domingo, 7 de fevereiro de 2010

P1 / Náuseas de Estudante / C1

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Perdidos na noite. Assim HD e Darío nas ruas do Prado. Culpa de quem?

Resolveram matar aula, e justamente a da professora Lia. Claro que ela não perdoou. Ora, seus dois melhores alunos!

Mas o motivo era desculpável. Encontro de cartunistas na Câmara Municipal. Laerte, Borjalo, Angeli, Ziraldo. E nessa época, HD ainda esboçava uns desenhos.
Queriam encontrar os mestres.

E encontraram. Darío conseguiu autógrafos. Depois ficaram circulando entre as mesas do cocktail, experimentando empadinhas e degustando vinho branco, atentos aos movimentos dos artistas e dos editores. E muitos fãs. E que traziam, confiantes, debaixo do braço, uma pasta com desenhos próprios. Queriam uma opinião dos entendidos e um pouco da inveja dos amadores.

Políticos também transitavam, sorrindo para as câmeras. No auditório do plenário, HD e Darío acomodados, observam o movimento das estrelas e demais astros. As lunetas da imprensa flagravam os vultos célebres em flashs indiscretos.

Depois caíram na noite. E subiram no coletivo errado. Quando perceberam estavam nas alamedas da avenida Barbacena. E evitando as prostitutas.

Precisavam encontrar a avenida Amazonas, ou seguir a Contorno até o colégio Pio XII. Mas o que encontraram foi um labirinto, entre os quartéis da Polícia Militar e do Exército, lembrando do amanuense Belmiro, figura autobiográfica do literato da rua Erê.

- “Impossível compor um poema a essa altura da evolução da humanidade”. O que acha? É do poema que o Drummond dedicou a ele.

E novamente a História, meus amigos! O peso das gerações passadas! A Década de Trinta, a Revolução de Trinta, os literatos e bons funcionários públicos da geração de Trinta!

Além dos mendigos à procura de bitucas, ou das putas em busca de clientes, havia uma atmosfera atemporal de lembranças. A efervescência de uma época. E nostalgia, só porque não a viveram.

Mas, de qualquer forma, a professora não aceitou as desculpas.




Agora encontramos HD ao lado de Darío rumo ao hipermercado do shopping. Contribuição de cervejas para a festa. Noite jovem, daquelas cheias de promessas. As paradas de ônibus não passavam de glomérulos sob as luzes dos postes. HD observa, pensativo,os enxames de pontos luminosos, os edifícios com seus corpos pontilhados de luzes. Luzes, luzes. Arcos voltaicos. Lâmpadas. Quilômetros de fiações, para cima e para baixo. Suspensas e subterrâneas. Fluxos infindáveis de elétrons. Vidas desfilam sob bulbos luminosos. Indiferentes aos turbilhões de águas convulsas a se precipitarem nas comportas das gigantescas hidrelétricas, escandalosas, pressionando, fazendo girar as hélices das turbinas, rodopiando nos geradores, amplificando, canalizada, conduzida freneticamente por miríades de quilômetros de fios, suspensos em torres no meio do nada, a energia atravessa.... Controlada, direcionada, aumentada e diminuída, em subestações, transformadores, até jorrar onipresente nos ninhos de concretos de milhões de seres atarefados, mesmerizados diante de uma tela...
- O Aranha bem que podia buscar as cervejas.

A voz de Darío veio implodir a complexa construção de barragens e lagos artificiais, além da água convulsa caindo aos borbotões...

Quem passava não poupava os passos largos. A área não era para momentos de contemplação e conflagração íntima. As estatísticas de assalto...

- Ei, Darío, poucos policiais, hein.

O outro nem precisou olhar em volta. – Pois você precisava ver isso aqui lá pelos meados de junho. Nada de policial na rua. Cidadãos temerosos, confinados, enquanto os batedores de carteira livres, leves e soltos. Mãos leves nos bolsos alheios, e os agentes da boa ordem de braços cruzados.

- Pô! Precisar de coerção, força policial para manter a ordem social !

- Ora, Hector, é assim que a coisa funciona. Só na base do porrete é que os caras se comportam.

- Eis o resultado da grana mal distribuída. Mas acaba pobre assaltando pobre.

- Pois é. A polícia tá aí para proteger os que têm.

- Mas os policiais são pobres...

- Pobres que protegem os ricos contra os pobres!

- Quero dizer: podem exigir melhores salários, podem reivindicar...

- Ora, Hector, os ricos não pagam os policiais para exigirem o que seja! Suportam os pobres de farda para afastar os pobres em mulambos – e diante do olhar de HD, continuou - Pense bem: os fardados, assim divididos entre os códigos de fidelidade e a ética da dignidade, acabam se batendo entre si. Um até foi baleado no tumulto.

