Insônia das Almas
Capítulo III
Ele nem levantou o olhar quando me sentei, ali todo concentrado no volume de encadernação esverdeada, onde o nome do autor em maiúsculas, acho que é HESSE, não vejo bem, e nem sei por qu fico aqui esperando, apraça coberta de folhas secas e essas folhas que vem caindo sobre os meus cabelos, escorregam no meu colo, cobrem os meus tênis, também com uma ventania dessa!, será que devo esperar a Raíssa?, que daqui eu vejo o apartamento dela, o sexto andar, aquela janela, em breve, vai se acender, quem sabe ela vai se debruçar um pouco e me ver aqui, não, não dá!, só se ela estiver de binóculo, senão ela não me percebe aqui, sentada sob camadas de folhas secas, meio vermelhas, outras marrons, todas assim queimadas, em estalos, iguais aquelas batatas fritas em saquinhos, que parece que você anda sobre casquinhas de besouros.
Continua a ler, o cara, todo encolhido, mas com um blusão de time de basquete, made in USA, não deve ter mais que vinte, mas pode ter uns vinte e cinco, ou até trinta, com jeitão de universitário, até poderia ser um Hector destes de ficar, em plena sexta-feira à noite, lendo em praças, m ventanias e bailados de folhas secas, na zona sul de Belo Horizonte, “bel'zonte”, em ironias o meu pai, enquanto é o farol de um carro que desperta sua atenção, um carro que entra no edifício mais próximo, do lado do supermercado, ele levanta os olhos do livro, não usa óculos, parece que vê muito bem, todo mergulhado na leitura, e eu na confusão nem escolhi outro romance, aquele da Clarice Lispector, ou então devia reler a Emily Brontë, ou “Insustentável Leveza do Ser”, e não ficar aqui, à espera.
Abrindo o caderno, o de desenho, lentamente, Sônia Regina encontra os rabiscos de um clown revirando-se na penumbra de um circo gótico com uma parte da face em tragédia e outra parte da face em comédia, dividido entre rir e chorar, e o palhaço em cambalhotas ri e chora. E sua amiga Raíssa García não perdia uma oportunidade de dizer que o mundo é tragicômico, trágico justamente por ser cômico, “Nossas vidas são patéticas coreografias”, ela dizia, mais desencantada que o usurpador Macbeth. Encontra na página seguinte, uma garota sentada num cela escura e ela não chora nem ri, mas tem os lábios costurados, e sua imagem evoca mais que solidão, mais do que sepultada viva, sobretudo incomunicação. Fecha o caderno, menos disposta a confrontar-se com esses restos mortais de pesadelos, que ela faz questão de retratar, como a conservar o terror sempre constante, ao contrário de esquecer.
Mas em lembranças de um quadro que adoraria reproduzir, ainda que escurecendo os tons, acizentando a cena, de uma jovem burguesa, reclinada a ler um livro, na varanda de seu casarão, onde se observa a fineza de suas vestes, a beleza de sua mocidade, e, ao fundo, a cena bucólica de casarões, uma igrejinha na colina, um riozinho de águas claras e mansas, num devaneio que se deixa absorver entre as linhas de um Balzac, de um Alencar ou de um Macedo. De fim de século, o quadro. Lembra-se agora que o nome do pintor é Almeida. Almeida igual ao sobrenome do Hector.
Agora, o olhar de Sônia Regina cruza com o de uma jovem, sólida contra a luz, a carregar um fardo nos braços, um fardo com uma face rosada a exibir uma chupeta. Um homem, também jovem, é realçado pela luz, a mesma do poste, e deixa-se ficar ao seu lado. Casal jovem que jogo atrai a atenção, além da espera e do caderno de desenhos. O homem observa a criança, ali seu filho, ou filha, a representar responsabilidade, cuidados, seriedade, compromisso, despesas, a curvar-se todo sob o peso deste fardo, deste mistério. Como é sentir-se pai?, o olhar dele procura na imagem da criança, nos braços de sua companheira, a mulher que é jovem, clara, cabelos presos, discreta, deve ser secretária, ou recepcionista, ou especialista em computação, com seu bebê e seu homem, na noite de sexta-feira.
