sábado, 25 de setembro de 2010

Cap. 2 de Insônia das Almas




Insônia das Almas



Capítulo II



Por que você está rindo, Raíssa?”, ela pergunta; e a amiga, “Ora, você nunca riu do mundo, dessa comédia humana? Ora, é muito cômico!”, “Não seria tragicômica?”, “Não, cômica. Trágica por ser cômica!



Assim, pensando em Raíssa, sua melhor amiga, Sônia Regina percebeu-se diante do prédio curvilíneo da Biblioteca Estadual, ao descer do ônibus, onde, de olhos fechados, atravessou a cidade, sob os olhares discretos daquele senhor gentil. Levemente sonâmbula, abria os olhos e lá estava ele, de pé junto a porta traseira, ora cabisbaixo, ora arrogante, com seus quarenta anos pesando sobre os ombros e apreciando a paisagem de concreto e asfalto, ou a face adormecida dessa mocinha deveras interessante, deste brotinho de dezoito anos, transbordando de beleza e inexperiente volúpia.



Estudantes invadem a Biblioteca e percorrem as estantes entre risos e gracejos, até que um funcionário surge de súbito e faça respeitar o decreto de silencio, mas Sônia Regina ainda carrega imagens de seu curto passeio quase sonho, onde abrindo os olhos e descobrindo todo um mundo lá fora, além das janelas tremulas e embaçadas do coletivo, descendo a avenida Augusto de Lima, diante do monumental Edifício Maletta, lá fora, sob às marquises, um casal se beija, um beijo meio a todo o ruído da Avenida, meio às buzinas loucas, meio aos catadores de papelão com seus carrinhos feios de lata e madeira, meio às turmas de estudantes que correm para os colegas, meio a todo o distúrbio do mundo, dois lábios se buscam!



Mil outros enredos encontrará diante de seus olhos, as vidas de inúmeros protagonistas e antagonistas e figurantes, reais ou inventados, isso se o que chamamos “real” também não passar de invenção, em estilos românticos ou irônicos, em perspectivas simbolistas ou naturalistas, tal ensina a professora com aqueles rótulos e “estilos de época”, na monótona aula sobre modernismo, enquanto, discreta, Sônia desenha, distribui traços na folha em branco, pretendo preencher aquele vazio e outros, mais “metafísicos”, como outro professor dizia, o de História, mas era a aula de Português a mais criativa, por ser a mais enfadonha, A porta bate ruidosa. Passos céleres num longo corredor. Ali dispersos armários em paralelo. O homem pára, sabe que deixou uma maço de folhas cair, mas demora para se voltar. Alisa a caça, ajusta o chapéu de feltro, cofia o bigode. Sua maleta pesa, seu reflexo no espelho..., “Mas lembrem-se que a publicação modernista visava...”



Livros e livros, e Sônia Regina ali, tímida diante de tantos. Livros para se degustar, como dizem, quando você se aposentar, lá sentada em sua poltrona, torcendo para não ser incomodada pelos netos, a ler, quando o reumatismo não ataca, ou as vistas não ficam fracas, então ler para quê? Quando já é inútil toda e qualquer leitura... passos ressoam entre as estantes entupidas de romances dos mais diversos autores, lugares e épocas, toda atenta, não percebe o vulto que surge na oura extremidade, somente nota quando ele ali está, e um olhar que ela julga ter visto antes, uma suspeita, “Será que ele está me seguindo?”, e surge todo aquele terror de estar sendo seguida, observada, por alguém que a deseje com obsessão, a ponto de sequestrar e violentar, coisa horrível que aconteceu àquelas pobres mulheres que desapareceram,e que as famílias se desesperam, e os corpos são encontrados na mata da Universidade, e novos desaparecimentos criam pânico, as mulheres não querem mais andar sozinhas, e ainda mais terror depois que em suas mãos caíra o romance de John Fowles, “O Colecionador”, onde o maníaco Frederick Clegg mantinha prisioneira a observadora e desesperançada Miranda.



Mas o homem passou sem impertinências. E sobram os livros. Se eu abrir um livro destes, qualquer um, todo um universo se abre para mim, estarei em outro lugar, outra época, vidas e experiências que possuirei, mundos que conquistarei, como sugada para universos paralelos. Se eu abrir este aqui, essas vidas passam a me pertencer, desfilando diante de meus olhos, quando estou acima deles, posso me sensibilizar, ou julgar, este aqui, ambiente britânico, no século passado, um Lord e um pintor no ateliê, conversam sobre um belo jovem, modelo do pintor, que trabalha em impressionante retrato, mas o jovem é atemorizado pela idéia de envelhecer, e num voto sinistro transfere tal horror ao retrato; ou este aqui, onde eu encontro um jovem que ama a glória militar, mas é obrigado a vestir o hábito de seminarista e esconder sua admiração pelo herói nacional agora desprezado; e com este ouro, eu volto dois séculos e vejo o jovem que foge da vida no meio comercial de sua família para viver meio a atores e atrizes, em encenações e aventuras de aldeia a aldeia, com o pretexto de estar cuidando dos interesses da família; ou a filha de negociante de província e desgostos de família; e outro, aqui uma mocinha, no início do século atual, ajuda a mãe a escrever a biografia do avô, poeta famoso, mas se dedica, às escondidas, à matemática, envolvendo-se num noivado, apoiado pela família, com um funcionário, aspirante a poeta; ou se abrir este, um homem foge na noite, chega à uma fazenda onde fica trabalhando, analisando a dona da fazenda, a cada cerca que conserta, estrebarias que limpa, atraindo o interesse da irmã da dona, Quem é aquele homem? Um criminoso?, de suspeitas nasce a denúncia, ele é preso, ele assassino da esposa, mas que ao fim descobre que ela não morreu...



E o que são estes nomes ali grafados, OSCAR WILDE, STENDHAL, GOETHE, BALZAC, VIRGINIA WOOLF, CLARICE LISPECTOR, que assinalam como marcas de qualidades as capas dos volumes? Quem foram, de onde vieram, o que sofreram? E o que importa o autor? O importante é o testemunho da obra? E o que cada nome grafado testemunha? Quero saber o que ocorre agora com o personagem tal e no livro tal, vou abrir e está ele ou ela à minha disposição, para o meu entretenimento ou instrução, cada personagem então somente a mim pertencem, e nada seriam sem mim, sem um eu-humano a desvendar mundo em miríades de letras e sinais gráficos.



Sônia Regina abre um volume na estante de Literatura Inglesa. “Wutherings Heights”, ou “O Morro dos Ventos Uivantes”, da genial Emily Brontë, e as páginas, com suas letras e sinais gráficos, exibem uma cena de discussão, ali o intempestivo Heathcliff discute com a jovem Catherine, e livro aberto fica ali interrompido e congelado, quando os olhos de Sônia se levantam, a cena voltando a ser coisa morta: letras e sinais gráficos, traços inertes; mas basta o seu olhar pousar sobre os tais sinais e traços – e a emoção de um gesto é transmitida, e a força de um grito faz nascer um arrepio, um olhar que atravessa eras e oferece ternura e desfio. A existência das personagens depende da atenção dela, a consistência dos mesmos se deve a ela estar imaginando cada um, e de súbito, desaparecem, pois ela os abandonou, e Heathcliff ainda discute com Catherine?, ficaram congelados num gesto de irritação, um abrindo a boca para replicar, numa pausa de vídeo?



Mas ela já leu este livro, genial, mas não estava pronta para releituras, queria novidades, experimentaria outro de Clarice Lispector, “O Lustre”. E deciciu sentar-se oprimida por tantas vidas e existências enclausuradas em encadernações e brochuras, edições luxuosas e coleções de bolso, na sala de leitura, a lembrar do colégio e sua biblioteca, onde matava aula, lendo romances franceses, até ser interrompida por Raíssa, a única que ousava perturbar o seu sossego, “Ah, querida, é sempre aqui que eu te encontro!”, a mesma Raíssa que se aproximava dela, quando sentada na arquibancada da quadra de esportes, perdia-se em meditações sobre sua nova vida, em colégio novo, em bairro novo, em vivências novas, “Por que você está tão cabisbaixa, colega? Assim tão sozinha?” e ficou ali, mesmo em silêncio, agora uma companhia.



No colégio é encontrada pelos cantos, os rapazes não estranham, mas trocam sorrisos às suas roupas escuras, sua pele pálida de horror ao sol, batom preto marcando os lábios nada sorridentes, os cabelos curtos e negros, isso quando ela não arriscava uma tinta rubra, e a andar sonâmbula, a desenhar paisagens esqueléticas ou ambientes medievais, com excessos de teias de aranha, e então um convite de Raíssa para uma festa, ali mesmo no bairro, e ela não queria recusar, afinal era uma oportunidade, mas quando chegou sábado à noite, viu-se deslocada meio aos convidados, ainda que muitos de roupas pretas e algo pálidas, com batons roxos e brilhos metálicos nos narizes, meio aquela decoração com morcegos de papel, suspensos no teto, e uma coruja empalhada, personagens de “O Corvo”, o filme, e sem sequer ser “Dia das Bruxas”, até Raíssa desaparecera, e os músicos se prepararam para o show ali ao vivo, um som ríspido e cru que a atordoou, acostumada ao depressivo, às baladas, agora jogada ao mórbido, aos gemidos e palpitações, aos gritos e imprecações.



Perdida meio aos estranhos convivas, em estranho lugar, é socorrida pela colega que emerge da massa sombria, “Raíssa, estamos no Dia das Bruxas?”, “Ora, Sônia, divirta-se! E você sabe muito bem que a pouco acabaram as festas juninas! É dia do Rock, pode agitar e rolar!”, e dedica-se apresentá-la aos jovens, e se ela não gosta de dançar, ainda que dançar não seja o caso, pois ninguém dança exatamente, se sacodem, se agitam, quase como epilépticos, histéricos, até se cansarem e prostrados ficarem ao lado das caixas de som, se ela não quer dançar, não importa, há um círculo de vultos em volta de um aparelho de som e uma garrafa de vinho barato, e Sônia é conduzida por Raíssa a uma dessas rodinhas, onde ela acomoda-se junto as garotas, prostradas diante do som, e que passam umas às outras um compact disc ou uma garrafa. Logo aparece um rapaz, que conhece inglês e passa a traduzir a canção para aquela mocinha mais pálida ali junto a caixa de som, e ele traduz, “Somente os Céus sabem o quanto estou miserável agora”, e as outras se limitam a olhar as fotos do encarte, e outra recém-chegada acende um incenso, e todas indiferentes a presença e ao silêncio de Sônia.



