barulhos, ruído na linha? Tem extensão aí? Alguém está nos ouvindo? Não, eu não sou paranóico, e não assisti ao filme, qual o nome?, “Teoria da Conspiração”? Não assisti. Não vou aos cinemas, e não tenho TV, e muito menos aparelho de vídeo. Nem ler em metrô, ônibus, eu leio mais. Cansei. Nauseado. Não li o último episódio do bruxo juvenil e sua simpática coruja, nem acompanho a última série de Stephen King. Cansei, my brother. My Big Brother! Horas de lazer, cinemas, cento e oitenta graus ou não, excesso de propagada comercial, excesso de jornais (quantos você lê por dia? Eu lia cinco! Mas parei, desisti! “Mentir sozinho eu sou capaz”! dizia o Raul), excesso de mercadorias, promessas de felicidade, prazeres supérfluos (sim eu sou do ascetismo como todo bom leninista, moderação e planejamento, meu caro!), excesso de emissoras de rádio, um completo excesso o nosso mercado de bens de consumo, e de bens, e de serviços (personalizados ou não), para a nossa reacionária classe média, para a nossa inculta elite! Sim! Pois o problema antes, vide Indústria Cultural, capítulo 4 de “A Dialética do Esclarecimento”, de Adorno e Horkheimer, era a programação destinada às pessoas incultas, mas hoje a programação é feita pelas pessoas incultas! Nietzsche já avisou! Toda uma elite sem cultura! Quem vai ler Mann e Proust? Quem conservará Mozart e Debussy? Entendeu por que a gente não pode pensar? Ter sonhos, ideais, planos de vida é sofrer decepção. O melhor é seguir o comum, o que parecer pela frente. Ainda que desejem ideais e aspirações o tempo todo sobre a gente, com apelos e propagandas, senão o sistema entre em crise, quem vai consumir? Mas tudo isso, essa de nutrir aspirações, é semear frustração, num mundo onde o vencedor leva tudo, é, “winner takes all”, e como disse o louco Quincas, “Humanitas!”, “aos vencedores as batatas” – fritas! Como sobreviveríamos a tantos imperativos de “consuma isto”, “compre aquilo”, “seja feliz: use o sabonete tal”? Como decidir? (sim, pois você não pode comprar tudo, certo?) pois somos condenados a decidir, não é? Você está m ouvindo, Sabine? Ainda? Pois é. “Estamos condenados a liberdade”, não dizia o francês, o outro, o filósofo, o Sartre. Precisamos decidir, pois as escolhas nos esperam a cada bifurcação da estrada. Fico com a ruiva inteligente ou com a loira boa de cama? Faço Direito ou Medicina? Compro casa ou apartamento? Inicio o mestrado ainda este ano ou vou descansar em Cuba? Entende? Mil escolhas esperando o quê? As nossas decisões! Decidir com base no que sabemos AGORA – e sabemos tão pouco! Na lama da ignorância nós escorregamos! E somos responsáveis por esta decisão, escolhendo A ou B, diante de um eu-futuro, quiçá mais culto e esclarecido? Pois podemos ironizar amanhã a decisão de hoje! O Hector de amanhã atirando pedras no Hector de agora! E inutilmente! (Pois não apenas os outros nos levam a julgamento, mas sobretudo nós mesmos! Claro que os outros são cruéis! Atira e pedem a identidade depois, apedrejam e depois perguntam qual foi o pecado, crucificam e só depois indagam se se trata do Filho do Homem!) Peraí, Sabine! Só um exemplo. Um dia resolvi reunir... Você está me ouvindo? Pois é. Reunir um material que havia escrito, para ver se publicava algo. Rabiscos de 98, 99. Aí quase rasguei tudo. Pouca coisa prestava. Mas não acho certo, não acho digno, isso de ficar julgando a mim mesmo... Ou quem quer que seja aquele de dois anos atrás! Aquele outro Hector, que inda é parte de mim. Viveu intensamente aquele momento em que escreveu aqueles textos. É o eu-de-agora julgando o eu-de-ontem, que será julgado pelo eu-de-amanhã! Mas cada um vive um momento singular, e toma decisões a partir do que sabe! Pode então ser julgado? Não importa se amanhã não julgar o texto, que escrevo hoje, genial! Pois é o genial agora! E ficar debatendo isso é tão ridículo quanto discutir o ‘conflito de gerações’ (generations crash!), como se pudéssemos ironizar os alemães que deram início a Segunda Guerra Mundial ou condenar os norte-americanos por terem encerrado a mesma guerra com bombas atômicas! Podemos realmente pensar que se lá estivéssemos faríamos tudo diferente! Claro, você concorda comigo. Tem razão. É