Nossa, como é jovem! Uns vinte e poucos. Com um bebê! Como é linda! Ela talvez pensa que a criança preenche agora o seu vazio, pois todas pensamos assim, aquela vez que pensei que o Germano então me deixado grávida, um bárbaro filho dele em mim, pensamos isso, todas, que para sermos completas é preciso gerar um ser nas entranhas, numa oferenda ao pai e para toda a vida, pois é preciso um laço afetivo, não?, para laçar o pai e os sonhos, porque de outra forma ela não conseguiu, então eis a criança, lançada ao mundo para preencher o vazio da mãe, e não percebe, agora são dois vazios, a mãe esquece um pouco o dela, enquanto a criança...
Ele olhou pra mim!, esqueceu o livro um momentinho, e percebeu que aqui estou, mas quem sou eu, está garota aqui quase sepultada sob as folhas secas, sem nada pra fazer, a não ser observar os que passam, aqui se deixam entregues a leituras de romances, e quem é ele, a ler, e ler sem pausas, como se afogando, gostaria de saber, mas vou ali interromper, perguntar as horas, perguntar quem ele é, e será que ele sabe, enquanto estou aqui tentando ser aquele casalzinho, sim, ser a mãe, ser o pai, cada um nutrindo sonhos, o que ela espera? O que ele espera? Vou rabiscando aqui um esquema para ocupar o tempo, desperdiçando uma folha imaculada branca, para obrigar-me a não desenhar coisas das quais venha a me arrepender, A mulher se sente vazia e incompleta, eu escrevo em letras garrafais, MULHER, VAZIA, INCOMPLETA, e sublinho se sente, aí puxo uma seta, e escrevo União com um afeto, um homem, com garrafais AFETO, HOMEM, puxo outra seta, Mas o HOMEM não a completa, puxo outra seta, Então espera que o FILHOFILHA a compete, e concluo Mas o VAZIO persiste.
Talvez por isso eu ainda não lacei um noivo, não me agrada isso de casamento, e Stevam é quem viajava nessas idéias, todo romântico, mas Raíssa é que está animada, agora tem um noivo, se apronta para receber o cara, sair com ele, eu até o conheci, da última vez que estive aqui, uma sexta-feira também, e lembro de quando ela me contou a novidade, no shopping, ela toda séria, caladona, pois Stevam estava por perto, todo de luto e óculos escuros, uma figura!, pelos corredores do shopping, refletido nas vitrines das lojas, pior é se não refletisse! Vampirão! Atraindo risinhos na praça de alimentação, e também calada porque eu era toda atenção com o Stevam, todo atenção a própria imagem, e eu nunca o vira tão irônico, zombando dos garçons ou da nova literatura exposta na livraria do terceiro piso, ou dos novos adeptos dos novos jogos eletrônicos, ou dos, bem, não importa, a não ser que Raíssa veio em conversa comigo quando o Stevam se afastou, incapaz de ocultar seu desespero diante do mundo do consumo.
Raíssa só queria dizer que era noiva, que tudo oficial mesmo, no almoço de domingo na casa dele, o 'inacreditável' Valério, de eficientes gestos e carreira prá-lá-de-promissora, assim pensa toda noiva, o que se há de fazer? E não se sabe se por isso Raíssa ficou tão careta, e se por isso foi que ela , Sônia, a pobrezinha, foi ao shopping sozinha, na semana seguinte, andando pelos corredores a sentir-se a mais sozinha no mundo, mais sozinha do que o Zarathustra nas montanhas, e isso era culpa do Oto com seus livros daquele louco do alemão Nietzsche (assim mesmo?), o tal que inventou um profeta “hiperbóreo” a conversar com uma águia e uma serpente, mas talvez ele não fosse tão louco assim, apenas seria orgulhoso demais, e não gostaria da trilha sonora do shopping tocando Tears for Fears, “lágrimas que rolam e rolam”, sem pausas, embalando, tal uma cantiga-de-ninar, os sonhos de consumo, de infindo consumo, das crianças e das crianças-adultas, dos casais, dos solitários, dos endinheirados, dos desesperados.