Sozinha, ao longo da festa, Sônia bebe, fuma, agita-se quando duas bandas tocam, o namorado da amiga é baixista de umas das bandas, a mais 'cultuada', mas ela não se entrega a rapaz algum, mas observa um em especial, pois quando da primeira banda ele cuidou da montagem e teste da bateria, com golpes técnicos, ainda que pesados, mas ela só observa, e acaba por dormir tarde, num dos quartos, ao lado de duas garotas, caídas de bêbadas, e acorda lá pelo meio-dia, com a cabeça pesada, e desce a escada, e escuta, “Pô, me amarrei no seu penteado, Sônia!”, e é a Raíssa gritando, ali na poltrona, abraçada ao namorado, observando Sônia a descer os degraus, pois Sônia sequer se lembrou de um pente ou escova, após seu primeiro porre, a ser inesquecível, mas outros se seguirão, “Ah, sim, uma bela juba, de leoa”, graceja o namorado da amiga, o do cabelo todo arrepiado, e Sônia, sem graça, nada responde, enquanto, assaltando a cozinha, os rapazes lancham uns sanduíches, e Sônia descobre que os pais de Raíssa viajaram e que o irmão é quem ajudara a montar a festinha, e alguém tocava bateria lá no salão, ela segue o ruído, ELE está na bateria, no mesmo palco improvisado, Sônia o observa, ao lado de outros rapazes com olhares de ressaca, e se aproxima, ousando abordar o músico quando ele silencia, ele sorri, os rapazes observam, ela está ao seu lado, ele estende a mão, “Víctor Marçal, minha bela! Você é a amiga da Raí, acertei?”



E a sala de leitura do colégio, que até fora o seu refúgio, agora se tornara quartel-general de estratégias, com aquela solenidade de biblioteca de colégio de classe média, e numa parede, à entrada, junto às enciclopédias e os dicionários, está um crucifixo, com o ensaguentado Crucificado, ali obscenamente exibido, e uma Bíblia Sagrada, daquelas católicas, toda aberta, num pedestal, volumosa, um calhamaço solene, e quando ela se aproxima, entregue à poesia, está o livro de Salmos, único livro que esse povo lê, apesar de toda aquela ostentação, como se abençoando o ambiente, como se fosse um Alcorão aberto numa mesquita, numa instituição árabe, mas acontece que não estamos num colégio muçulmano, num Irã, ou num Afeganistão, mas num país que se diz “laico”, onde religião e Estado não se misturam, e pense bem o que sentiria um muçulmano, um budista, um protestante, um ateu diante daquela ostentação apostólica romana, pois todos os símbolos, todas as relíquias, todos os estandartes, enfim, de todas as religiões deviam estar ali, todas, ou nenhuma, pois esta é a pátria de todos, não distinguindo religião, ou religiosidade, mas ela já começa a sofrer de alucinações, e desfilam cavaleiros com longas cruzes costuradas nas vestes, longas espadas, tingidas de sangue denso, em horrendas carnificinas, de homens brutos invadindo mesquitas, massacrando monges, em procissões entoando hinos, ou judeus com os corpos em chamas, ou senhoras distintas traçando o sinal da cruz em prostrada persignação, de protestantes protestando vitimados por massacres noite adentro, e das chagas do Crucificado goteja um líquido rubro a derramar-se sobre a Bíblia Sagrada, e estender-se em nódoa sobre o piso, uma poça de sangue a se formar, e ela se afasta, “E se o sangue escorrer até os meus pés?”



Mas agora Sônia Regina se acomoda, após encontrar uma cadeira disponível, em tantas mesas ocupadas. Ali diante dela, uma moça de não mais que vinte anos, concentrada meio aos livros sobre História da Civilização Ocidental, mas o olhar dela não é lá muito amistoso, e acontece que a moça logo reúne seu material e se levanta, assim sem mais nem menos, e com uma expressão (provável!) de desprezo. “Será que ela já estava preparada para ir embora, quando eu cheguei? Ou será que não gostou, não aprovou minha presença? Talvez se eu tivesse dito “Licença”... mas ela é que não foi gentil! Será que não gostou das minhas unhas? Também este esmalte preto! Ou será que ela não gostou do meu cabelo? Séculos que não vê um pente! Ou será que ela não gostou da minha roupa? Se ela perguntasse, eu diria que estou de luto! Se não gostou, podia ao menos ser delicada, não digo que prefiro a hipocrisia, mas será que o problema é comigo? Por que essa neura? Se eu estivesse incomodada, e raramente me incomodo, eu me levantava discretamente, cordialmente. Será que ela se sente mais cidadã do que eu, só por seguir a moda?”



Um dia, na biblioteca do colégio, uma professora novata perguntou-me, se por educação ou hábito, não sei, se eu daria licença para que ela se sentasse à mesa que eu ocupava, aí não entendi, ou antes, pensei ter ouvido ela perguntar se o lugar estava ocupado, e eu disse “Não”, e não imagina o quanto ela ficou perplexa!, agitada mesmo, nem desculpou o fato de eu explicar que eu poderia ter entendido a pergunta como “Esse lugar está ocupado?”, a droga do ruído de comunicação!, mas é que vivemos nos protegendo numa rede de relações e hábitos e que se rompidos, ou mudados, provocam um vazio, uma lacuna, um imprevisto, um desconforto, onde a percepção, a explicação deve ser eficiente, senão eis mais pacientes para os analistas.



Onde o amor ao próximo?”, balbucia Sônia Regina, cabisbaixa, olhando a capa do livro, “O Lustre”, Clarice Lispector. Na parede, o Crucificado. Por que aquela cruz exposta? Não por amor a Ele, certamente. Por que o ensino religioso nas escolas? Para insistir em que os religiosos que são mais piedosos e humanitários que aqueles que não professam religião? Mas se conheço não-religiosos que são mais humanitários, altruístas! Pois os religiosos precisam de Deus para “amar ao próximo”, considerando-o “filho de Deus”, assim um “irmão”. O não-religioso aceita o outro do jeito que é, respeita a integridade do outro assim como quer ser respeitado, sem qualquer temor por uma divindade. E eu não preciso de uma autoridade divina para aceitar as pessoas, por mais que me incomodem. “Amar ao próximo”, dizem, principalmente se o “próximo” está bem longe, de preferência lá na Somália ou lá na Indonésia.



Sônia Regina tem diante de si um romance e não consegue ler. Como conseguir se concentrar? Há todo um borbulhar abafado de sussurros de presenças humanas e quando olha ao redor, a admirar a concentração das mãos que escrevem e dos olhos que rastejam nas páginas, percebe a presença da faxineira a esfregar o chão com um pano, reclinada e indiferente ao que se passa ao redor, ela que possivelmente pouco se entrega a leituras, mais vitimada pela novela das oito, e aquela simples presença a perturba. Nada contra a mulher, que Sônia sequer conhece, mas aquela condição de serviçal, a lembrar ela que alguém precisa trabalhar pesado para que outro alguém esteja confortável, em civilizado “bem-estar”.



Mas a faxineira passa, atarefada, nem incomoda. E o que Sônia agora percebe é a figura de um jovem, duas mesas distante, a retirar os óculos e limpar as lentes com um lenço, e deixá-los, em seguida, sobre os cadernos, e olhar adiante, além das janelas, a coçar um resquício de barba, numa carícia, a massagear as bochechas, numa pausa, a observar a paisagem às escuras da avenida sob o brilho dos postes, o transito refreado diante do semáforo, a acariciar o peito sob a camisa fina, depois o dedo indicador raspando o discreto bigode, sem desconfiar o prazer “voyeur” que certa mocinha sente explodir dentro de si no mero e singelo observar.



Que Sônia Regina encontre prazer em observar, não significa que obtenha algum ao perceber-se notada. Na verdade, ela vive traumatizada pelo olhar alheio, ela a sentir como se roubassem algo dela, como se a imagem pudesse ser roubada, e mais incomodada ficara quando, aos doze anos, foi surpreendida nua, ao banho, pelo primo de quinze, que se apoiara na porta, que ela esquecera aberta, e ela jamais esqueceria aquele “olhar estranho”, como se apenas com o olhar ele sugasse todo prazer do momento desejado, de súbito realizado, diante da nudez da prima. E aquele olhar a magoou mais do que se ele tivesse entrado e ...



Mas o que a incomoda tanto? Ser o “objeto” do desejo? Ser um corpo a ser conquistado e invadido? E se ela fosse um homem, adoraria quando olhares de mulheres convergissem sobre ele, o seguissem? Corpos femininos, esses corpos a se oferecerem, a desejarem o seu, para senhor e dominador?



Ela seria fluida durante toda a vida.”, foi a primeira frase que leu ao abrir o romance de Clarice Lispector, e a frase congelou os murmúrios ao seu lado e fez desparecer o jovem a recolocar o óculos, duas mesas distante, e só havia imagens de uma garota deslocada, “fluida”, que não se prendia a nada, mas sempre a deriva, sempre inconstante, sempre querendo saber o que a vida significa e o que estaria fazendo ali. E um funcionário passou a recolher os livros deixados sobre a mesa, e silenciosamente se afastou. “Porém o que dominara seus contornos...”, estava ali no romance, qual o nome?, “O Lustre”, ah, sim, “... e os atraíra a um centro, ...”, mas sua inconstância, sua e da protagonista que ainda nem conhecera, nascia de um muito indagar ou de um profundo não-entender? Certo que Victor sempre a levara à sério, o que não era o caso do Oto, sempre a pensar que convivia com uma completa idiota, “o que a iluminara contra o mundo e lhe dera íntimo poder fora o segredo.”, mas qual segredo poderia uni-la a arrogância de um Oto ou a timidez de um Stevam, e uni-los contra o mundo?, “Nunca saberia pensar nele em termos claros temendo invadir e dissolver a sua imagem.” Sabia é que a sua imagem é que se dissolveria se ficasse ali mais um minuto! Nem se daria tempo para saber se seria aquele romance a ser escolhido e sobre o qual se debruçaria uma semana de existência. Deixou o livro sobre a mesa e saiu como que fugindo, mãos vazias.



Ela, alcançando a noite de vento, lembrou-se que TH, ai, que TH?!, ora, o Henrique!, lembrou-se que Henrique também sentia claustrofobia em bibliotecas e que sua sensibilidade não permitia leituras em convívio coletivo, preferindo ler “A Tempestade” de Shakespeare no Alto dos Mangabeiras, ou folhear antologias poéticas na ilha do Parque Municipal, o Henrique que quanto mais lê, mas sofre, e mais sem sentido parece-lhe a vida, o Henrique em visita, meio aos gatos do Oto, e recitando Castro Alves e indicando literatura inglesa, “Vou emprestar-te Byron e Shelley. Creio que serão boa companhia.



