quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Náuseas de Estudante - Capítulo 1...

... ...


Só encontraram o Henri (o Bordeaux, esclareço) depois.Aliás, o francês é que encontrou os amigos.

- Desceu do pombal, hein. – Darío sem delongas. – Traduziu o lance?

O francês se voltou: olhar dançando de um para o outro. Soltou um “Salut” para HD e mastigava um estranho dialeto, antes de replicar :

- Oui, quero dizê, quase tout. Regarde moi, je suis trés fatigue. Je dors rarement. Et lês journaux ?

Notando que HD nada entendera, Darío esclareceu, lacônico.

- Outro insone. Anda cansado. Está aí querendo os jornais de hoje. – abriu a porta – Prometeu traduzir uns poemas do Prévert e até hoje! Nem adiantou eu prometer traduzir uns versos do Drummond. – E voltando-se para Henri – Como é mesmo aquele trecho lá do “Paster Noster” ?

- “Notre Pére qui êtes aux cieux – Restez – y
Et nous nous resterons sur la terre


O francês recitava e Darío ria. – boa essa! Um “sprit de finesse” esse Prévert! E depois todos nós com “toutes les marveilles du monde”! ha, ha, genial!

Mesmo nada entendendo, HD percebeu o “espírito” da coisa: - “Permanecei lá” !

Janelas abertas, luz oblíqua, agora HD podia melhor perceber aquela presença de quarto de hospital, bloco cirúrgico. A pia modesta junto a janela apenas realça a impressão – ali, entre os leitos, uma enfermeira distribuía atenção, e umedecia naquela pia o pano que deitaria sobre uma testa febril.

Livros se espalham sobre a mesa, disputam as gavetas com as roupas, os cantos com revistas e jornais. Livros que Darío não conseguia guardar, precisava de todos sempre à mão, a sublinhar, pinçar trechos, quando não os emprestava – para jamais vê-los novamente.

- Que eu digo, que eu digo, il s’agit de tes intérets! (Trata-se de teus interesses.)

Darío entrara afastando os móveis, com Henri nos calcanhares. – Vous pouvez m’aider! (você pode me ajudar!) Elle ne va pas avec moi ... nous ne sommes pas d’accord... Nous allons... (Ela não vai comigo... Nós não estamos de acordo... Nós vamos...)

- Il faut finir ça ! (É preciso acabar isso!)

O outro insistia, só Darío para ajuda-lo. – Elle ne sait pas... (Ela não sabe...)

De costas para a porta aberta, folheando as revistas , HD só notou a presença quando a sombra caiu sobre ele.

- Quem vai tocar hoje à noite ?

HD reconheceu o sonâmbulo, ao qual Darío chamava de Veneza.

- Ora, e eu sei? – Darío pronto a esbravejar. – Que me importa! (o caso é que implorava para que o deixassem estudar. Ajeitava-se na cadeira, cotovelos sobre a mesa, mãos comprimidas contra os ouvidos) Mas não havia jeito – sempre entrava outro.

- De novo a turma da Rosália? Modinha de violão?

- Veneza? – HD sem ocultar a curiosidade. – E essa bossa de nordestino?

Darío havia aberto o dicionário de espanhol para traduzir Octavio Paz, mas ainda foi cordial – Pois é. Então. Recife, a Veneza brasileira. É de lá que saiu esse cabra, esse retirante, esse Severino. – esclareceu e voltou a “Piedra do Sol”.

Por momentos ninguém incomodou. Só se ouvia o folhear célere dos dicionários, ou lento – das revistas. Henri acomodou-se na segunda cama, lendo uma antologia.

Uma gramática de espanhol até atraiu a atenção de HD, yo he insistido, he insistido, hemos insistido, han insistido.

- Vamos traduzir o Paz.

Houve realmente paz. Naquela viagem ao México pouco importava se os demais fossem discutir ou andar às tontas pelos corredores.



A tardinha, Darío lembrou da inadiável necessidade de ir lavar suas limitadas roupas. Entardecer cálido mas suavizado pelas árvores do jardim. Quando o sol chegava era filtrado por entre os emaranhados de ramos. Darío, inclinado sobre o tanque, ensaboava os panos, irritado. HD entendia. Pouca grana, curso pesado, vida árdua, colegas inoportunos.

- Pergunto-me, como é que você consegue estudar.

- Poderia viver de portas fechadas. Ou cavar um fosso e suspender a ponte elevadiça.

(Na verdade, olhando daqui, parecem dois aldeões medievais lavando roupa numa fonte, tendo ao fundo os muros do castelo.)

- Não, não é isso. Mas é que é meio nonsense lavar roupa quando o sol vai indo embora.

- “Tudo tem um tempo debaixo do sol.” Eclesiastes. Não dormir na hora de lavar roupa, não lavar roupa na hora de estudar, não estudar na hora de dormir. Ah, eu quando aqui cheguei, tentei seguir, devotadamente, as horas canônicas, os conselhos de mamãe – e batia, ainda mais enérgico, as calças – Mas um dia a desordem vem te visitar. Novas faces, convites irrecusáveis, promessas de prazeres. – olhou para HD, mas capturando imagens na memória. – É como sair de Besançon para fazer carreira em Paris.

- O tédio ou a insônia?

- Não. O tédio e a insônia. Lado a lado. Um belo par, aliás.

- É porque você quer tudo, gozar tudo, estar em todas.

Darío concordou. – É tentacular. E não há tempo.

- Aí você começa a sacrificar o sono.

Darío olhar baixo, mais próximo. – insônia por não suportar o tédio. Que aliás, é pior pecado.

- Eu vencia o tédio, quando era insuportável, em caminhadas pelos campos, a mochila cheia de bolachas ou fatias de torta. Rumo às montanhas. Apontava para uma, lá no horizonte, e seguia, de carona, às vezes. Subia, apenas para ver mais montanhas – um mar de morros. A marca de estradas de terra, poeira, fazendas sem dono, trabalhadores sem terra, pomares paradisíacos detrás de velhas casas de madeira com rodas d’água, cercadas de plantações de milho, ou algodão, sei lá, infinidades, temendo o latir dos cães. Tudo porque apontava para uma colina e dizia, “É pra lá que eu vou”.

- Eu espero ir para Pasárgada.

E as roupas, aos poucos, ocupavam os varais. Muitos já invadidos pelas trepadeiras.

- Arcadismo. A bela Marília. Só lhe falta a bela Marília.

HD tentou achar alguma insinuação na frase. Arriscou.

- Você ainda se lembra da Sandra ?

Darío, que subia as escadarias, se voltou. – Parece que você tem algo a dizer.

- Sim, mas é uma longa história.



(...)

LdeM

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