E a luz no sexto andar nunca se acendia, em determinada janela sempre mirada, e Sônia Regina já se entedia com o leitor concentradíssimo e com o casalzinho apaixonado, repudiando e renegando os próprios desenhos ao flagelar-se intimamente por não haver escolhido um romance (onde haviam tantos!), perdida em olhares a uma janela a simbolizar uma esperança, uma possibilidade de diálogo, com um mínimo de franqueza possível, um mínimo de compreensão desejável, com aquela Raíssa que fora a primeira a puxar assunto, quando Sônia se sentava lá no extremo da quadra de esportes, toda desconhecida daquela vida de metrópole, acostumada à calma periferia que até de si mesma se esquecia, e a observar a Igreja, o arvoredo, os vultos nas ruas, a linha de edifícios da cidade, onde ninguém queria saber, ninguém se preocuparia, o que ela fazia ali, ela que nem queria aquela ameaça, deixar para trás Hector, e as amizades, o falatório de Poliana e o sorriso da Elaine, mas Hector principalmente, e aquela simpática da Helena, e o irmão dela, o espirituoso Heleno, e a mãe deles, a dona-Joana-toda-ouvidos, até parecia analista, gente boa, que ela nem tivera tempo de conhecer direito, ah, isso ninguém se preocuparia, mas até que aquela voz a estremeceu, “Por que fica aí tão sozinha, Sônia?”, e era Raíssa, e ela, Sônia, a pobrezinha, descobriu que realmente só andava mesmo sozinha!
Mas talvez justamente por esse ar de “coitadinha” é que Sônia atraíra a atenção de Raíssa, cheia de amizades, e que colaborava no jornalzinho do grêmio estudantil e escolhia músicas para a rádio do colégio, a que só funcionava na hora do recreio, e ela só escolhia velharias, baladas hard rock, glam rock dos anos 80, muita peruca colorida e maquilagem, muito pop, muito revival, e alternava U2 e Depeche Mode, Whitesnake e Ramones, essa mesma Raíssa descobrira que Sônia existia, não era bruma nem espectro, e a convidara para formarem o fã-clube da Legião Urbana, mesmo com aquele ar de superior, mas de petulância espirituosa, pois simpática ela era, ainda que quisesse impor vontade aos amigos e influenciar gregos e troianos, com promessas e empréstimos, com carinhos e ofensas.
Assim que Sônia chegou, Raíssa já avisava que precisaria se vestir, pois esperava o noivo, aquele “inacreditável” Valério, que devia valer muito para empolgar Raíssa daquele jeito, nõ que ela fosse fria, mas exibia aquele ar de “conheço bem os homens e sei que não prestam” diante das neófitas de seu “círculo social”, agora assim toda radiante, tomara o príncipe não virar logo um sapo!, mas Raíssa era a simpatia em convites, em gentilezas, que ela se sentasse nas almofadas, pois nada havia de poltronas ou cadeiras ou mesas, sendo o apartamento de Raíssa um imenso vazio, exceto pelas almofadas, o carpete com manchas de sêmen e sangue, e o pôster do Renato Russo entre o quarto e o corredor. E Raíssa não fuma mais, tem dores de estômago, “Ah, fui ao médico, muito simpático, et cetera, fui falando, e ele de cara foi falando em condições sócio-econômicas! Que jovem hoje só pensa em ganhar dinheiro e esquece a saúde, e come fora de hora, e qualquer porcaria, sanduíche, pastel, batata-frita, aí deu uma dieta, uma lista e tanto, Sônia!, com horários rígidos, e ele lá dizendo que sempre aparece gente jovem reclamando, ele faz endoscopia, e outros exames, e nada, tudo distúrbio nervoso afetando o metabolismo, diz ele, Ufa!, eu pensando que era coisa pior!”
E Raíssa despejava palavras, enquanto caminhava pelo apartamento, toda em alvoroço, a procura de determinada sandália, indecisa quanto ao brinco, se o de argola ou de pétalas, toda querendo agradar, afinal é preciso segurar o noivo, “ele não pode fugir”, ela mal descansando depois de chegar do serviço, uma contabilidade onde os telefones gritam o dia inteiro e existem dezenas de planilhas e balancetes a exigirem atenção, cálculo e conclusão, Uns sem emprego, outras trabalhando demais, depois eu é que sou a irracional, alouca do pedaço, assim pensa Sônia, os olhos presos a cada gesto e gemido da amiga.