E, no entanto, o mesmo Henrique dissera que a Literatura podia salvar, não se sabe se com ironia, mas dissera. E lembrara de um romancista francês do século dezenove, ex-oficial de Napoleão Bonaparte, que sem ganhar dinheiro, com a literatura, resolve matar-se, escreve um testamento e deita-se, decide a solução final, o “ato inevitável”, no dia seguinte, mas eis que um amigo o visita no dia seguinte e vê, sobre a sua mesa, um maço de papéis, um romance sendo manuscrito, mas do qual desistira, então o amigo o anima e daí surge o livro que o tornará célebre, e Henrique sorria, coisa rara! E será que surgirá algum amigo, ou amiga, para me animar, com palavras para me incentivar, antes que eu.



Sentiu uma vertigem e por pouco não cai nos braços de um vulto que vem da Praça, camiseta preta, cabelão solto, olhos vermelhos ousados, então finge não ver, toda indiferente, mas, de repente, os passos atrás de si, o cara em voz imperativa, “Ei, garota!”, e ela se volta e enfrenta o rapaz, um tanto ébrio, intimidante, e Sônia Regina se lembra, um ensaio, um solo de guitarra, trata-se de um amigo de Stevam Lucena.



- Ah, você me conhece daquele ensaio da Tenebrae! Você era o guitarrista...


- É, tem um tempo, hein? Você não mudou muito, aliás, está mais gatíssima!


E o olhar dela não é de agradecimento nem de modéstia, já incomodada com esses caras empolgados que não podem encontrar uma garota andando sozinha, e ele continuou: - Tem um tempo que não vejo aqueles caras.



Ela faz um movimentos para seguir caminha, mas o olhar dele é daqueles pesados, ela precisa dizer qualquer coisa: - Mas você tocou com eles, não foi...?


- É, mas não fiquei... Eu é que resolvi sair. Muito sinistro, os caras...


- É, tem um tempo. Uns seis meses, não é? O Stevam que me chamou. O ensaio na casa do Victor... Mas, a Tenebrae até acabou.


Ele deixou escapar um lampejo de lembrança.


- É, eu sei. O Oto conseguiu o Raul, sabe, o batera da Crepuscular, e contrataram um baixista, acho que será o novo super trio em cena.


Ela só oferece o silêncio, espera que a interferência dele tenha fim, mas em vão, pois ele tira duas baquetas da mochila.


- Nem toco guitarra mais. Estou aprendendo bateria, e quem sabe até entro pra alguma banda...
Ela perde a paciência. - Espero que sim, mas tenho que ir. 'Té mais.


Sônia sabe que precisa telefonar, achar alguém interessante nessa noie de lua, de vento, de estrelas, de promessas. E atravessa, sem cuidados, a Bias Fortes, a avenida, e quase é atingida por um veículo de faróis baixos, mas chega viva ao outro lado, diante daquele prédio que em tudo destoa da arquitetura clássica da Praça, como se fosse uma imensa peça metálica de remendos, feita de sucatas, e, entre nauseada e entorpecida, alcança um orelhão.


Primeiramente, Oto. Vejamos se o nosso ruivo está em casa. Chama até cair.. dormindo? Duvido muito. Talvez, então, o Stevam, mas cai na secretária eletrônica, e Sônia deixa um recado. E a terceira tentativa será com os números de Raíssa, e ninguém atende. Longa espera. “Nobody Home!” e desiste, “Antes tivessem me atropelado!”, bate o fone contra o aparelho, que não tem culpa alguma, “Assim alguém se ocuparia de mim, nem que detrás das lentes frias do IML!”


Mas percebe, parando diante da praça, o ônibus que atravessa a Francisco Deslandes, no bairro da Raíssa! Não custa nada insistir! O ônibus acelera, e Sônia Regina senta-se ao lado de uma senhora adormecida. Em breve, ela também fecha os olhos.




(fim do Capítulo II)





LdeM

sábado, 18 de setembro de 2010

PARTE 2 - Insônia das Almas - Cap. 1






Parte 2 de DESENCONTROS GRAFADOS

Insônia das Almas




“As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.”
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(Carlos Drummond de Andrade, “Os Ombros suportam o mundo”)
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INSÔNIA DAS ALMAS
Capítulo I
O dia finalmente chega ao fim. O último funeral se arrasta quase ao anoitecer, os últimos familiares deixando o cemitério quando os portões se fecham.

Ajeitando o vestido, amarrotado por tantos abraços, a viúva, sempre amparada pela nora, recebe os derradeiros pêsames murmurados sob os torvelinhos de folhas secas, na brisa de frescor crepuscular.

Ambas de profundo luto, as estrias soturnas a marcarem as faces, a avançarem em passos medidos, cabisbaixas, junto aos túmulos, à sombra de poucas árvores seculares.

O cair da noite estremece os céus. Sônia Regina levanta o olhar das linhas impressas que transmitem impressões de tempos de outrora, rascunhadas por mãos de remoto passado. Um homem a sofrer por ciúmes nos salões parisienses. Seu vulto se esfumaça, quando Sônia levanta o olhar.

O tilintar de chaves destaca a figura do funcionário, e seu olhar de enfado. Altivo e solene, atitude assim respeitosa, as mãos unidas sobre o ventre, as chaves seguras, até indiscretas, deixa o olhar deslizar pelo cortejo, sem fixar ponto algum, flutuando acima dos semblantes desalentados, para ele comuns, vez ou outra a esboçar um movimento leve de cabeça num cumprimento mudo. A viúva, passos lentos, responde com mais silêncio.

Um fulgor de luar irrompe distante. O desenho, que marca a página lida, estremece. À bico de pena, reproduz “Dois homens contemplando a lua”, de C.D. Friedrich, onde vultos de homens, sob um grotesco salgueiro, acima de presenças abruptas de rochas, meio a névoa e os galhos secos de uma árvore a muito tempo morta, observam um distante pálido luar.

O cair da noite agora incomodado pelo motor rude da camioneta, a surgir no fim da alameda, a conduzir os coveiros e suas ferramentas. Alguns do cortejo se voltam. Sônia Regina observa quando o veículo suspira junto a escadaria da Administração. Os coveiros descem e seguem por um calçamento, e logo desaparecem, eclipsados pelo prédio.

Almas inquietas clamam sob tormentos. Tantas lágrimas em vão. “O infindo gotejar das lágrimas humanas.” Sob o “Eine kleine Nachtmusik” de Mozart, que muito agrada a Sônia Regina. Além de Beethoven e, claro, Johann Sebastian Bach. Mas ela sente a presença das melodias consigo, sem ouvi-las realmente. Nem um walkman ao seu lado. Não costuma carregar a civilização no bolso, além de roupas, identidade e um livro. Manter longe os urbanóides. O cemitério é o único lugar calmo na cidade.

O único lugar onde pode encontrar-se consigo mesma. A paz entre os mortos. “Dos Mortais para os Mortos”. MORITVRI MORTVIS. “Os mortos oprimem as mentes dos vivos”. Em forma de monumentos, nomes gravados no mármore, pedras com inscrições, com a ostentação dos túmulos. Opulento mausoléum se ergue.

Toda vez que vem ao cemitério, Sônia Regina se percebe a pensar em certa Sabina, de um romance tcheco, que procura um pouco de paz, andando em cemitérios, os de Praha, ou de Paris, como o de Montparnasse, “tentou acalmar-se indo a cemitério”, quando tornava-se insustentável a leveza de seu ser. E cada túmulo, por modeso que seja, atrai sua sensibilidade, tal a do senhor Lockwood no pequeno cemitério da tragédia naquele morro dos ventos uivantes.

O sonido das chaves de outro funcionário, lembra a Sônia Regina que é hora de se fecharem os portais do cemitério. Voltando a atenção ao livro aberto em seu colo, à imagem que ela mesma reproduziu, um arrepio de fim de tarde insinua-se sob o seu casaco escuro a erguer-se até a nuca, à base de seus cabelos curtos. Lembra que precisa voltar para casa, mas antes devolver o livro na Biblioteca. Fechando-o, seus dedos alisam a capa, “Marcel Proust – Em Busca do Tempo Perdido – No Caminho de Swann – Tradução Mário Quintana – 18 ª edição”, ali encostada à capela, cercada por túmulos, com suas cruzes e anjos. O livro repousa, a sua cabeça se inclina, vê a si mesma. Mocinha em vestes de luto sentada à porta da capela, tendo diante de si a paisagem de criptas, na inútil ostentação de mármore e imagens. Símbolos da dor inútil na inutilidade de todas as coisas.

Um gradil de ferro, uma árvore secular, inscrições que tornam-se ilegíveis. Ali repousa, quiçá eternamente, uma donzela de ascendência belga, a primeira a ser sepultada em tal campo santo. Quem terá sido essa senhorita Berta, saída da Europa e que, cruzando o vasto oceano, veio morrer nas montanhas da rústica América. “Sepulturas cheias de sonhos abortados.” E povoam lembranças de um sombrio TH, a deslizar em penumbras, que julgava os cemitérios “labirintos infectos”, incapaz de sentir sua paz de espírito, naquele soneto que ele, TH, dedicara à memória de Augusto dos Anjos, e começa assim, “Atento às cinzas sobre os túmulos Sentindo o odor da Fatalidade...”

Uma capa esvoaçante, sombria. Cartola negra. Face pálida sob a farta barba. Um medalhão dourado devolve a luz da lua lúgubre. Uma voz rouca e profunda ressoa. Cavernosa. “Mortos! Saíam de seus túmulos! Venham a mim! Pois eu, eu não creio em nada!” Não crê, porque não crê. Um cruzar de relâmpagos, um redemoinho de vento. Ei-lo derrubado ao chão de folhas secas. E continua não crendo em qualquer juízo ou punição, “aquela voz era sombria como a do vento à noite nos cemitérios, cantando a nênia das flores murchas da morte”, não é mais Coffin Joe, mas Álvares de Azevedo.

