sábado, 16 de janeiro de 2010

Cap. 1/ Náuseas de Estudante...

.... ...


Sílabas hispânicas brotavam do quarto de Darío.

- Quién sabe? Yo te digo que quieren privatizar todo, los rios, lãs montañas, até mis zapatos!

Uma pausa, observa a figura esguia de HD, esboça um cumprimento gestual. Tinha algo de febril no olhar. (HD lembrou de García Márquez e de um certo poema de Neruda) Só não era mais pálido que o sujeito que roncava lá no canto.

- Ora, colega, siéntese!

Darío concordava, ainda que entediado. – Sei, sei. É pra emagrecer o Estado, dizem. Que as estatais não dão lucro.. Olha aí a universidade...

O visitante se voltava para HD, sentado na beirada da cama:

- Pero é o que digo. Não é diferente de mi país, todo el mundo sabe. – e novamente para Darío. – Todo vendido, todo pago. Investimento social és nulo, no es verdad ? nada de controle! O mercado dever ser libre! Não é o que ellos dicén?

- Pois é, e os ianques querem o livre comércio - livre para eles, claro. Em maio, os banqueiros vão escalar os Andes. O que não conseguiram aqui, eles vão insistir lá. – Darío mascava as sílabas junto com as bolachas. – Livre comércio: lobo livre no rebanho livre.

- ! como no! Le hombre do saxofone vine até tocar por esas bandas!

- Mas o congresso deles não aprovou a rapidinha e o golpe vai ser em outra frente. – Darío, que até parecia se animar, elevava a voz – Afunda o mercado comum!

Então não deixou o outro falar: - O Governo só preocupado com o maremoto que vem da Ásia. E despeja pacote fiscal, taxas de juro, e mais medida provisória, e tudo quanto é reforma! E tudo porque somos reféns de, como dizem?, um ataque especulativo!

- Tudo és desculpa, estoy dicendo. Están a privatizar todo. Veja a Universitat. Van vendendo aos poucos: los bandejões, los auditórios, lãs lanchonetes, los estacionamentos, las moradias...

- As moradias. – A voz de Darío era o eco. – Que os estudantes morem nas ruas! Sob as marquises! Que importa os estudantes?

- Si, si. Que importa! Se queren nos expulsar!

HD ficou curioso. – Expulsar?

E Darío começou a explicar, didaticamente, como aquilo tudo era irregular, que o prédio fora um hospital para tratamento de câncer, que haviam desativado para reformas, mas os estudantes começaram a ocupar, que Borges da Costa fora um dos fundadores da Faculdade de Medicina, e outros etcs, que HD logo esqueceu, que lembraram, elas as autoridades, do prédio, do qual falamos, quando os estudantes começaram a chegar. Não tinham onde morar, estavam cansados de promessas. Agora a reitoria quer negociar – mas assim: a gente pagando uma vaga num prédio alugado por ele – enquanto constroem a moradia.
- O que pedimos é uma moradia decente, e barata (e sem baratas! – atalhou o Castillo) Acham que estamos orgulhosos disso aqui. – Darío se levanta para se reabastecer de café. – isso aqui é o desespero, é a resistência. A Comuna de Paris. Uma comunidade hippie !

No silêncio da pausa ouviram o dorminhoco resfolegar, resmungando, se virando na cama. Sempre passeando o olhar pelo quarto – nas paredes além das fotos haviam mapas, um catálogo cartográfico, um Atlas completo, a constar, Europa, Rússia européia, Rússia asiática, China e Austrália, North America, África, Panamá a Cuesta del Fuego – no chão, sem cerimônias, papéis rasgados, embolados, folhetos pisados, jornais dobrados. “Fuga de cérebros”, em garrafais, na capa de uma revista.
- Triste, mas é verdade, Hector. Todos indo para as particulares. Darío resumia a reportagem que HD folheava. – O salário é baixo, não incentivam os mais produtivos. Daí as faculdades particulares – empresas de competição e lucros. O professor então cumpre o tempo de serviço e se aposenta – e vai para as particulares. É aí que ganham mesmo – o dobro, até! Para nós, nas públicas, os inexperientes contratados. – Arrastava a cadeira, aproximando-se: - Olhe, Hector, não quero te desanimar. Você que chega agora.. agora que o barco está afundando.

“Ora, eu não tenho ilusões”, HD até pensou em dizer, mas comentou: - Para onde iria quem não passa na públicas?

- Certo, certo. As particulares surgem daí: das sobras. Vestibular na federal: vinte por vaga! É ridículo! Mas não ampliaram as públicas – abriram concessões para as privadas...

A voz castelhana ironizava: - Privadas mesmo ...

- Abriram concessões. – continuava Darío sem dar importância ao chileno. – Mas o problema continua. As públicas estão cambaleando, apesar de toda a pesquisa que produzem, e as particulares não são alternativas – qualidade questionável...