Ainda bem que Raíssa sempre confiava nela, Sônia Regina, a pobrezinha, quando ela quis sair de casa, e moraram numa casinha lá no Barroca, na época em que conseguiu emprego na floricultura, pois não aguentava mais ficar em casa, sob os olhares de chamas ardentes, ainda mais depois da 'bomba' fenomenal assim que mudou de colégio, toda de mau humor, “Só os Céus sabem como estou miserável agora” cantava junto com o Morrissey; trancada no quarto, recusando-se a comer, assim deitada olhando o teto lá encima, tal o teto de uma cela, assim o dia todo, “Tão perto de mim mesmo”, como dizia o Robert Smith; “Sem um lugar ao qual chamar de casa”, como desabafava o Stanley do Alice In Chains; “Sem tempo para fugir e se esconder”, como ouvia em Sisters of Mercy; “Quando a esperança está dispersa”, lamentava Renato Russo, da Legião Urbana, e ela cantava toda a tristeza do seu coração de dezesseis anos, e ouvia a mãe Clara Selma em golpes na porta, “Sônia, vem almoçar! Sônia, telefone pra você! Sônia, vem jantar! Sônia, abre a porta!”, e quando mais eles apelam, mais ela se tranca, mais ela se fecha, em sua renúncia, e , certa vez, ficou dois dias sem comer, só saiu do quarto para um banho – e bebeu água morna do chuveiro! Como sou louca!
Sentada na almofada macia, com manchas de batom, Sônia Regina sente-se tal um incômodo para outro alguém, para a amiga, no caso, toda preocupada, com aquele estresse todo, sem dar atenção, só trabalho, vida amorosa, curso de idiomas, curso de aperfeiçoamento, curso de reciclagem, sem tempo para as amigas, saindo vez ou outra para os shows de rock deprê, mas como outro tipo de diversão, como uma válvula de escape qualquer, iguais aquelas coleguinhas que abusam da maquilagem e se vestem com estilos masculinos.
“Ó Sônia, você falava daquelas garotas ali da praça, andando de skate e de visual punk? Ah, de maria-chiquinha, cabelos cor-de-rosa e meia-calça rasgada? Ora, é o espírito da época! Estão criando os garotos meio femininos, e as garotas, masculinas. Repetem o que paira no ar. Século atrás estariam defendendo a virgindade, o casamento, a família, o lugar da mulher, a paixão e a resignação. Tricotando em casa à espera do marido.”
E continua a caminhar, a se esforçar por alimentar o assunto, criar outro, andando e ajeitando aquele bibelô, aquela foto onde a mãe, Rita García, é toda sorriso; aquela em que o noivo, Valério, esboça um sorriso; aquela em que Raíssa, novinha, anda de patins na Praça da Liberdade, etc ceteras, andando e deslizando a escova no cabelo longo, exalando névoas de perfume, “Você tem que pensar no seu futuro, Sônia! Pensar numa carreira, você não queria ser professora?”, e o silêncio de Sônia apenas consegue que Raíssa assuma ares mais maternais, grávida de conselhos de como se viver bem e se dar bem, aquele papo de “o mundo é dos fortes” e tal.
“O importante é a competência, Sônia. Se o sujeito derrapar, se avacalhar o trabalho, ele é dispensado.”
“Se o mundo fosse justo... Mas são os duas-caras é que sobem.”
“É o seu trabalho que interessa, que prova! Não pode duvidar! Assim você vai ser deixada para trás!”
“Já fui deixada pra trás. você sabe, a floricultura. Trabalhava num clima horrível. Época de festas de fim de ano. Empregavam uns dez, mas todos sabem que não ficam mais de três até fins de março. Assim, não faltava sorrisos e bajulações. A dona da loja toda mimada, sem desconfiar das intrigas nos bastidores, onde fulana fala de sicrano que ironiza beltrana, mas cara a cara só elogios, toda a consideração do mundo! Logo percebi, evitava as intrigas. Não ficava incensando a dona, a filha dela, não acariciava o poodle de fitinha vermelha, não bajulava, não intrigava. Em março, fui dispensada. A fulana, a loirinha, a bajuladora, está lá até hoje.”
“É tudo um jogo, Sônia. Tem que ter um jeitinho.”
“Ah, Raíssa! Esse jogo eu me recuso a jogar.”
“Eles estão jogando o jogo deles” e não vou ser cúmplice, não vou jogar com o desino dos outros, “pisar os crânios”, como dizia o Oto, com um sorriso cruel, ainda eu seria a vítima, de mãos atadas na “solução final”, ou na “lata de lixo da História”, assim punida por não jogar, por ser tão-somente eu-mesma, “quebrando as regras do jogo”, punida exemplarmente, então? “O que eu devo é jogar o jogo, o jogo de não ver o jogo”.