Naquela soturna e surreal “Noite na Taberna”, a indagar “O que é o homem? É a escuma que ferve hoje a torrente e amanhã desmaia, alguma coisa de louco e movediço como a vaga, de fatal como o sepulcro!” O que sou eu, EU, que dá valor a um Ouro para assim afirmar o Eu? “Jesus te ama” só me emocionaria se Jesus significasse algo para mim. O Eu está tão afetivamente carente que qualquer um que o ame é sinal de esperança. Considerando ainda que Jesus seja sublime e divino então é uma honra, um privilégio, que o Eu seja amado por semelhante Ser! Mas e se falarem “Elvis Presley te ama?” Elvis Presley para o Eu tanto fez, tanto faz, que honra traz está condição, a de Elvis Presley amar o Eu? Antes fosse o Thom Yorke! Ah, meus botões, meus entediados botões, quando se está apaixonado, é o Eu que elege o Outro e valoriza, e em seguida espera o mesmo sentimento! Ora, é nada mais do que o Eu amando a si-mesmo através do Outro!

Passos no pavimento. Asfalto até na morada dos mortos. Afinal, os vivos precisam de trabalho eficiente. Mas por que semelhante lugar de desespero? Nada mais que um museu ao ar livre, com tantas esculturas que são verdadeiras obras de arte! Mas é um monumento à finitude. Os anjos de mármore. Não há esperanças? Os judeus é que são apegados à cemitérios, com inscrições e adornos, um culto à memória, pois ali descansam os mortos até o glorioso dia da Ressurreição. Há esperança! O cemitério é um símbolo da esperança! Os mortos não viram cinzas nos ares, mas aguardam a trombeta da renovação! Oh, nada mais doloroso que perder a fé!

Mas, meus sofridos botões, o assunto 'morte' é um tabu no baile de máscaras da vida social! Um jovem, sarcástico, mostra algo a outro. Jovens que não chegaram a duas décadas, não têm qualquer concepção de finitude. Mostra algo entre os dedos e diz, num sorriso, “Veja com os seus próprios olhos que a terra há de comer!” E um senhor, ali ao lado, esboça sua desaprovação, com o profundo mau-gosto do jovem. Não é delicado lembrar que morreremos. Memento Mori.

Preciso voltar para casa, fado meu! Um casarão, flores na varanda, uma margarida artificial para atrair os colibris, um sotão com restos de uma velha cômoda, farta de cadernos de séries anteriores, e a primeira bicicleta da irmã, com os pneus furados e pintura sumindo na ferrugem. O tempo vai passando e nada permanece. Nenhuma calma sob os céus. É estranho não podermos dizer simplesmente “Adeus” às coisas e aos seres! Carregamos trastes de velhos tempos, lembranças de amores passados, memória dos mortos sepultos.

Um casal passa junto a estátua do Cristo, em semblante de dor e penitência, Olha para nós, do alto de tua Piedade. Um casal. Jovens? Não, talvez trinta anos. Filhos de algum falecido? Talvez daquele Sr. Faria, ali sob a sombra de quase noite. Ou daquela Sra. Fátima, onde um jarro de cerâmica exibe pétalas que murcham.

Lembranças de amores passados. Um certo beijo com gosto de chocolate. Não fôra o primeiro, mas o mais emocionante. Ela completaria quinze anos, com promessas de festa e baile, e dona Clara Selma não disfarçava sua hostilidade para com o jovem, com aquele ar de superaplicado nos estudos, mas incapaz de um “bom dia” que soasse sincero.

Tantos encontros às escondidas, ou quando terminava a missa e ela ficava na praça. Hector, o nome dele, e pouco mais de dezoito, todo orgulhoso. Mas todo imprudente, ah esses meninos!, em aparecer no salão do baile, na manhã da festa. Claro que aproveitou-se da ausência de mamãe ou do Sr. César, nem a irmã por perto, e dizendo-se curioso quanto à preparação do baile, quem seriam os pares, alguém que eu conheça?

Aí ele se aproximou, queria alegrar a querida. Ela ajudando na decoração do salão, com muita seda colorida, balões nas cores do arco-íris, fitas a descerem de vigas de madeira, também nas cores mais exóticas, e ele se aproximava, sem hesitação. Ela comendo uma barra de chocolate. Ele a surpreende. Ela está contente por ele estar ali, e oferece o chocolate. Ele aceita. Ela exibe a barra entre os lábios, e diz “Vem pegar”. O beijo. Gosto de chocolate.

A festa, a prometida festa. Acham que assim acertam tudo! Quando a menina pede um vestido é prontamente atendida, isso não é coisa que se negue. Quando a mesma menina mostra o desenho que terminou de colorir naquela tarde, trancada em seu quarto penumbroso, é sutilmente afastada, não há tempo, há um relatório, há uma planilha de cálculo, há uma pilha de serviço, depois veremos isso. Não, ela não pode reclamar. Tem boneca que fala, tem dez vestidos novos para a tal boneca que fala, tem uma casa de bonecas, tem estojo de maquilagem, tem a bolsa que papai mandou. Quando vou ver papai? Vou visitar papai? Mas papai mora longe? Não deve fazer perguntas assim ansiosa diante do bondoso Sr. César Souza, que agora merece todo o nosso respeito e afeição! Ms ele é o pai da Roberta, não o meu!

Sem dúvida que ela ganhou uma bela festa, todo mundo comentou.; as primas então! Até a Cíntia que ficava piscando para o Hector, mas deu o maior apoio à loucura deles. Ela tentava se animar para a mascarada, mas nem as anedotas da prima conseguiram ressuscitar um sorriso. Ela, a pobre debutante Sônia Regina Dalmas, sabendo que será difícil que o seu Romeu consiga entrar no baile dos Capuletos, que já avisaram os seguranças da portaria.

Sônia dança com o primo, aquele sacana do Régis, que fica de olho no decote e só gosta de filme censurado. Outros quatorze pares ocupam a pista. Alguém deita um sussurro em seu ouvido, “Você está linda”. É ele, o audacioso, é assim que se diz?, Hector Dias, nos volteios da dança, à rigor, irreconhecível! Claro que um pouco deslocado, mas é inegável que ele é um bom ator. Não atrai atenções.

Na hora das palmas é que ele abusou. Happy Bithday for You e ele todo exaltado. É quando as tias reparam, as corujas Capuleto, sempre à espreita, mas elas entendem, sabem de quem se trata, “Ele não perde a oportunidade”. E ela, a debutante, a linda, a invejada, esquarteja, ai que termo forte!, o bolo, distribui glacê e recheio de abacaxi aos familiares, a mamãe Clara Selma, ao novo pai César Souza, a irmã, por parte de mãe, Roberta, ao irmão, por parte de mãe, Carlos, ao tio Anselmo, à tia Carla, à prima Cíntia, à tia Carmen, ao vizinho Olinto, ao vizinho Nilo, a vizinha Vicentina, ah tanta gente!, e depois recolhe um pedaço, recobre, e vai procurar o seu Montecchio, o seu Romeo. Ele é quem a encontra, a ela que atravessa sem hesitação o amplo salão. Ele a sentir-se ali o único digno de sair com a dona da festa, em abraços, “Agora você vai me dar atenção”. Ela oferece o bolo, ela sabe que ele gosta de recheio de abacaxi, ele degusta satisfeito, “Vim levar você daqui!”

No fundo do salão, ele sabia bem, estendia-se ampla varanda, e ele todo disposto a amarrotar aquele vestido, mas ela encostou-se a pilastra, no resto de luz e ouvia sua voz e o hálito de abacaxi, mas logo notariam sua falta na festa, ora, ela é a rainha! E ele não entendia, jamais poderia. Dedos que raspam seus lábios úmidos e ansiosos. Ele jamais aceitaria, mas ela se afastou.

E uma sirene ecoou. Surpreendidos? Não no passado. É que em breve o cemitério havia de fechar seus portais. Uma porta se fecha e fica tudo escuro, o mundo inteiro. Mas é que a festa exige, não pode existir sem a sua presença. É ele, o abandonado, quem fica desnorteado nas trevas. Voltará depois para raptá-la.

Com o caderno de desenhos junto ao peito, além do romance francês, Sônia Regina arrepia-se a cada passo como se mãos brutais ousassem carícias em seus seios, como se lábios com gosto de abacaxi massageassem os seus e um corpo morno pesasse sobre o seu, e não pode deixar de considerar estranho aquela ameaça sensual num campo de morte. Não sabe diferenciar os arrepios de terror ou distingui-los dos de desejo. Mas a porta fechada, as trevas caídas sobre a varanda foi a ofensa que ele nunca perdoou.

Certa tarde, seu querido vai saindo de casa, sob uma chuva fina, e alguém grita da calçada defronte, com uma sombrinha, mas ele não ouve. É ela, claro. E desiste de seguir seus passos. Aí, na tarde seguinte, ela é encarregada de devolver o vestido. Missão que ela cumpre ligeira, pois vai visitar seu querido! E ele chega e não acredita, “Até que eu não estou tão sem sorte hoje.”, ele que estava às voltas com o alistamento militar, ele que tem horror a isso de guerra, é um a dizer-se pacifista. E ele quer ser amável, bom anfitrião, com suas anedotas sem a menor graça, seus gracejos sem qualquer originalidade, a ler seus escritos, um projeto de romance de ficção científica, uma viagem á lua, sei lá, acho que ele andou lendo muito Júlio Verne, apesar que eu gosto muito de Júlio Verne, aquele no fundo do mar, no submarino, o Capitão Nemo, uma figura, pode crer!, mas o romance dele, do Hector, era um tédio só e ele ainda autocensura a cena de amor do mocinho e da mocinha, e fica lendo piadas prontas, de quem?, do Millôr Fernandes, ou do Jô Soares, sem nem ousar ser original, e piadas que estão longe de me agradar, mas vou sorrir para ele não ficar magoado.

Vou dizer que quando faço algo que vão reprovar, e sempre acontece, ou chego tarde em casa, com daquela vez, junto com a Cíntia, ela a bondosa dona Clara, mamãe toda generosa, Deus abençõe, grita, com ares de traída, “É assim que você me paga aquela festança toda!” vou matar o ridículo bom humor dele com os meus problemas? Melhor elogiar esse enredo sem-pé-nem-cabeça que alega ser o original dos originais, como é isso?, brasileiros disputando com franceses e chineses para construir uma nave para o transporte de exploradores de minério até a lua? Ele nunca leu romantismo não? Acha que vou engolir essa de que a lua não passa de uma cinzenta rocha suspensa nos céus?

Tá bom, ele não quer servir ao Exército, e eu não quero voltar pra casa. Pra quê? Pra varrer os cacos do meu vinil que mamãe quebrou? Agradeço o seu interesse, querido, mas não tenho que ir essa tarde, essa noite, então é a sua oportunidade de enfim raptar sua Julieta, vá em frente, faça logo. Pois o digníssimo Sr. César sempre encheu Sônia Regina de mimos e brinquedos, bonecas caras, mas nada de atenção, jamais preparou Sônia para o “mundo-cão”, e seu pobre papai, nauseado, o Sr. Marco Dalmas, foi para beira-mar, onde se limita a ensaios fotográficos e ler Pablo Neurda. Então que culpa eu tenho de ser é uma filha toda à marge, assim entediada, ou querendo chamar a atenção? Vou ler ali no livro sobre Pais e Filhos, “Educar não é impor, é compartilhar sentimentos e conhecimentos, preparar o(a) filho(a) para a vida”, faltou acrescentar “para a vida num mundo cruel”.

