quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

(p1) Náuseas de Estudante (c.1)

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Quase tropeçando nos gatos, HD seguia Darío pelo jardim, pisando sem cuidados nos arbustos rasteiros. Haviam passado pelas masmorras (como eles diziam), onde Darío insistira com Veneza (aquele sonâmbulo que guiara HD pela manhã) sobre a importância da alimentação em horas regulares, em vão.

Darío olhava a vegetação sem timidez, como se em posse de uma câmera fotográfica – procurando ângulos, enquadramentos, incidência de luz, penumbra e contraste. Fechava um olho, a inclinar a cabeça, joelhos dobrados. A síndrome da influência.

- Até concordo que lê seja um bom fotografo (referia-se certamente ao tal Mafra) Explora o jogo de luz e sombra, colhe o momento exato, com um olhar oportunista. Mas fotografa somente futilidades. É só lhe parecer ‘bonito’ que ajusta o foco e dispara o click.

Com a ponta do tênis se ocupava em afastar os galhos de uma samambaia manhosa, para deixar expostas as raízes do jequitibá a exibir suas reentrâncias, também as feridas e as deformidades.

- Minha idéia é flagra os anti-cartões-postais. Aquilo que se acha oculto, em qualquer cidade que seja – as fendas, os recônditos, os becos-escuros (onde “explode a violência" ), os puteiros, os lixões,os vultos sob os viadutos, os pivetes na porta do parque,os mendigos debaixo das marquises.

- O que você quer é expor as chagas!

- Que só não vê quem não quer.

E saíam novamente no mundo pavimentado, rumo à fila do bandejão. Destaca-se um grupinho de belas jovens, todas de branco em gracejos, meio a comentários sobre a intervenção cirúrgicas, infindas em minúcias – isso na hora do almoço! Não demoraram em entrar – e a fila movimentou-se.

Equilibrando os bandejões, acomodaram-se, vendo lá na mas vazia, a um canto, Mafra acompanhando uma colega. “Um aranha mesmo.”

HD olha curioso o prato de Darío – que se desviara da moça a servir as carnes.

- Continua herbívoro, percebo.

- Então, Hector, o que andou fazendo lá nos subúrbios?

- Um pouco de tudo: anotando pensamentos (igual Pascal), andando pela zona rural, seguindo os dormentes da ferrovia, vivendo on the road, dormindo nos bancos de praça, sei lá. Tentei ser vendedor – e não vendi nem pro café. O Camargos – você se lembra dele? – arrumou ( gente fina,ele) uma vaga de balconista. Loja de peças. Varrendo a loja, uma bela manhã, fui possuído pela idéia : o jeito era estudar mesmo. Abria apostilas, atendia, uma equação, bom dia, uma engrenagem. Li o Machado, com seu louco Quincas, o Pompéia, interno do Ateneu, Lima Barreto com seu Quaresma, também o Bandeira, indo pra Pasárgada, e o Sabino com seu mentecapto Viramundo. Descobri um Eça mais interessante - a relíquia trazida da Terra Santa, as inovações de Paris e a placidez dos campos. Li uns franceses. Flaubert, e a sonhadora, enfim frustrada, Madame Bovary. Stendhal, com o audacioso Julien Sorel – que calhamaço! – ainda nem terminei. Rimbaud, que não era sério aos dezessete... Ah, e li os primeiros passos da via crucis do Senhor Bloom...

- Joyce. Hum. Proust? Não? Necessário. – Darío mastigava.

E HD notou que já falara demais ao perceber que a comida desaparecia no bandejão do outro. – Quase vou esquecendo de comer...



No corredor, ao voltarem, receberam o sorriso de uma colega.

- É amiga do chileno? – HD pergunta, ao notar traços estrangeiros.

- De certa forma. Mas esta Dulcinéia aí é peruana. Digo: Alicia se chama esta doce incaica. Notou os traços indígenas, não? Mas também uma certa languidez hispânica ? Os mistérios do conquistado e o arrojo do conquistador ? – Darío sem qualquer exaltação, enquanto recolhia umas revistas e voltava para o corredor – Das Alturas de Machu Pichu!

Esmurra uma porta no corredor principal. – Tenho que devolver estas revistas para este crápula!

Mas ninguém atendeu, crápula algum apareceu. – Deve estar é trepado no pombal. – Darío golpeia a própria testa – Vamos pro jardim. Vão encher a piscina hoje. O Bordô ta lá!



Não estava. E o que Darío classificara de ‘piscina’ não passava de um tanque simples onde a água – onde as folhas secas boiavam – não passava do joelho. Divertiam-se molhando um ao outro. Por pouco não molham Darío e as revistas. As tais foram parar nas mãos de HD, quando Darío se perdia no fragor da batalha de jatos d’água.

Debaixo de uma daquelas mangueiras, HD encontrou um tronco abatido, agora já manchado por cicatrizes esverdeadas. Sentado á sombra, alheio, folheava sem pressa. Diálogos em francês entre velhos gauleses. Asterix salva Obelix dos loucos romanos. Ou uma heroína de curvas sensuais. Ou uma gangue de mafiosos abandonando um infeliz a assar a moleira ao sol tórrido. Viajava pela Gália, quando Darío reapareceu. – Esse Bordô é algum colecionador? Exemplares em francês...

Sentia-se um guri lendo gibis – folheando – seduzido por cores, traços febris. A vibração dos gestos. – “ne a guère” é “nenhuma guerra” ?

Mas acontece que algum colega veio arrastar o pobre Darío.


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