assim mesmo. Uma geração inventa algo que está carregado de sentido e bom senso. Mas aí a próxima geração não compreende e passa a ridicularizar. Afinal, por que andar por aí com uma bengala de freixo (ou ‘ashplant’, se preferir)? Ou usar um chapéu de feltro? Ou por que escrever cartas de amor? Ridículo isso. Não só as cartas de amor... Sei. Mas fala mais alto, sua voz está sumindo... concordo. Pensei nisso um dia. Aliás, quase todo dia. Se a História faz sentido. É mesmo um pesadelo, como pensava o Joyce. Inclusive é dele aquela imagem do chapéu de feltro e da bengala de freixo. É, o Stephen Dedalus em pessoa! E se hoje fosse Bloomsday eu até animava a ler o trecho do episódio quinze. Ashplant. Sugestivo... Mas será que a minha vida tem sentido? Será que continuarei, de episódio a episódio, a andar e perambular, com olhar andejo e alma flâneur? Não serei alvo de quadrilhas de seqüestro? Não serei raptado por mafiosos? Não serei abduzido por alienígenas? Não passarei nenhum Cabo das Tormentas? Não acordarei transformado num medonho inseto? Não serei subitamente processado? Não serei seduzido por uma secretária loira e peituda na ante-sala de um consultório odontológico? Não serei envolvido em alguma conspiração? Não serei torturado no porão de alguma ditadura? Não serei eleito par cargo público? Não serei o novo líder da nação? Não serei o próximo ídolo pop? Não converterei as massas à uma nova religião? Serei somente aquele que anda e anda, a observar os passantes e os fatos e nada fazer? Vitrines com modelitos nos quais não posso tocar? Como é que é? Se estou angustiado? Imagine! Você não sabe o que é angústia. Lembra daquela parábola no “Encontro Marcado”, do Sabino? Sobre o homem que busca uma pedra que transforma metal em ouro, e pega pedra por pedra e batia na fivela do cinto feita de metal, para ver se vira ouro. Assim pedra por pedra, andou e andou. Aí um dia, ao descansar, ele percebe que a fivela tinha virado ouro! Mas quando e onde aconteceu? Ele teve a pedra mágica nas mãos e a perdera por desatenção, então o que ele faz? Começa tudo de novo. A busca. O alvo sempre além! A angústia, meu amigo, my only friend. Acha que estou passando da conta? Acha melhor eu desligar? Quer que eu morra de tédio? Quer que eu me atire desse prédio? Não estou sendo sarcástico? Eu perco a sua amizade! Que isso, Sabine! Nossa amizade tem história! (Não sei se tem sentido, mas tem história!) E nossas discussões desde darwinismo, revolução francesa, revolução russa, Hobbes e Leviatã, as confissões de Rousseau? E aquela discussão que o Flávio começou depois de assistir ao filme “Matrix”? Sim, eu sei. Nem você, nem o Alex conseguiram assistir o ‘movie’. Violência demais? Efeitos especiais demais da conta? Mas pense, noite após noite, as salas de cinema ficam lotadas de pessoas que ávidas assistem a cena s de sofrimentos, torturas, assassinatos, massacres. Vivenciam a violência simbolizada. Toda uma violência que varreram, ou procuram varrer de suas vidas. A monotonia arduamente construída requer a violência esteticamente arquitetada. Imaginemos pessoas que não demonstram qualquer ímpeto violento. Um funcionário público. Um arquivista. Pois bem, este homem senta-se à sua mesa de trabalho, num escritório sóbrio e ordenado, preenche documentos, responde memorandos, e depois, cumpridas as tarefas, passa a esboçar, no verso de um ofício rasurado, um longo conto policial noir, onde nos agride um pavoroso assassinato... Este deixa vazar o peso que sofre... Todo um fardo social... Que fardo? O fardo social pesando (o motor da inércia social) os que muito possuem defendem a posse, os que pouco possuem vivem de promessas, os que nada possuem vivem de esperanças de possuírem também, e os que muito possuem arregimentam os que pouco possuem para manter longe os que nada possuem! Hein... Você está com sono, Sabine? Acha que eu devo desligar? Está citando um poema para me consolar? Ah, eu conheço este poema do Drummond, “Se procurar bem, você acaba encontrando/ não a explicação (duvidosa) da vida / mas a poesia (inexplicável) da vida”. Então, boa noite, Sabine. E desculpe aí qualquer coisa. Como é que é? Eu estou falando demais? Ah, mas isso eu já sei.