Sônia Regina aceitou o chá com bolinhos de fubá e agradeceu a dedicada dona Hilda, que conhece de cozinha, enquanto ela, Sônia, sofre até para fritar um ovo, não exagere, minha querida, que eu já assei bolo de cenoura e fiz a cobertura de chocolate, e o querido também elogia a mãe, mas ela, Sônia, quer sair com ele, andar ao crepúsculo, você sabe o que é romantismo, querido? Aprenda na poesia do poente. Ele se despede da mãe e diz que volta em breve. Pobre dele, não pode prever as sombras que a noite reserva.

A noite cai, os edifícios adquirem esta dor dourada fulgente, e brilhos passeiam nas vidraças, e os perfis de árvores e telhados se confundem. Assim também naquela época, mas era verão. As noites chegavam com uma lentidão, mornas e lânguidas. E podia-se ficar nas varandas, ou nas esquinas, em conversas intermináveis sobre lendas medievais ou contos de terror. E foi numa noite daquelas que, após aceitar bolinhos de fubá e chá, ela foi acompanhada, em sua pretensa volta para casa, pela presença e humor do seu Romeu.

Ela também se imaginava retornando, mas lembrava da angústia de um “é assim que você me paga aquela festança toda!” e seus passos se tornavam lentos, com um peso acrescido de discussões de outrora, de sonoras ofensas de outrora. Mais em silêncio do que entregues ao humor, seguem ambos, que muitos observam juntos, mas com pesarosas distâncias sem compreensão. Ela pode até se inclinar para desapertar a sandália, e ele pode até ajudá-la, mas além desse contato são duas solidões que se protegem, que se sufocam.

E se Milene estiver em casa?”, ela diz. E ele reconhece, Milene é uma amiga em comum, sabe dos desconfortos que sofrem, muito devem a sua amizade, que, em tempos passados, pode-se dizer que ela unira o casal, antes de Sônia Regina visitar o pai em Niterói, onde ficou mais de um ano, pois antes foi Milene quem conheceu Sônia na classe do catecismo e, na época, Sônia cantava bem, sabia todos os hinos e a liturgia, não se sabe hoje em dia, mas deve-se a Milene todo o carinho, ela que adaptara aquela versão para o Filho Pródigo, onde Hector era o tal filho que sai de casa, esbanja toda a herança e volta miserável, e Sônia fazia o papel da irmã que recebi o irmão, jogando-se os seus pés, pois o irmão mais velho, o que ficou ao lado da família, não aceitava a volta deste irmão irresponsável, “Imagina só, gasta a grana e volta com essa cara de remorso, e todos acreditam”, não, o irmão não aceitava o banquete para o irmão que perdeu e agora volta, e Sônia, a irmã, se jogou aos pés de Hector, o irmão, e quase beijava mesmo aqueles pés desnudos do irmão ferido em andanças, ela toda humilhada diante da perdição dele e da aceitação do retorno dele e da compreensão do remorso dele, e Sônia, não mais irmã, a pensar no gesto, durante aqueles dezenove meses á beira-mar, saindo nas pracinhas e beijando garotos bronzeados, mas sem uma mancha daquela perdição, e não que Hector fosse bom ator, longe disso, mas ela sabia ser uma boa atriz.

Chegam à casa de Milene, casada, mãe de um menino, Cássio, todo engenhoso, que devia dar muito trabalho, a ela, nova ainda, longe dos trinta, uma professora a deixar-se até de madrugada a inventar exercícios e a corrigir avaliações. E Milene não estava, mas o portão todo aberto, ela era mesmo muito distraída, coitada, achava que Deus protegia mesmo, que malandragem não tem vez, veja aí a proteção divina que nos ampara, e deixa assim o portão aberto, para qualquer um, mas somente eu e meu querido vamos entrar.

Hector, com uma voz até comovida, lá de cima de onde avistavam o bairro novo, lá da varanda nos fundos, com sua voz até apertada, comenta um filme sobre guerras, ele todo apavorado com Exército, onde numa estação de trens os soldados em despedidas, abraçam as amadas, ou acenam debruçados das janelas, e elas agitam os lenços, em choro discreto ou convulsivo, quantos voltarão para casa?, quantos ficarão caídos nos campos de batalha?, quantos morrerão abraçados às fotos de suas queridas distantes e desamparadas?, e ele tem a voz apertada, quase sussurro, e ela toda sensível, numa ânsia de choro, “Me beija”, e ele desfez aquele choro iminente com seus lábios não menos ansiosos.

E ela se lembrou de sua família? Lembra agora, enquanto caminha entre as lápides, enquanto os portões se fecham? O que Sônia Regina pode dizer para se desculpar? Quem dissera que ela era uma boa filha? Quando elogiada, e sinceramente? Mas ela se esforçou mesmo? Como poderia agradar? Vive se culpando, mas terá culpa? Quem tem culpa? Deus é o único culpado? Os homens querem fechar o lugar, mas ela vem devagar, a culpa pesa um tanto, os passos de uma mente pesada. Mas ela aceitou sepultar o choro naqueles lábios!

E ela aceitou que ele saciasse o desejo em seus seios, que aqueles lábios lambessem ávidos, e que aquela língua quente e atrevida lhe adentrasse o umbigo! Ela não só aceitou, ela desejou, ela exigiu! Não serei a condenada, serei a cúmplice! Sugue em meus peitos todo o prazer que você desejou, menino, e pelo qual esperou tanto tempo! Sugue tudo até meus biquinhos começarem a latejar, e doer e golpear com arrepios! Amasse estes peitos com força mas com perícia, com agressão mas com carinho! Ou rasgue meus lábios com os teus dentes e tire sangue de minha língua, para que ela silencie os gritos e no silencio eu possa ouvir os teus gemidos! Assim, queira mordiscar a borda rendada de minha calcinha roxa e invadir com o teu nariz o segredo de meus íntimos aromas! Não tenha pressa, mas seja menos tímido! Teus dedos aprisionam a fortaleza de minhas nádegas e preparam a invasão aos meus pontos frágeis! Deixarei que adentre o castelo julgando-o invadido, deixarei que duvide de tão pronta rendição. Tua língua já passeia em lábios outros, degusta meu íntimo prazer líquido, doando meia arrepios e uma vontade tão louca de deixar entrar a cavalaria!

Não pensava em mamãe, pobre Clara Selma, toda ressentimentos, agasalhados e acariciados, nem em respeito ao Sr. César, nem aos seus filhos e também de mamãe, nem em ninguém, nem em si mesma, mas no estar-com-ele, sentindo o corpo dele, com todo o desafio que o gesto representa. E ela o afastou quando ele gemia, no final ele devia estar fora, no último momento, o supremo, já estar distante! Em plena união prever a separação.

Ah! A tristeza depois do amor! Depois, ele quis ser companhia até a sua casa, afinal já devia ser meia-noite e Milene devia estar na casa da mãe, sei lá, não apareceu a nossa amiga, e deitando o braço juvenil às suas costas, a aproximar-se mais, e ela toda abalada, tremia até, recusava aquele braço como se fosse confirmação de posse, Não se aproximem! que esta já é minha!, mas que desconfiança boba, as ruas estavam vazias, é muito mais de meia-noite. Então ela se sentou sob uma marquise, ali onde funcionava a padaria até às vinte e uma horas, dia de semana, e até vinte horas, sábado e domingo, e o choro voltava, e não sabia se choraria pelas donzelas ou pelos soldados, se choraria por si mesmo ou para o sorriso sacana do seu querido, Por que eles sempre fazem essa cara de satisfeitos?

Ele, todo envolvente, sentou-se ao seu lado e novamente tentou um abraço, e ela o afastou, ele a ousar convencer a moça a voltar para o abrigo do lar, e ela o silenciou, então ele declarou ter uma idéia, um plano B, assim todo estrategista, ele devia ver muito filme de guerra, e mencionou o amigo, Amigão mesmo, o Heleno. E subiram no primeiro ônibus que passou, que devia ser o último, e voltaram à parte alta do bairro, além da garagem dos ônibus, e a praça.

O casarão todo às escuras, e Hector a contornar a cerca até o quintal, pensando em pular, e sorte sua não ter uma cerca de alta-tensão ou algum cão bravo, mas cão bravo havia e daqui a pouco aparecia!, mas ele se julgava muito esperto, chegaria a janela do quarto de Heleno, lá nos fundos e estaria a salvo, pois o cão bravo não trepa em muro, ela toda assustada, Vai que passa a polícia e a gente é presa?, mas ele tem um quê de autoconfiança que é de tirar o fôlego e arrasta a gente, e Então vai lá, mas vai rápido!

Não, Heleno, você não está sonhando! Sou eu mesmo! Preciso é que você abra o portão pra mim. Estou em apuros!” E o Heleno, num torpor, talvez a sonhar com suas loiras peitudas, acionou o portão eletrônico e segurou o cão bravo, o nome dele é Sadam, imagine!, enquanto entravam pela cozinha, Graças a Deus estamos sob um teto. E no maior dos silêncios possíveis, Sorte ninguém ter acordado, e foram para o quarto do Heleno, onde ele deixou a cama dos hóspedes para a moça tímida, e apontou o sofá para o audacioso mocinho, que não sabia como agradecer, Heleno, você é um irmão pra mim!, Quem isso, cara, você é que é muito louco!

E conseguiram dormir, e ela acordou cedo, a tempo de ver como ele dormia, parecia um bebê, mas bem poderia ser um bêbado, desses que a gente encontra caído nas ruas, agasalhados com roupas em trapos ou jornais velhos. Estaria ele tão desvalido quanto um mendigo? O que fazer afinal? O que ele poderia oferecer? Rapaz a alistar-se, ou a evitar o alistar-se, com projetos de vestibular e faculdade, sem qualquer renda exceto a do papai, então o que poderia fazer? E ela, que nem terminou o mínimo de sua formação? Poderiam ficar juntos? Poderiam fugir?