Emprego, “conseguir emprego em”, “ser útil a”, “prestar serviço a”, “provar ser útil”, isso me horroriza, sabe, isso de ser útil ao interesse de alguém, e assim merecer viver, Por que eu mereço viver? Que critérios há? Seleção mercadológica, dizem. Ah, aquele cursos de secretariado, que desastre! Andava deprimida, sem amigos, exceto a fiel Raíssa... recriminada em casa, mamãe Clara Selma toda olhares que queimam dentro, então entrou no curso de secretariado, ali na avenida João Pinheiro, e aquela gente superficial, exibindo conhecimentos técnicos e celulares multi-utilidades, sorrindo e encenando, em preocupações de agradar sempre, e ela não conseguia nem dizer um “Oi!”, lá no seu canto, anotando os conteúdos, marcando a apostila com mil traços brilhantes, com notas em todas as avaliações, mas sem entrosamento com os colegas, perdendo pontos no quesito COMUNICABILIDADE/CONTATO SOCIAL, segundo o atencioso psicólogo, e se não se adaptou, não pode ser aprovada, não pode ser aceita.
Precisa provar que é útil, que merece viver, precisa agradar para que lhe dêem o “cartão azul”, mas nunca entendia os critérios que definem quem deve passar pela peneira, ou quem decidia quem deve permanecer. Os “juízes” consideram a beleza? A inteligência? O poder financeiro? A posição social? O nível universitário? O talento artístico? Então precisa viver como se fosse sempre observada e sempre procurando agradar! Sem nunca me encontrar, sem nada mais fazer de mim do que já moldaram, e os candidatos esperam, olham uns aos outros, e ela sente que todos, e mesmo sem se conhecerem, se defendem, pois existem apenas cinco vagas e ali mais de uma dúzia em disputa, eliminando mentalmente uns aos outros, aquele ali não passa de um baita idiota, aquela ali não vai além da cara de vadia, aquela outra ali: que estressada! roendo as unhas!, sim, pois somente cinco dentre eles serão vencedores, e os outros nada mais que perdedores, e ela sente que as vizinhas olham com desprezo, em sutil rivalidade, como a fazê-la notar que ela não deveria estar ali, mesmo que conservem um quê de civilidade, em esboços de sorriso, e ela aspira aquela hostilidade ocultada, mas visível nos olhares, e sente a onda de um mal-estar, e não desmaia, da cadeira ao chão, por intervenção da inspectora, que ao entrar percebe o drama, “Você está bem, querida?”, “Ela vai cair, segura!”, sente mãos em amparo, “Beba um pouco d'água, moça. Deve ser o calor da tarde. Está melhor?”, ela, Sônia, a coitadinha, agradece, diz precisar ir ao toalete, vai, e não volta mais.
Ó Raissa! E você não sabe que em todo lugar é assim, onde as pessoas se vêem umas as outras como rivais, concorrentes em potencial, vide ali aquela mulher e seu filho, ou filha, atenta aos olhares do marido, se passa alguma mulher, ou quando ele olha pro meu lado, ela olha também, o que eu represento de ameaça para o casamento dela, essa mocinha aqui de dezoito, sozinha, poderia atrair o marido para uma aventura, e é muita mulher e pouco homem, ainda mais do tipo confiável, e as mulheres, neuradas, agarram seus maridos e amantes nas ruas, “Ele é meu”, seus olhares dizem, “Se afaste, sua vadia!”, igualzinho aos dramas dos empregos, pois é muita gente e pouco emprego, e as pesoas se resignam ou se submetem a qualquer “processo de seleção”, temendo serem descartadas, e suportam todo jugo possível nos empregos, os mais ridículos e indignos, para não se verem na miséria, e afinal, as pessoas disputam entre si a condição de serviçais e escravas!
“Veja, Sônia, o que você ganha andando com esses seus colegas?”, e Raíssa já adotava todo um jeito de mãe preocupada com o futuro da filhinha, “Esses coveiros, com calças rasgadas, todos de preto, cara de poucos amigos.”
“É o nosso luto.”
“Luto? Não entendo! Por quem?”
“Por nós mesmos. Estamos mortos. Ainda que insepultos. Descartados, logo mortos.”