- Só técnico, colega, apenas gado engordado pra el mercado.

- Sim, produzem encanudados ao gosto do mercado.se dá lucro temos o curso, se não... bem, reduzimos o custo.

- A quién la filosofia dá lucro, colega?

Darío se levantou, riso solto. – É mesmo! Pra que serve filosofia? – e voltando-se para HD, sem entender. – É que o Castillo aqui estuda filosofia política e às vezes se sente inútil. – e para o filósofo – Por que não estuda Odontologia, Castillo? Só assim vai deixar todo mundo de boca aberta!

- Qué tiene usted? Mi paciencia tiene limite! – E olhava agora HD, para concluir a apresentação tardia e pelas metades. – E o colega estuda...

- Não, ainda não. Estou meio a sandice do vestibular ainda.

Darío dizia ao Castillo : - É. O Hector enfrentando estas benditas provas. – Inclinando-se para HD – História mesmo? Não é surpresa. Já trilhava o caminho. Sabe que a Lia voltou, pro mestrado? Encontrei a dona toda meditativa pelos corredores...

Sim. Lia. A professora de História. Aulas lúcidas sobre a Revolução de 30. documentos sobre a corrente migratória para o Brasil. Condições das mineradoras no estado. Greves operárias da década de 80. construção da Capital. Revoluções, lutas de classes, exploração. Antes da formatura fizeram uma visita a professora, ela mencionou a extensa biografia de Lênin, além do movimento dos camponeses.

- Precisamos é reescrever a história desse país. – dizia Darío, mais didático que exaltado. – Cheia de rasuras e lacunas, de caixas-dois e “forças ocultas”. Pensou bem, Hector. Alguém para colocar ordem nessa fábula toda. Às vezes dá uma saudade de um vulto como o do Sérgio Buarque de Hollanda..
- “História és el pesadelo del qual yo quiero despertar” – Castillo, arriscando uma citação hispânica de Joyce.

- Igual viver na social-democracia brasileira. Mais neoliberal impossível.

- E pensar que eu votei no Sociólogo, só pra ouvir um sonoro “Esqueçam tudo o que escrevi”. A gente se frustra quando idealiza. – HD não segura o desabafo.

- Neoliberalismo que o teu país sofre, señior Castillo. O seu generalíssimo de punho mais pesado que o da dama de ferro. – E voltando-se para HD, ao qual agora Castillo dava pouca atenção. – Veja isso, Hector, a trinta anos a esquerda brasileira, a fina flor da intelligentsia, exilada, passeava pelas alamedas de Santiago, onde florescia uma social-democracia realmente ‘social’, se me entendem. O homem-da-reeleição (o nosso Sociólogo, o nosso Sartre), e os que agora são seus ministros, andavam por lá também. Aí o generalíssimo, bom discípulo do autoritarismo latino-americano - lembrando a História enquanto farsa do golpe franquista em cima da república espanhola – incendiando a democracia, pôs fogo no paiol, digo, na casa da moeda. A esquerda dividida – toda casa dividida é dominada – sem necessidade de AI-5, vejam – e deixemos os ianques de fora, essa de operação Condor – e o gatilho neoliberal mais rápido do oeste! Nem a Tatcher, meus amigos!

Darío fala calmo, ainda que irônico, sem gestos (que são próprios de Castillo), enquanto HD vai folheando a revista.

- Que desea usted? – Castillo só falava aqui com Darío – Quien no convence com ideas, oprime com ferro y fuego. Diga-me la verdad, colega. Vámonos ficar nessa de social-democrata ou neoliberal como nos años 30 se era fascista ou comunista?

Agora era Darío quem não dava atenção a Castillo, agora que Hector desamassava uns recortes de jornal, com artigos sobre a Área de Livre Comércio.

- Você precisava ver, Hector, a tal reunião de Cúpula! Só gringo engravatado, limousines desfilando, o nosso sociólogo discursando, o mercado nacional, corando, fechando suas pernas de virgem deslumbrada. Nenhum mendigo, nada de pivete. Coisa de ianque ver. Bela maquilagem pra inglês ver, a nossa Belô Cem...

- Sem vergonha, claro.

À voz todos se voltaram. Finalmente haviam incomodado o fotógrafo. Alisava uma camisa – catando os cigarros que caíam do bolso – esfregava o rosto com a manga toda suja. Quando se aproximou, com suas olheiras obscenas, Darío cutucou HD :

- Este é o Mafra. Vulgo Aranha. Porque quando se agarra em você, ah, meu caro, aí não solta mais.

- Não sei quanto a vocês, mas estou com fome. – E saiu, sem cerimônias.

- Um sonâmbulo ... – Darío gracejava, recolhendo a papelada. – Bem, vámonos !

- Que van ustedes a hacer? – o chileno se levantou bruscamente.
- Ora, Castillo, vamos almoçar!

Pois tinham percebido que era quase meio dia.


(continua)

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