Não fugiram. Não foram capazes. Deixaram-se ficar mergulhados nos olhares um do outro, estupefactos com a ousadia da ação, agravada a todo momento em que ecoava a voz de Clara Selma, “é assim que você me paga aquela festança?”, uma eterna cobrança a pesar sobre os ombros da filha, refém de tamanha generosidade! Suspensos nos olhares e nas redes da varanda, até que a dona Joana, mãe de Heleno, acordasse e soubesse do feito do casal, “Mas vocês saíram de qual romance?” e Heleno já prepara um lanche com bolachas e geléia, e chocolate quente. Enquanto Joana conhecia Sônia Regina, Hector chamou o Heleno à parte, e logo explicou que passaria em casa para “levantar uma grana”. O que ele nunca deveria ter feito, pois certamente foi seguido.

Mas foi em casa, disse uma mentira qualquer, não deve ter percebido o vulto do padrasto dela, e voltou logo, quando ela, na sala, escolhia CDs junto ao aparelho de som e queria dançar. Dançar junto dele, entenda-se, ele todo tímido, nada entendia de passos e giros e ficou estático, enquanto ela rodopiava e flutuava ao som de certo sucesso pop dos dançantes anos 80, com letras românticas e sonoridades de transe eletrônico, “Essa não é a primeira vez que você tenta ir embora”, diz a canção, e ele segurava firme pela cintura, e ela o arrastava com gestos e sorrisos, os cabelos ocultando o brilho no olhar, “Vá – Não vá! Não poderia ficar comigo mais um dia? Se nós aguentarmos mais uma noite...”, diz a canção, num refrão que não era euforia, mas desabafo.

Sônia Regina saiu do cemitério, junto com o casal, e percebeu que a moça não ocultava os olhos vermelhos, enquanto o rapaz era todo silêncio. Junto ao carro, sob a tília em flor, ela se encolheu e ele a abraçou. Depois, entraram. Em manobras curtas, semicirculares, o veículo deixou o estacionamento e desceu rumo a Avenida Pedro II, até deixar um apagado brilho de farol.

O farol então sumiu e Sônia Regina notou finalmente o escuro da noite. Fez às pazes com a penumbra da rua a surgir à frente, onde seguiria meia centena de metros até a próxima parada de ônibus. Aconchegou o caderno e o livro ao peito e contava os passos, assim fizera naquela distante manhã, dançante, dançando com ele numa brisa a tornar-se tempestade, aquela tempestade de um dia, um dia apenas em que viveram tudo de uma vez!

Ela, cansada de dançar, deixara-se cair na poltrona, e ele foi cair sobre ela, a apertar seu corpo e sugar seus lábios, numa ansiedade imensa que toda uma espera legitima, “Isso tudo parece um sonho, Sônia!”, ele dizia, menos sorrisos, algo solene, com temores de que pudesse enfim acordar. Não se preocupe, querido, logo vai tornar-se um pesadelo. E ele trocou a trilha sonora e o arrastou para a placidez da varanda, sob as samambaias e os crisântemos, e o abrigou em seus braços, como o reconhecimento da longa espera dele, e o ocultou em seus seios, que palpitavam com toda a brevidade do prazer,

Quem um dia irá dizer que existe razão
Nas coisas feitas pelo coração? E quem irá dizer
Que não existe razão?”

Então, você gosta de Legião Urbana?”, ela queria agradar e assim esperava que a música agradasse. O olhar dele confirmou e ouviram, abraçados, sabedores das tantas diferenças, não tanto quanto os protagonistas da canção, que se amavam em mútuo completar, sim, a menina mística, o menino moderninho, a menina avançada, o menino aprendendo.

E sob a morte-vida da canção, enquanto talvez previssem a brevidade daquele romance, na loucura de um gesto de evasão, perdidos na noite, embalados na canção, abrigados sob o teto de um amigo, um atento ao mistério do outro, aqueles olhares e aqueles cheiros, aquelas descobertas de prazeres, aqueles dedos em carícias e aqueles lábios nos mamilos, aquele volume de que ele se orgulhava e aquela procura de nunca acabar. E nem ousariam juras eternas, pois sabiam que o dia seria único e breve, e almoçaram diante do Heleno, e sua mãe, Joana, mas como se estivessem sozinhos, mais nutridos pelos olhares cúmplices do que pela salada e os espaguete. “Hector, eu sempre considerei você um rapazinho ajuizado, e agora você me apronta essa!”, reprovava a dona Joana, ainda que com olhares de simpatia, e Sônia já estimava aquele apoio velado, toda uma atenção que desconhecia, vivendo entre os “fascistas”, como dizia o Hector, vivendo com uma mãe “irmã do Mussolini”, como dizia, ainda, o Hector, e achando que diálogo fosse uma espécie de benção só destinada aos Eleitos, aos Iluminados, mas ali o Heleno e sua mãe, Joana, descontraídos, recebiam o telefonema da irmã do Heleno, a Helena, não a de Tróia, Helena que é noiva e vai chegar daqui a pouco, e todos aproveitam a sobremesa com chocolate e licor.

Sônia Regina lembra, enquanto espera o ônibus, sob a sombra do muro do cemitério, que ainda ousara uma visita à dona Joana, duas semanas depois, com a mudança marcada, pois seus pais não mais hesitam em afastar a filha de certo ambiente e certo rapaz inconsequente, coitados!, e a muto simpática dona Joana, ainda tão jovem, em conversa jovial num frescor de tarde e comeram pudim e beberam chá de camomila. Não ousaram abafar as lembranças daquele dia e mencionam o Hector, que a terra engolira, o moço morrendo de vergonha, ele obrigado a se afastar, sem rumo no jogo das famílias, que trocavam ofensas patéticas, onde ela, Sônia, era “dessas garotas fáceis”, e ele, Hector, era “um sedutor descarado” ou “um raptor de garotas ingênuas” e, não demorou nada!, ele e ela dedicaram-se a uma troca de ressentimentos. Sônia ainda o encontraria uma última vez, sem sentir qualquer resto de afeto, mas a dona Joana nada saberia.

Foi no fim da tarde que mamãe e o Sr. César finalmente surgiram nas escadarias, acompanhados pelo Sr. Ramiro, o pai do Hector, mas antes Helena deu-se a conhecer depois do almoço, a sensacional Helena!, já apaixonada pela Sônia, e a revelar que Hector não escondera uma paixão por ela, a Helena, mas toda sorrisos, coisa do passado, ela ainda debutante, quando Hector passou a frequentar a casa, o amigo do Heleno, em estudos juntos, unha-e-carne, as lições de matemática ou montando aquelas experiências dos livros de Ciências, dissecando rãs ou fabricando sabão com sebo ou abacate!, sem poupar críticas às bandas pop que Helena ainda ouvia, e aquele vinil do Oingo Boingo não seria dela?, ah, o Hector!, amigo do irmão, mas de olhos grudados nas pernas dela, quando ela andava pela sala, mas o Hector é gente boa!

E as duas ousaram um banho juntas, para desespero do Hector, disposto a dar a vida para contemplar, por apenas um segundo, aquelas duas musas nuas, as duas belezas desejadas, e ele em rodeios diante da porta do banheiro, ouvindo os risinhos delas, claro!, até surpreendê-las de toalhas, elas correndo, mais risinhos, protegendo os peitos, com os cabelos molhados, gotejando ao longo do corredor até baterem com estrondo a porta do quarto de Helena, e quando é ele ao banho, elas é que se apoiaram à porta, ouvindo os barulhos que ele fazia, se gemendo ou não, pois Helena, maliciosa, apostava que ele se punhetava todo, todo tesão, não é, menina?, pois não somos pouca coisa não, que somos duas 'miss', não é?, e ele tem mesmo é que ficar com água na boca, e ele demorava-se, mas saiu todo cheiroso, descalço, aqueles pés brancos marcando o corredor até o quarto de Heleno, a exibir o peito nu, a cobrir-se lentamente de pêlos, e um volume sob a toalha enrolada na cintura, e ria-se aos risinhos delas, e fazia gestos na intenção de deixar cair a toalha, mas era só brincadeira, hóspedes eram em casa de amigos, não vamos abusar!

E mamãe e o Sr. César chegaram e acabaram com a festa, e a dona Joana conversava com mamãe e o Sr. César e o Sr. Ramiro marretavam o pobre Hector, que agora se encolhia, e se humilhava aos olhos dela, que queria, ainda aquela manhã!, fugir com aquele herói, que herói que nada! Nada mais que um moço a gaguejar diante do pai, o sério Sr. Ramiro, e diante de César, o padrasto, que por pouco não o esmurrou ali mesmo, mas trata-se de residência alheia e não podemos abusar. “É assim, minha filha, que você paga todos os nossos esforços?”, gritava mamãe, aquela Clara Selma, toda possessa, “Mas ela não é grata, essa sua filha!”, bradava César Souza, este senhor grisalho entre nós, ecos do que depois descobri em “Romeu e Julieta”, quando desembestei a ler Shakespeare e outros lunáticos, no bom sentido da palavra, e mamãe a arrastar-me sem preocupar-se com os olhares nada aprovadores de dona Joana, que sabia tratar seus filhos, que sabia olhar nos olhos e simplesmente conversar, e ali mesmo mamãe começou a falr em mudança, e que eu seria levada para longe de certo “mau elemento” e nem ousava olhar para o Hector, e quando finalmente olhou, já indo embora, disse “Eu esperava mais de você, rapaz”, e não sei quem entendeu isso, e ele ficou a olhar pra mim, quando me arrastaram, ele ao lado do pai Ramiro, agora silencioso, longe de estar orgulhoso do filho, pois o Sr. Ramiro é “homem honrado e cumpridor de seus deveres”, assim o Hector dizia também, e o Hector ficou todo olhares, e eu aceitei ser levada embora e jogava olhares para trás, não, apenas uma vez, e ele ainda estava lá.

O vulto de um homem descia a rua e o ônibus não surgia. Não que sentisse brotar o medo, mas Sônia Regina sentia um novelo de emoções pesarem sobre o estômago. Ela, que nada comera desde o almoço, sentia um golpear confuso de congestão e fome, de algo que se acumulava e não saía, até que forçasse um vômito, ou gritasse para a altivez dos muros, ou ofendesse com injúrias o senhor que se aproximava, e que até parecia um pouco com o pai do Stevam, outra figura, o Sr. Olavo Lucena, mas era tudo uma anacronismo só, pois quando vislumbrava o Hector ao lado do Sr. Ramiro, nunca poderia imaginar que no mundo haveria um Sr. Olavo, pai de outro estranho rapaz, o Stevam, que só agora, coisa de menos de um ano, ela conhecera. E aquele senhor também estava à espera do ônibus, e à espera de um acontecimento, ou indo para casa ou seguindo para a noitada. Outro vulto nas sombras.