O silêncio que desaba no apartamento mostra a obscenidade da incompreensão de Raíssa, que já devia ter entendido, e se entendeu, já esqueceu.
“Ó Sônia, eu já andei nessas doideras. Mas hoje eu tenho a cabeça no lugar. Tenho que pagar este apartamento, mostrar serviço. Acabou o delírio.”
“A cabeça no lugar. Sim, sem delírios. Agora, eu é quem não entende. Quem colocou a sua cabeça no lugar?”
E sendo resposta suficiente, a campainha ressoou. Era o Valério. Sônia se encolheu em sua almofada, e Raíssa olhou-se no espelho e foi abrir a porta, e seguem-se beijos e justificativas, “Ó querido, a Sônia já está de saída!”, e ela imagina a conversa de Raíssa e Valério, lá no apartamento, antes de saírem para a noitada, assim leu num romance de Simone de Beauvoir, “Fico irritada quando Sônia diz que me agarro ao trabalho por uma questão de segurança. Mas ela não terá razão?”, e Sônia olha para o alto da escada tal uma Xavière saindo do quarto de Françoise.
Mas hoje Raíssa não virá, e aquela luz não se acenderá, e ela lembra de esperas de outrora, uma noite na varanda da Milene, à espera, mas nos braços e no calor do Hector, e a Milene não apareceu, e Sônia se entregou a outra espera, a saciar o desejo de quem lhe aquecia. Mas hoje Raíssa não virá, não se sabe o porquê, Espero que ela não esteja morta, lá dentro, caída no chão frio do banheiro, e arrepios assustam, e Sônia quer afastar as imagens de morbidez e passeia o olhar, o mesmo casal, às voltas com carinhos, atentos a criança, e o mesmo rapaz atento a leitura daquele livro com um imenso HESSE escrito na capa, o mesmo vento, todo intrometido, insinuando-se até em suas meias, as mesmas folhas secas, que ela afasta com os tênis, criando uma clareira a sua frente, olhando adiante, e para trás, e para a janela apagada, sempre apagada, e uma imensa fadiga, um peso infindo, e ela se prostra, deixa-se deitar, e lá encima apenas as estrelas, ainda que ofuscadas pela lua que sobe, lua cheia toda inchada de luz, e esmaece o brilho daquele imenso escorpião feito de estrelas, Ei, escorpião feito de estrelas?, onde dissera isso?, a quem la dissera?, ah, lembra-se agora, no telhado da casa do Stevam, dois meses antes,
“E aquele escorpião feito de estrelas?”
Joga os olhos ao céu, um tanto estrelado, a ousar o diálogo com o Stevam, ali deitado, as mãos sob a nuca, também a observar o céu, sob a imponência da imensa presença de folhas e sombras da mangueira, e do não menos imperioso abacateiro.
“Que estrela é aquela que não pisca?”
“Não é estrela, é um planeta.”
(pausa)
“Um planeta. Tão longe que não passa de um pontinho. (Pausa) Será que alguém mora lá?”
“Ora, eu vou saber!”
“Mas deve ser tudo diferente, lá em cima. Olha a lua: nem atmosfera tem. (olha a lua crescente) será verdade?”
“Nunca fui lá, não sei.”
“Mas já desceram lá! Só aquele chão rachado igual ao sertão. (pausa) Cheio de crateras. Não acredita?”
“Que diferença faz? Descer ou não descer na lua...”
“Ah, mas é sair dessa pedra no céu! É dar um salto! (pausa) E tão estranho essa sensação de saber que há lugares onde não estamos... (pausa) e onde talvez nunca iremos.”
“O mundo é imenso, Sônia.”
“Ah, é mesmo! Só a Europa, pequenina, mas quantas paisagens, quantas histórias! Campinas francesas, fiordes nórdicos, charnecas inglesas, vinhedos italianos, ah, tanta coisa, seria um horror, viver e jamais visitar tudo! Imagine, uma volta no Expresso do Oriente, igual naqueles livros de detetives, em Paris, lenços se agitando quando o Expresso vai partir, e bagagens arrastadas na estação, e certo cidadão suspeito embarca, passamos por campinas, rumo as planícies e rios alemães, a aristocrática Viena!, rumo a Europa oriental, Romênia, Bulgária, até Istambul!”
“É necessária mais do que uma vida para dar uma volta aos Gerais das Minas, Sônia!”
