quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

P1 /Náuseas de Estudante - Capítulo 1

Preso a minha classe e a algumas roupas,
vou de branco pela rua cinzenta.

Melancolia, mercadorias espreitam-se.
Devo seguir até o enjôo?

Posso, sem armas, revoltar-me?”



(Carlos Drummond de Andrade, “A Flor e a Náusea”)



Capítulo Um


Encontramos HD num sábado de manhã, surpreendido à porta por um sol inconseqüente, pesando sobre as pálpebras. Numa continência, a mão assim a proteger os olhos, a face ensombreada. Esboça um aceno, gesto comum – Tudo bem.

Respondia ao vendedor de alarmes, moreno alto que lia o jornal ao pé da escada, inevitavelmente bebericando café. Gostava de se apresentar, “Ronaldo, a seu dispor”, sorrindo, orgulhosos, a julgar-se também um craque.

Então uma sombra esguia: o garçom, o do quarto ao lado. Rosto pálido e todas as olheiras. Entrou, alheio, vendo somente, diante de si, uma cama.

Mas a voz detrás do jornal jorrava numa gargalhada. Decerto lia as tirinhas cômicas do Garfield, ou dos Piratas do Tietê.

Lá fora, quando ele finalmente animou-se a sair, no asfalto da ladeira, nenhuma sombra. A luz ofuscava tudo. Foi descendo entre as casas modestas, testemunhas das primeiras décadas. Muros baixos, fachadas e alpendres, e suas linhas floreadas, algo de arabesco. Ali onde os construtores da Capital, os pedreiros e seus serventes, buscavam o sono, o prazer e o esquecimento. Na torre da igreja, o relógio pronto a bater nove horas.

Sobre a avenida, entulhada de lixo e barulho, a passarela, suspensa sobre a ferrovia, sobre o ribeirão-esgoto. Uma senhora, com suas gordas sacolas, seguia à frente, nada ligeira, só atrasava a todos. “Olha o barato, relógio barato, colega!” Pulseiras arco-íris, vidrinhos reluzentes, mostradores digitais. O vendedor e o olhar ansioso, em pronta insistência.

- Não é por nada não, mas prefiro aquele ali – e HD, por cima do ombro, apontava a torre da igreja, que lá na ladeira clamava as nove horas.

A garota passou ao lado, quase se esfregando, junto a mureta. Seu jeito de alisar a calça realçava formas onduladas. Logo eclipsada por um cidadão magro, mochila murcha, em passos agressivos, todo pressa. Então um aperto assim de lado – e passa um casal.

Todo um exército de vendedores se posiciona, naquela passarela da Lagoinha, como chamavam. Gente da estação de metro derramava-se no fluxo constante e mais gente subia desde a Rodoviária. A via estreita, que leva ao. Novo aperto. Todos se acotovelam, junto a mureta, e passantes e passantes – “No meio do caminho havia” – uma balbúrdia, mascates em alguma feira do Oriente.

Um reluzir no corpo envidraçado da Rodoviária, “Suco de laranja!”, “Olha o vale-transporte, vendo e compro!”, “Oito pilhas a um real”, meio a bagagens e impaciência, passos lentos e resmungos.

Andando por ruas entulhadas, gemidos e buzinas, “uma esmola pelo amor de Deus !” Um táxi avança, uma senhora agarra firme a valise, ousa atravessar o “rio de aço do tráfego”. Encolhido, mãos nos bolsos, ambos rasgados, sentindo as unhas nas coxas, “Eu seguia, os punhos nos bolsos rasgados”.

- “Minha única calça tem um furo enorme!”

- O quê ?

Desviou-se do mendigo e, além da companhia de Drummond e Rimbaud, não tinha ninguém. “Oh! Lá lá! Que d’amoures splendides j’ai revées!”, “que lindos amores tenho sonhado!”, traduzia.

Aglomerada sob a escultura de concreto, dilacerada por ângulos, na praça onde cambistas ofereciam mercadorias suspeitas, uma multidão atenta a um sujeito magricela, cheio de arrogância, a provocar, todo capaz de passar por dentro de um aro cravado de afiadas facas pontiagudas. Ao seu lado, sorridente, uma jovem mulher recolhe dinheiro.