- É, eu li nos jornais. Um Cabo atingido, bem dizer na porta do palácio do governo. Diziam lá que os policiais eram uns vendidos.

- Sempre há de ter os pelegos. Agora um dos líderes, um Cabo, está aí para se candidatar.

A decoração natalina : uma embalagem a envolver toda a avenida, com estrelinhas luminosas, coroas de flores e gorrinhos rubros de Santa Claus, mas HD continuava vendo fios e geradores, águas a precipitarem-se em comportas. Impossível esquecer os turbilhões diante da luminosidade do shopping, dos sedutores reflexos nas mercadorias, enquanto Darío empilhava as latinhas e escolhia um tira-gosto nos defumados. Lembrou do limão para a caipirinha, notificando que cachaça o Mafra guardava debaixo da cama, “Vamos logo, antes que ele entorne a garrafa.”

Saindo no estacionamento, Darío percebe que a caixa de latinhas, colocada na parte inferior do carrinho, não fora notada pela moça do Caixa, Será que ganhamos um brinde?, e certa cumplicidade no olhar,que incomodou a HD, O que fazer? Que eu aprove a sorte e a caixa grátis? Ou quer que eu critique, eu que nada tenho com isso? Quer agora que eu seja sua consciência moral?, isso ele pensou.

Mas não houve tempo paras que colocassem à prova a honestidade de ambos – um funcionário logo surgiu e o engano foi desfeito. A caixa prontamente paga.

Não comentaram o incidente. HD achando que Darío aceitaria o brinde involuntário, e este último pensando que HD se omitira por certa conivência. No entanto, na Carandaí, um carro alucinado – que por pouco não atinge os amigos – é o bastante para os congregar novamente.

- Por pouco, hein? Um carinha bêbado com certeza.

- Esses filhinhos de papai...

Darío agora indignado. Ele ali a carregar aquelas caixas, dois quarteirões a pé, e um burguesinho quase a trucidá-lo! Foram apaziguar a taquicardia numa pracinha onde, num dos bancos, um mendigo reclinava a cabeça. Como Darío fixasse o olhar no mendigo, ainda nos lábios o fel da indignação, HD logo entendeu. Ah, os almofadinhas pela noite, padecendo de tédio, se divertem incendiando o corpo desprotegido de um mendigo, oops, um índio que.

- “Com que carro eu vou”, eles se perguntam. Shoppings, danceterias, boates, de cara cheia, queimando a grana, a vida é mesmo um tédio. Mas, aí – oh Providência! – sob uma marquise de parda de ônibus o que eles percebem? O quê ? Um desvalido, um coitado. Eis a diversão! Vamos atear fogo e ver a tocha humana meio a urros atrozes! Um prazer e tanto para vidas tão frívolas e vazias. Ver o outro queimar, aliás, nem “outro”, pois mendigo não é gente. Mas presta um grande favor, ao matar o meu tédio enquanto se convulsiona meio as chamas. Ver o pária em chamas é o meu orgasmo existencial !

- Aí descobrem que queimaram um índio... – ousa HD meio a torrente, sendo prontamente interrompido.

- Oh, quão arrependidos eles estão, os nosso amiguinhos, da singela BRINCADEIRA! Não alvejavam um índio e sim um mendigo! Então, mendigo pode, PODE?! Mendigo não está sob proteção do governo! Chegar e jogar dois litros de álcool no miserável ! Já disse que, para os nossos coleguinhas, mendigo não é gente. Afinal, lê não tem cartão de crédito, mansão na orla do lago, carro do ano, casa de campo, cobertura no Leblon! Nada tem, logo nada é!

- Bela forma de contribuir para a justiça social. Olhe a idéia. Espero que não comecem a construir fornos crematórios para volatilizar os miseráveis. Transformar os excluídos em cinzas ao vento.

Mas, sob as árvores da alameda escura, notam a presença de vultos ainda mais sombrios. Jovens em vestes de luto, olhares eclipsados por maquilagens dantescas, exibindo, nas camisetas poídas, uns desenhos macabros, com gestos febris em confabulações funestas. Passavam de mão em mão uma garrafa de vinho barato. Sacudiam as cabeleiras longas e despenteadas, deslizando dedos nodosos cheios de anéis.
- Aposto que daqui a pouco descem todos lá pra Moradia.

HD só não pode julgar onde havia mais desassossego, se nos jovens soturnos ou na voz de Darío.




- Guerra Social. Este é o conceito, Hector.