Aceitando o convite de Flávio Toledo, HD encontra-se diante do amigo, no restaurante A Romana, pois voltavam a compartilhar apreensões sobre como conseguir emprego. Verdade que Flávio poderia assumir a gerencia do restaurante da família, as havia a irmã, Flávia, que não aceitaria o fato tão facilmente. E HD não era de suportar o gerente de RH (ou não era tolerado, como queiram) e daí a romaria (novamente!) da entrega de currículos.

O restaurante e sua freguesia exigente. Um clima familiar e alguém pedia uma lasanha. O que também interessa ao nosso HD. Afinal, qual o forte do estabelecimento? As massas! Quem quisesse carne que procurasse a churrascaria do outro lado da avenida. A churrascaria que Flávio não perdia oportunidade de criticar.

Mas desta vez a crítica à concorrência foi interrompida. Olhares se voltavam para um dos televisores no segundo ambiente. O único ligado, devido ao pouco movimento do horário. Um panorama de New York. E lá estavam as famosas duas torres do World Trade Center. E uma das torres em chamas! O inferno na torre? Um filme? Não, a TV comercial não mudaria a programação sem um motivo sério.

Afinal era uma manhã de terça-feira e todos esperavam o noticiário esportivo, após as atrações infantis (ou dando continuidade às mesmas). Mas o fato é que a torre está em chamas... Como escapar do fogo e da fumaça à cem andares do chão? E a notícia traduzia a TV norte-americana ao informar que um Boeing colidira com o World Trade Center. Mas o piloto sumiu? Ei, é outro filme! Existe tráfego aéreo sobre Manhattan? O cidadão não viu as torres meio quilômetro acima do chão? Tudo realmente um acidente?

Mas o que importa? É hora do meu almoço! Pessoas estão morrendo? Quantas pessoas trabalham naqueles prédios? Umas dez mil? Umas trinta mil? Nunca me interessei por aquelas torres. Para mim, nunca passaram de cartão-postal. Ei, lembro agora que o Empire State também levou certa vez a bicada de um avião sem rumos. Mas o World Trade Center?? Que parece filme, parece! Aqueles de catástrofes que os ianques adoram!

Não meditou muito. O som da realidade à milhares de quilômetros chega distinto e angustiante e não há palavras para expressar a confusão do jovem estudante de História que se imagina destinado ao esclarecimento das novas gerações. E não meditou mesmo – outro avião (outro Boeing!) surgiu na tela e afundou na outra torre!

Flávia entrou no restaurante, trazendo junto ao peito apostilas do curso de Gerência, curiosa com o grau de tensão no ambiente. Quem pedira a lasanha até hesita em conferir se a degustação valia o preço. Flávio percebeu o olhar da irmã:

- Outro avião acaba de atingir a outra torre do World Trade Center. E não parece ser acidente.

Alguém indaga ansioso se haverá guerra. Pearl Harbour – a reprise! Mas HD desiste de entender, e passa ao outro ambiente. Flávio ao seu lado. Cancelam a macarronada.




Manchetes do dia seguinte: USA Today, “U.S. under attack”, The New York Times, “U.S. attached”, Folha de São Paulo, “EUA sofrem maior ataque da História”, Aviões atingem as torres do WTC em New York, às 8h45 e 9hs, horário local, e 9h45 em Washington, no edifício do Pentágono e, às 10h10, avião cai em Pittsburgh.


Bem-vindo ao século 21!



Escrito em 2006, de 10 abril a 16 junho (Bloomsday!)
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Revisado/Digitado de dez/06 a out/07
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por Leonardo de Magalhaens
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