Noite que prometia e noite em que Sônia Regina queria encontrar abrigo. Abrigo não encontrado nos braços de Hector, filho daquele Sr. Ramiro, “homem honrado e cumpridor de seus deveres”, que voltava com o pai para casa, a ser reprovado aquela noite e para toda a vida, pois Sônia nada saberia, nada sabia agora, “Onde está o Hector?”, e o senhor ao lado olha como se ela fosse daquelas loucas a falarem sozinhas, mas é que o Hector já deve estar na faculdade, já pode estar conquistando uma noiva, já deve ter se esquecido de uma garota chamada Sônia Regina Dalmas que ele agarro aos dezoito anos, isso se o Hector estiver vivo...

Ela só o reencontrara uma vez depois do drama, de sonhos e projetos, olhares e beijos, e por intervenção de um amigo em comum, confidente das duas famílias, tipo um Frei Lourenço entre os Montecchio e os Capuletos, para continuar plagiando o clássico inglês, que conseguiu marcar, de parte a parte, um encontro num restaurante, para que conversassem e confessassem, pois o amigo em comum era justamente um padre!, Padre Gustavo, justamente, e ele, diplomata à mesa, deixa o casalzinho à sós, para que se aliviem das mágoas, que reconheçam que não passam de péssimos atores numa encenação escrita por outros.

E o Hector todo cordial, todo remorsos, que não deviam ter feito aquela loucura, querer fugir da família, que agora seremos afastados, que deveríamos é ter paciência, mas toda aquela ladainha me enervava, “Olhe, Hector, não sei quanto a você, mas eu não me arrependo de nada!”, não queria ser grosseira, mas ele se entregou a um silencio resignado e passou uma carta, em folha toda dobrada, onde me considerava “única e insubstituível” e que jamais me esqueceria, e que eu me cuidasse quanto a minha família e quanto a minha família e quanto a outros amantes, agora que estaríamos separados, e aquela aceitação dele, como se fosse destino, e aquela covardia toda, como se fosse resignação heróica, me enervaram tanto que me levantei, deixei-me ser abraçada e fui embora.

E o senhor ao lado lança aquelas olhadelas de sutileza, a pensar o que uma mocinha, assim toda de luto, faz aqui, junto ao cemitério, neste anoitecer de luar e certo vento, uma mocinha que talvez o interessasse, ou passeasse em seus pensamentos e desejos, com essa pose de senhor tão respeitável. E desde que se acostumara a esses tipos, desde que ali morava, meio à boêmia do bairro Santa Tereza, longe da calma da periferia, lá nas ruas escuras do Barreiro, onde crescera correndo para chegar à escola, onde corria para alcançar mamãe em passeios e tantas compras, quando.

Mas o senhor levanta bruscamente o braço! E ela, encolhida, é cegada por um farol, ensurdecida por freios gementes! Contudo, aliviada! É o ônibus que esperava! E o senhor, gentil, a deixa subir primeiro.






(Fim do Capítulo I)



LdeM
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sábado, 11 de setembro de 2010

final do cap. 6 da Parte 1 (Náuseas de Estudante)





Julho/2001

G-8 em Gênova, Itália. Autoridades esperam cem mil manifestantes.

Multidões cinematográficas.

Batalha campal. Confronto com as tropas de choque, os carabineri. Grupos anarquistas em táticas de protesto midiático forçam os policiais a defenderem se atacando.

Carlo Giuliani, máscara, rolo de fita adesiva no braço, é atingido no rosto. Tem vinte e três anos e em seguida será atropelado. Ao redor do seu corpo a exótica geografia de um lago vermelho.

Polícia genovesa continua alegando auto-defesa.





HD e os poentes derramados nas vidraças do apartamento. Ali mergulhado nas sonoridades viajantes de bandas psicodélicas, “Soon oh soon the light...”, num regresso a uma imaginária década de 70, ao lado dos rebeldes de longos cabelos, ao lado dos manifestos pacificistas, ao lado dos filhos dos sobreviventes da Segunda Grande Guerra.

Poentes que se deixavam ficar em cores ora douradas ora esmaecidas nas vidraças, mais ali dentro do que lá fora, quando ele, inclinado sobre a escrivaninha, lia aqueles romances em calhamaços de folhas já amarelas, onde gritos e sangue habitavam as entrelinhas, entre os símbolos tipográficos, como uma imagem atrás do espelho, ressoando e gotejando.

HD e sua vida tediosa, debruçado sobre as narrativas heróicas da Segunda Grande Guerra com seus avanços e retiradas, com os armamentos e os massacres, com a técnica e a histeria, onde a batalha se apresentava à porta e aposentos dos pobres civis, reféns dos exércitos ensandecidos, nos quais os próprios generais se perdiam em suas neuroses, com seus combatentes ao front, afundados em trincheiras ou massacrados em bombardeios ou esmagados por fileiras de tanques blindados e tudo tão insano quanto seus líderes, seus duce, seus fuehrer, seus generalíssimos, seus secretários-gerais, seus primeiro-ministros, seus estados-maiores, seus alto-comandos.

Fora o heroísmo das vítimas, confinadas entre quatro paredes, nos sótãos escuros e mofados, ou nas adegas frias e úmidas, sejam judeus ou comunistas, sejam famílias húngaras ou exilados russos braços, sejam estudantes polacos ou guerrilheiros iugoslavos, não importa, todos de uma forma ou outra, pobres companheiros de uma Anne Frank, reféns, prisioneiros, vítimas da guerra que inoportuna visita às suas portas, sob o clarão diurno do sol ou o clarão noturno dos foguetes, vem de súbito ocupar suas cidades, suas ruas, suas casas, quando todo o mundo se torna parte do imenso e grotesco campo de batalha!

Onde o heroísmo dessas vítimas? Onde o nosso heroísmo hodierno? onde também somos vítimas... Parando em cruzamentos e expostos a armas e lâminas, ou infelizes alvos de balas perdidas ou pálidos reféns de reis do tráfico, ou cúmplices inconscientes da epopéia trágica dos menores infratores, ou humildes e cegos cidadãos encurralados em praças quando de seu matinal ou vespertino cooper, ou mocinhas violentadas e abandonadas em madrugadas desertas do anel rodoviário, ou estudantes esfaqueadas por se recusarem a entregar o tênis de certa marca globalizada, ou idosos abordados em portas de agências bancárias quando levam, além do resto de esperança, um abrigo monetário para remédios e sobrevivência, ou pais-de-família deixados nus no salve-se-quem-puder das terras-de-ninguém dos viadutos metropolitanos, ou, ah, por favor, deixem-me! Deixem-me com minhas narrativas épicas, com os heróis de aço e sangue, longe destas mesquinharias do nosso cotidiano, de nossa civilização e seu poente!




Na hora de ‘puxar angústia’, nos bancos ali da Praça, diante dos bustos solenes dos pais da pátria, em alamedas de ares cinematográficos, com aqueles vultos idosos a relembrarem um passado além da literatura, da qual ambos se deixavam empaturrar até a indigestão, e ao transbordar.

- O grande Nada que somos!

- Como assim? O grande Nada? Somos os herdeiros da razão iluminista, não? Somos os além-do-homem, somos os ‘homens-ocos’, somos os assassinos de deus, aliás, somos os deuses!

- Você está viajando...
- Ao contrário! Somos, ao menos, os assinantes de revistas semanais, somos os torcedores do Flamengo, ou do Atlético, somos os consumidores ávidos, somos os endividados dos “50 anos em 5”, somos os reacionários de plantão, somos os iludidos (ou desiludidos) com o progresso, somos aqueles que devastam o planeta, somos os “últimos românticos”, somos os navegantes dos mundos virtuais, somos os leitores de jornais (sensacionalistas), somos os colecionadores de gibis ou carros m miniatura, somos os desempregados estruturais, somos os individualistas culpados, somos, o que?, somos os bastardos da “indústria cultural”, somos os revolucionários de carteirinha, somos os “anarquistas graças a deus”, somos, mais o quê?, somos os “belos e malditos”, somos os deserdados do Estado paternalista, somos os fundamentalistas high-tech, somos os clientes do mercado global, somos os que rabiscam poemas nas noites de insônia, somos os que guardam cartas de amor, somos os que esperam a salvação, somos o “ódio aos burgueses”, somos os viciados em garotas e cinema, somos os assumidos e travestidos, somos os que “puxam angústia” na praça, porque lemos isso num romance, somos...

- Somos é um poço infindo de paciência, isso sim, meu caro Hector!




“Pronto, terminei!”, exclamou HD na solidão do seu quarto. Olhou pela janela lá fora, e viu o mar e a maré de edifícios a cobrirem-se de luzes, de frestas luminosas. Deu uma olhada para a tela, trocou um “ç” por um “ss” e salvou o arquivo no “Meus Documentos”. Mais tarde, talvez aquela noite ou madrugada mesmo, ele cuidasse da revisão. Por enquanto limitava-se a recostar-se na cadeira e pensar.

Ao número n de contos existentes no mundo fora acrescentado, logo n + 1. Sendo n um número finito, mas impossível de calcular. Quantos contos existem? Considerando-se todos os povos e idiomas. Milhões, não? Como calcular? E o que era um “conto” afinal? Uma narrativa curta? Uma estória concisa? Uma episódio que se esgota em si mesmo? Não sabia. Mário de Andrade dizia que um “conto” era o que o autor considerava um conto. E ponto final. Então, ele, HD, terminava aquela curta narrativa, se despedia das personagens e suas vidas, e dizia para si mesmo, “escrevi um conto”.

E quantos outros não faziam exatamente o mesmo – agora? (igual quanto transava e ficava imaginado quantos casais estariam na mesma situação!) Nada impede que agora um chinês em Beijing acrescente um último parágrafo ao seu próprio conto, em perfeito e estilístico mandarim, e um russo pingar um ponto final (no idioma russo há o ponto final?) em seu conto, em uma dacha nos arredores de Petersburgo, e um alemão esboce, com caligrafia atribulada, um conto, em uma casa pré-fabricada na periferia de Hamburg, e um escritor judeu norte-americano, quiçá futuro Prêmio Nobel!, digite a frase derradeira de seu conto, a ser premiado por importante revista literária de New York!

E, em seu quarto, HD acrescenta o conto n+1 ao espólio cultural da Humanidade, e contribui para a enxurrada, a cascata, o verdadeiro Salto Angel, ou Niagara Falls de informações que se acumulam nas bibliotecas, faculdades, colégios, arquivos de computadores, apostilas, documentos, redações, serviços secretos, que se acumulam e afogam os homens, os civilizados, os cultos, num caos de desinformação – causada por excesso de informação!