Em vão algum abrigo sob semelhante escultura, angulosa, oca, em sua frieza geométrica, ali a pesar sobre a praça. E nem é a paulicéia desvairada, do modernista Mário, “Horríveis as cidades! Vaidades e mais vaidades... Nada de asas! Nada de poesia!...” Desemboca na Afonso Pena o trânsito vertido pelas bordas da praça. Grandes outdoors cobrem as fachadas, a Seguradora, a Loja de Departamentos, assim revestem os edifícios com poses e sorrisos, imagens bem diversas, cores sedutoras, musas e deuses, não os seres desfigurados e tensos que disputavam a calçada esburacada.

As modelos nas capas de revistas em contorsões, as garotas (de carne e osso e maquilagem) diante da vitrine esticam as saias. Um cinema agora um templo. Um cidadão, em sua pressa, quase joga ao chão o cego que ali vende uns bilhetes de prometida sorte. Andar é então ver tão pouco! Prédios cintilantes fazem fundo à maré de passantes, em encontrões, apertos, murmúrios, tropeços nas calçadas irregulares, que o Prefeito prometera restaurar para o Centenário. E ainda as ameaças de demissão no ABC, ou concessões dos sindicatos, ou antes um pássaro na mão do que dois voando.

Sufocado pelos edifícios, engolfado pela turbulência dos autos, o famoso obelisco ereto assoma meio as ondas de roupas multicores,pernas apressadas, gestos hesitantes. Um casaco poído, uma jaqueta vermelha, uma cabeleira loira, um braço e pulseira, mãos e anéis, ou dedos sem esmalte, segura firme uma criança, daquelas bem agitadas. “Oh mãe, eu quero algodão-doce!” A jovem – mãe? – observa as cores, sorri ao sorriso do palhaço – que todos somos – Opa! Uma maleta (uma pasta) acerta-lhe por detrás da perna, Perdão, um terno cinzento, quem habita sob as lentes escuras? Meninha manhosa e reprovação de mãe. Dois garotões de cabelos coloridos carregam suas tábuas com rodinhas. Alguém agita um cartaz junto ao obelisco, e HD somente pode dedicar um olhar fugidio, antes de tropeçar em outro alguém, naquela corrente impetuosa, no vórtice da turba – o sinal aberto está? – atravessando percebe a mão vermelha, então agora é correr, a deslizar por entre os carros, não mais ansiosos que os pedestres, todos empurram-se, em tropeços, hesitares, pisadelas. É cruzar os dedos e a pista dupla. Um olho no povo e outro no cenário.

Os simpáticos anciãos, e seus cabelos brancos, trocam reminiscências diante do café expresso, quando ouviam as próprias vozes ativas num brumoso ontem. Mendigos fazem parte do cartão-postal da igreja São José. Agora, diante da igreja, e seu jardim atrás de grades, HD não pôde desviar-se da face amarrotada do vulto humano que oferecia agulhas para desentupir fogão. Agradeceu, desconversou, ficou olhando as carrancas do índios no alto do edifício Acaiaca (Mal humorados: perderam a terra para a Santa Cruz) e por pouco não acertou a testa num galho, ao insistir em entender os traços de um sobradinho de outras décadas. (O Castelinho é da década de vinte? É verdade que já foi chapelaria?) Sobrados e seus floreados perdidos meio às construções funcionais e monótonas.

Quando olha ao redor, ou desvia-se de um passante mais apressado, é golpeado por um clamor de buzina, e um veículo emerge de um estacionamento em cavernoso subsolo. Sim, os prédios o atraíam, com suas colunas firmes, toques neoclássicos, colunatas de fórum romano, algo de medieval, motivos cristãos ao lado de entes pagãos, anjos e sereias, ali um tritão, ou um Atlas. Um rascunho barroco, um croqui neogótico, estas flores de concreto, que não murcham, entrelaçadas em ramalhetes – e bandeiras tremulantes, e – o relógio da Prefeitura marca nove e um quarto.

- Vai usar o telefone?


Continua...


Leonardo de Magalhaens

Nenhum comentário:

Postar um comentário