Bebiam a cerveja das latinhas geladas., à passos lentos sob a sombra da alameda. HD contempla arquitetura do Colégio Pedro II, lembrando trechos de Pedro Nava, dividindo atenção entre o passado e o presente. O presente eram as palavras do amigo.

- Um darwinismo social. Uma guerra implícita de todos contra todos. “Ao vencedor, as batatas

- Guerra é um termo um tanto forte, não?

Quando? Quando ? lá estava ele diante da TV no despintar dos anos 90, uns fogos de artifício na tela, riscando os céus, sobre as mesquitas de Bagdá, as ruínas da Babilônia, em chamas, e ele lembrou de um carrancudo Rambo vencendo a guerra na selva e nos pântanos, e ele se lembrou que os americanos e os russos, aqueles com chapéus de urso, se uniram para vencer um sujeito de bigode, com o braço direito estendido, Heil !, e que os ingleses, quer dizer os britânicos, lutavam com suor e sangue sob as ordens do gorducho fumando um charuto, enquanto os franceses se escondiam nos esgotos, ou os judeus se escondiam nos esgotos, que o holandeses se afogavam meio as pétalas coloridas, que os, bem, os, ah, etc, pois os foguetes pareciam fogos de artifício, e a bomba parecia um cogumelo feito de luz,e outro homenzinho de bigode ocupava a terra, falando uma língua ainda mais estranha, cercado de uniformes subservientes, enquanto numa cidade, dita Santa, homens de turbantes observavam tanques conduzidos por jovens, e alguém falou “judeus”, e ele se lembrou do outro homenzinho de bigode, o primeiro, aquele de braço direito erguido, Heil !, e o seu pensamento se fragmentou sob as esteiras e projéteis, e os homenzinhos de bigode se fundiam num braço erguido, numa farda, num brado de guerra, em nome da Fé, uma oração islâmica, e uma canção judaica, e uma saudação nazista, Heil !, e um sorriso televisivo do jornalista de Nova York, outra Babilônia, que ele sabia ser a capital do mundo, a conversar com um assustado repórter na cidade sob bombardeio, enquanto ele, pequeno Hector, debaixo da mesa da sal, esperava os marines, os fuzileiros, a cavalaria, ou quem mais se dispusesse a salva-lo.

- ... preocupados com palestina, Iraque, sei lá. Mas o drama, a epopéia está aqui mesmo. Guerras étnicas? Eles dizem – Darío, sem pausas – Cada etnia a se julgar perfeita. Aí se legitima, para si mesma, o direito de exterminar a outra. Não só nas profundezas da África, aquela colcha de retalhos mal costurada. Mas é assim, uma etnia sobe ao poder, reprime a outra ( não só etnia, saiba, mas religiões também, católicos contra protestantes, xiitas contra sunitas, assim), até que o jogo vira e a perseguida golpeie o opressor (assim também em religião...) e podem seguir até a aniquilação mútua numa guerra civil crônica, ou, percebendo a bizarrice da coisa, assumindo uma impossibilidade de dominância devido ao equilíbrio de forças militares, selam um pacto de não-agressão, uma (convenhamos) tolerância mútua.
Desfiles ocupam as retinas, num mar de bandeiras rubras de sangue, alguém proclama messiânico o fim de todo o mal com a derrota do inimigo. O Mal é o capitalismo, o Mal é Comunismo. HD bebericava a cerveja afogado em imagens. De súbito, um homem faz parar toda uma coluna de tanques blindados.

- ... brasileiros e paraguaios se trucidando, os ingleses pagando a conta. Os alemães e franceses se exterminando e os ianques lucrando. Jovens enviados para uma guerra estranha, sem honra nem vitórias.

Uma detonação levava um braço, um rapaz clamava pela mãe. Homens que jamais se viram antes se encontram na aridez dos arames farpados e campos de crateras. Morrem em nome de símbolos e brasões. Um escreverá uma carta a irmã, ou a um amigo, narrando a estupidez dos oficiais alemães, e outro, declarará à noiva seu desejo de reencontrá-la, ali deitado na grota das trincheiras, com seus pobres companheiros da infantaria francesa.

(Uma outra imagem será uma obsessão. De um lado um jovem alemão que deixará narrativas sobre as novidades do front ocidental, de outro, um francês, que escrevera um idílico romance (“Grand Meaulnes”) ambos de fuzis em punho, separados por uma cerca, unidos por um ódio que não compreendem. Fournier terá sido atingido por Remarque? Fournier de quem nem o corpo encontraram. Remarque, que depois até narrou a Segunda Guerra, a apontar para o tiro certeiro. Escritores armados, mas não com suas canetas.)


(...)

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