domingo, 10 de janeiro de 2010

Náuseas de Estudante - Capítulo 1


- Vai usar o telefone?

A moça ao lado, quando ele, diante do orelhão, desdobra um papel um tanto amarrotado, um endereço, um nome, “Darío”.



Afastou-se, num gesto de desculpa, atravessou para o lado do parque, junto com muitos outros, e andou lento, cobiçando a vegetação vicejante, e sobrevivente, atrás das grades – tal numa vitrine, igual aquela onde vão expostas as esculturas, não de lenho mas de gesso, no palácio das muitas artes, nas amplas janelas sobre o espelho d’água. Ali, em grupinhos, o público se aglomera, espera, hoje duas peças em cartaz.

Seguindo pelas alamedas, área hospitalar adentro, calçadas arruinadas, ali mais público: outro teatro, outra peça, a Marília do poeta Dirceu, meio ao clamor das ambulâncias em suas manobras e emergências : o tempo urge: uma vida se esvai. Desviou-se rápido de outro mendigo, tropeçou numas raízes (daquela alameda centenária) e viu o colégio – o Pedro II – a residência anotada.

A moradia? O Borges? O segurança indicou a ela à esquerda. Um grupo de enfermeiras a confabular sob as sombras generosas. Entre os muitos veículos, um garoto esfregava um pára-brisa. Ali, ao fundo, meio aquelas árvores anciãs e trepadeiras indecorosas, na manta crepuscular de ramos entrelaçadas, um casarão cercado por gatos.




O porteiro folheou uma listagem. Na entrada um casal a rir junto ao orelhão. Alguma piada infame do.

- O número tal e tal.

E indicou ali o corredor, lá no fundo a escada.

O teto alto, o corredor estreito – sombrio. Kafka. Cartazes, bilhetes em letras exibidas. Paredes pinchadas com hierógrifos e blasfêmias. Painéis com avisos, “modinha de viola ao entardecer”, “estudo dos sonhos”, “terapia junguiana”, “reunião do condomínio”, e mais caricaturas, grafites –

Ao fim da escada, o subsolo?, um porão, um calabouço, as portas das masmorras – escuridão úmida...

Os ditos algarismos : bateu.

Porta rangente que se abre, um vulto com ares sonolentos.

- O Darío ? Pó, morava aqui sim, mas não é que mudou aí pelo meio da semana – disse entre bocejos – Peraí que eu te levo ao outro quarto, é lá em cima. Momentinho.

O camarada deu uma escovada no cabelo e dignou-se a vestir uma bermuda. Escalaram os mesmos degraus de tábuas gementes, o mesmo corredor. Era até próximo a portaria, a segunda porta no corredor secundário à esquerda de quem entrava. Um silêncio. Kafka. Demoraram atender, mas só ao fim de um momento ali estava outra boca bocejante.

Meio pálido, meio dormindo, mesmo aparentando atenção, e algo despenteado, o outro arregalou as órbitas e num esgar bramiu:

- Hector! Pô!, Hector, você some, e quando aparece vem me tirar da cama!

Sim, o velho Darío Sabine, ainda que um tanto amarrotado.


O guia sonâmbulo recolheu-se a sua cela, e Hector adentrava o quarto amplo, porém abafado, que recendia a sono insaciado. A luz entrava tímida pelas duas janelas meio cerradas, derramando reflexos nas fotos e cartazes dispersos pelas altíssimas paredes brancas. No centro, uma mesa e três cadeiras.

- Pô, dez horas! Quando cheguei eram mais de três. – e foi lavar o rosto numa pia minúscula ao lado da janela, onde antigamente os médicos desinfetavam as mãos, antes de atenderem a um paciente.

Aí HD percebeu que haviam duas camas, lado a lado, e na outra encostada à parede, alguém ressonava. Um vulto magro, ainda mais pálido, nu da cintura pra cima. Darío, meio a suas ablusões, engasgado pelo creme dental, nada comentou. Nem quando retornou do banheiro, que era lá pros fins do corredor..

- Mais de um ano, hein, Hector, em suas viagens! – dizia, ocupado com a toalha – Recebeu as cartas todas? E o Seu Ramiro ?

HD, que passeava os olhos por aquele verdadeiro álbum de fotos colado pelas paredes, ia gagueja suas respostas, frases plenas de pausas. – Aquele monte de cartas? Se eu fosse responder tudo, como é que eu ia estudar? Ah, o meu pai! Do mesmo jeito, só criticando. Perdeu a estabilidade no cargo – a pqp ! com o funcionalismo público! - vive resmungando.

- Ora, até os gatos aqui são modelos.

Darío nem se incomodou com a quebra de assunto – o comentário atravessado de HD – e continuou a arrumação da cama, enquanto a água para o café borbulhava e um pacote de bolachas seguia de mão em mão.

- Ah, essas são fotos dele – e apontava a cama junto a parede. – fotografa qualquer bobagem. Para ele “as minúcias mais banais são detalhes preciosos na verdadeira colcha de retalhos que é a Arte.”

- Não é ruim não. Isto aqui dá até uma exposição. – HD dizia, coçando o queixo, com ares de julgar a obra.

Darío riu. – Era o que faltava! Agora temos o crítico de arte... Por mim iam pro fogo. Tenho outras idéias... Mas beba aqui o seu café. O meu é daqueles amargos.

Hector tirou a camisa de flanela e a deixou no encosto da cadeira, na qual se sentou. Darío bebia o café, sorvendo com vagar, calado. Talvez invocasse lá suas lembranças para reciclar assunto.

Naquela névoa de sono, Darío não fez qualquer menção à turma do colégio, e HD a cismar que ele estava era magoado. Andava afastado, nos estudos, ignorando todos, só falando da faculdade, da capital, não visitava ninguém – às vezes aparecia quando lembrava-se dele, que tinha ideais próximos, mas com menos animo. Agora que conseguira – o curso, a capital, uma bolsa, onde reclinar a cabeça... parecia submerso no enfado.

Levantou-se, a resmungar algo sobre precisar ir ao banheiro, deixando Darío ainda em silencio. HD seguiu o corredor, ao longo da mureta, até o final daquela ala, observando a vegetação resistente lá embaixo, sobrevivente mas generosa, os galhos mais altos ali ao alcance da mão – no que fora tudo antes um imenso parque.

Água fria escorrendo pelo rosto, molhou o cabelo, fios longos já arranhando a base do pescoço, depois bochechos espasmódicos – tirar o gosto de café ... Urinou fartamente.

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