“Não parece a cauda enrolada de um escorpião?”
“O quê? Do que você está falando?”
“Ora, do escorpião feito de estrelas!”
Com aquele sorriso de “tende-piedade-Deus-meu!”, Stevam se voltava e até desistia de entender. Ah, como os homens são uns bestas! E lembrava de Edgar, lá da floricultura, que cuidava das entregas, naquele ambiente bem feminino, junto ás três garotas, esperando ser aceito, passa a rir, contar anedotas, algumas até de mau-gosto, na tentativa de ser engraçado, pensando assim agradar as garotas, e as outras duas até o aceitam, mas Sônia o ignora, e não dizem mesmo que ela é pouco simpática? Diferente das outras em risos o tempo todo, como se tivessem a obrigação de se mostrarem simpáticas, “Sorria, você está sendo filmado!”
A mulher talvez tenha mesmo ensinado os homens a rirem, talvez por ser mais espontânea, mais solta, mais criança, com um riso fácil que é mais defesa contra a frustração, do tipo: Você passa o dia inteiro ali e não aparece um homem bonito, e, quando aparece um, ele está acompanhado, e por outro lado uns sujeitos nada simpáticos ficam distribuindo 'cantadas', aí você precisa rir mesmo, é muito patético!, “O cara não se enxerga, não?”, e um homem, não, um 'neanderthal' dormita reclinado numa árvore, aí uma pedra cai na sua cabeça, ela arregala os olhos, assustado, em pronta defesa, mas aí cai outra pedra, e da árvore brotam risadas, ele olha todo confuso, a árvore rindo?, não, nada disso, há uma mulher lá encima, rindo e rindo, e logo os outros homens, aqueles neandertais começam a cair na risada também, e por fim até o que fora motivo da zombaria!
Leu depois em revistas o caso do teste de DNA que acusa ser o Neanderthal uma espécie à parte da Homo Sapiens, a nossa, não sendo percursora, etc, então não descendemos dos Neandertais? De que acaso viemos? Os estudiosos acham um pedaço de tecido, um monte de ossos, e logo vão falando de sociedades densas, organizadas, com artesanato e hierarquias, coisa muito extrapolada, igual aquele filme francês e canadense que causou pesadelos, “Quest For Fire”, com aquelas tribos mais para macacos do pra humanos, mais agressivos é impossível imaginar !, com tanta violência, com cenas de sexo, que nada mais são do que estupros, ali na aula de história, obrigada a ver aquilo, a imaginar-se descendente daqueles brutos, uma filha de estupros!, a sentir-se culpada e nauseada, será que o meu pai foi carinhoso com a minha mãe?
Assim, o mundo é uma imensa brutalidade e estar nele é ter as mãos sujas de sangue, eu, aquele cara com o nariz colado no livro, aquela mãe e aquele pai, e, se eu reduzo todos à gêneros, torno-me uma erudita antropóloga, “O macho tem sentimentos contrários com relação à fêmea, pois ao mesmo tempo em que deseja possuir todas as fêmeas, para sua satisfação sádica de posse física e expansão de sua prole, o macho também deseja uma companheira, com quem dividir laços afetivos, por nostalgia da afetividade para com a mãe, amando na companheira o apego afetivo entre o filho e a mãe. A fêmea deseja o melhor macho, segundo escolha dela, para que, sentindo-se protegida, possa com ele procriar. A fêmea despreza outros machos, pois só procria à cada nove meses. Assim ela então se apega ao parceiro que a protege ao longo da concepção e criação da criança. A fêmea se entrega a um macho para que ele a proteja de todos os outros machos.”
Será que criamos uma moral assim: todos devemos continuar, viver e procriar para honrarmos nossos ancestrais? Afinal, não é graças a persistência deles que todos estamos aqui? Nós estamos aqui para substitui-los e perpetuá-los. Assim honramos a memória, e o esforço deles, mantendo-os vivos e ativos. Por que as mariposas existem? Para ficarem circulando idiotamente ao redor das lâmpadas? Não, existem apenas porque não se extinguiram! Assim também nós, os humanos! Busca por fogo aqui, guerra por água ali, tribo contra tribo, sobreviventes se reproduzem, luta para não morrerem, e assim estamos nós aqui, a olharmos para as estrelas, que só estão lá em brilhos porque ainda não explodirem!
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(fim do Capítulo III)
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LdeM
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