É impossível ler todos os livros, folhear todas as revistas, ouvir todas as bandas de rock, acessar todos os sites, imprimir todos os arquivos, comentar todos os ensaios, ler todos os e-mails, responder todas as cartas, divulgar todos os eventos, idolatrar todas as musas do cinema, ah, absurdo dos absurdos, hoje amaldiçoamos a nossa cultura, o acúmulo de milênios, num profundo mal-estar e caímos todos no sambódromo dos lazeres fúteis! Ou alguém se importa com o recém-encontrado conto inédito de um Tchecov?

E HD desliga a máquina, a resolver deixar para amanhã a revisão do conto, pois chega a intimamente temer que, caindo na vertigem de uma súbita náusea (daquelas sartreanas mesmo!), selecione tudo e aperte um “delete” (apagar)!



Provavelmente foi a fome que despertou HD naquela noite de domingo.

Girou o corpo e ligou o walkman junto à cabeceira. Depois do solo de guitarra, o locutor informa prestativo serem vinte horas e trinta e cinco minutos, e aí vem um bloco com duas músicas do mesmo artista.

Tirou os fones e resolveu levantar. Pés descalços no chão frio, pois nem se lembra dos tênis. Assim a dormir demais? A beber demais? Uma boa noitada de sábado! Beijou alguém?

Recapitulemos. Chega de madrugada. Dormi até às duas horas da tarde. Almoça (o último freguês!) na churrascaria assistindo a um final de filme (daqueles nada inéditos!) e u programa de auditório dominical com aquele apresentador-inflado-que-se julga-engraçado.

De volta a pensão, dormira novamente. E o celular acusava duas mensagens recebidas. Darío Sabine. Flávio Toledo.

Agora abre a janela e descobre que chovera à tarde. O ar úmido e frio invade, a levantar levemente as cortinas, meio envergonhadas. Nuvens de vaporação junto aos prédios e ruas novamente se ressecando.

Gasta um tempo, lavando o rosto (para ver se acordava!), trocando a roupa, enquanto medita seriamente se pede uma pizza. Não, já comera pizza ontem! E nem que fosse de calabresa! Melhor um sanduíche natureba (daqueles que o Sabine adora!), mas então precisaria comprar pão de forma.

Desceu até a portaria, ouviu a vinheta musical do Fantástico vazando por debaixo da porta da senhoria, e caiu logo na noite. Muito agradável, aliás.

As ruas logo estarão secas, mas as poças de lama são um perigo ao transeunte desatento. Como é o caso de HD, semi-sonâmbulo.

A menina se chamava Raquel ou Rose? Ou Isabel? Olhos negros, cabelos em cachos. Mas detestava política. Preferia discussões sociológicas sobre as bandas do hit-parade, as inglesas para os de classe média e deprimidos, e as ianques, pop-grunge, para os proletários, mas ‘deslocados’ (ela dissera assim, descolados, nem deslocados, nem revoltados!), e pedia, se pausas, refrigerante de limão (e ela pagando o próprio gasto!)

Talvez Rose, Rosa. Flor, mas nada de romântica. Calça jeans e sem maquilagem. E ele bebeu o quê? Caipirinha, certamente. Pois cerveja era um tédio. E vinho somente o de qualidade. Mas ele andava sem grana...

Na esquina, descobre que a padaria está fechada. Na verdade, acaba de ser fechada. Poucos segundos antes. Ainda havia luz lá dentro...

O jeito agora é a loja de conveniências do posto, mas é pros lados da Contorno. Fazer o quê? Mas nessa lerdeza você vai chegar lá no ressoar das doze badaladas!

Mãos no bolso, contando as moedas, conferindo mentalmente o valor das notas na carteira. Enquanto isso, nuvens se formam acima da sua cabeça.

Esquece das poças, molha os tênis. Também quase-adormecido segue o trânsito, a vida por trás das vidraças, os olhos mesmerizados diante dos espetáculos fantásticos nas cores da TV. Sim, apenas os brilhos de mil cores dos televisores! E carros raros. E pessoas, raramente. E um sono quase eterno sobre as coisas. Mas que vai durar até a aurora... Amanhã é segunda-feira...

Sim, amanhã é segunda! Mas por enquanto é domingo, é fantástico, é globeleza, é namoro na tevê, todo mundo na nostalgia do fim-de-semana, aproveitado ou perdido, pois amanhã é (irrevogavelmente!) segunda-feira, monday! Monday is money!

Mas nada diferente para ele. Sem emprego. E sem aulas. A greve promete se estender e daí não nascerá nenhum domingo sangrento e nenhuma revolução. Apenas não vamos cumprimentar o senhor reitor e vamos pagar as aulas ns férias de verão. Assim, nada há de diferente na segunda-feira (monday is money!) que vem chegado. A cada paso. O domingo agoniza, a segunda-feira revira-se no útero do tempo.

A segunda-feira! A promessa para os trabalhadores, para os patrões para os banqueiros, para os funcionários públicos, para os policiais e soldados, para as donas-de-casa, para as empregadas domésticas, para os agiotas, para os narco-traficantes, para os acadêmicos, para os mafiosos, para as aeromoças e comissários de bordo, para os vendedores de enciclopédia, para os representantes de seguradoras, para... Em suma, para o lucro e o prejuízo nosso de cada dia.

A segunda-feira! Mas ainda é domingo, e sentimos a agonia, lenta e cruel, do ócio que finda. É domingo e o táxi passa, é domingo e a única mocinha nas ruas espera o ônibus, é domingo e o único movimento são os jovens com um carro e seu potente som, abalando a avenida e o posto, com os últimos sucessos e batidas das pistas de dança, enquanto os frentistas até se animam a dançar junto para esquecer o cansaço e o tédio.

Ainda é domingo e façamos as nossas compras, pagando quinze por cento a mais, devido ao local e ao horário. Afinal, é domingo!
Ele juntou os pacotes, conferiu o troco (sempre esse cuidado!) e voltou pelo mesmo caminho.




- Se estou ligando tarde? Dez horas? Mas é domingo à noite! E foi você que enviou mensagem! Pra saber o resultado do concurso público? Mas eu nem fui fazer as provas! Estresse total! Vou tentar aquele da Biblioteca Municipal. Em setembro. Ah, sim, o mês que vem! Semana que vem! Mas a inscrição é até dia vinte. Isso se o mundo não acabar antes! E a pesquisa? Se engavetada? Na verdade, pesquisa tem pouco apoio. Os estudantes nem se interessam. O lance é pegar um diploma e enfrentar o mad max que é o mercado. Si, a universidade virou supermercado, self-service, sei lá. E o que mais aparece é revendedora de diplomas. Aquela velha história: sucatado o ensino público, sobra para o setor particular tirar um lucro bacana. Do you understand me? Se eu estou bêbado? Acha que passei do ponto? Eu passei no posto e comprei pão e vinho. Para a ceia. A minha Santa Ceia! Sanduíches natureba (do jeito que você gosta!) e vinho do Porto. Qual o problema se gastei um quinto da minha mesada? Eu, bêbado? Don’t kidding! Embriagamo-nos sim! Para esquecer, par suportar o fardo (não dizia o maldito poeta francês, ou poeta francês maldito?), para fugirmos de um mundo patético, onde está tudo errado. Mas o mundo continua e nossa embriaguez (desde o ébrio Noé!) o mantém, nossa permanente alienação o sustenta. Embriagamo-nos sim! Para esquecermos nossa condição, e embriagados permitirmos que tudo continue sendo o que é. Sei, sei. Sei tudo isso. Já li a cartilha, eu caro Sabine. Que não devemos fugir, mas permanecer prontos para a ação! Que devemos modificar o mundo! “Os filósofos se contentaram em interpretar o mundo, mas o importante é transformar o mundo!” Modificar o mundo, e não se drogar, não se entregar a putaria... Mas diga-me como vamos viver sem diversão, entretenimento? “Tudo bem, dissipação de vez em quando é bão”, não é o que diz a música, aquela do Skank, mas não continuamos “pacato cidadão, o pacato da civilização”? E não conseguimos ficar sozinhos, não é? Mesmo solitários nas multidões. “Não se pode deixar o indivíduo sozinho, entregue a si próprio”, já dizia o Marcuse, aquele mesmo, o de 68, contracultura, sei, mas não precisa muito, basta ler (com atenção, claro) o romance do Orwell, “1984” ou aquele do Huxley, “Admirável Mundo Novo”, onde o cidadão nunca está sozinho, isso para ele não pensar. Porque se você parar para pensar, você desiste! Pensar um pouco mais nos levaria ao desespero, por isso ‘eles’ pensam por nós! ‘Eles’? Não só papai ou mamãe, ou a mídia, mas ‘eles’, os que tentam seqüestrar nossa subjetividade. “O crime de pensar não implica em morte, o crime de pensar é a própria morte”, está no livro do Orwell. Pois pensar é ir-além do ‘que é’ e imaginar um ‘devia ser’, mas a ordem social está aí, todo mundo de televisores ligados recebendo pronta a interpretação do mundo. Quem me dera receber um projeto de vida pronto, que não precisasse de constantes decisões! (Por isso muitos buscam o consolo das religiões!) Ter aquele ‘sossego’ dos regimes autoritários, onde o Chefe, o Condutor, o Grande Sábio, ilumina o caminho e decide sabiamente a nossa felicidade futura! Como você mesmo já disse (acho que foi naquele almoço lá na Direito...) vivemos numa democracia em construção e precisamos arcar com as conseqüências de cada decisão. Se eu estou falando tudo rimado? Sei lá! É que ando lendo muita poesia! Mas deixa eu falar, pô! (Está ouvindo uns barulhos, ruído na linha? Tem extensão aí? Alguém está nos ouvindo? Não, eu não sou paranóico, e não assisti ao filme, qual o nome?, “Teoria da Conspiração”? Não assisti. Não vou aos cinemas, e não tenho TV, e muito menos aparelho de vídeo. Nem ler em metrô, ônibus, eu leio mais. Cansei. Nauseado. Não li o último episódio do bruxo juvenil e sua simpática coruja, nem acompanho a última série de Stephen King. Cansei, my brother. My Big Brother! Horas de lazer, cinemas, cento e oitenta graus ou não, excesso de propagada comercial, excesso de jornais (quantos você lê por dia? Eu lia cinco! Mas parei, desisti! “Mentir sozinho eu sou capaz”! dizia o Raul), excesso de mercadorias, promessas de felicidade, prazeres supérfluos (sim eu sou do ascetismo como todo bom leninista, moderação e planejamento, meu caro!), excesso de emissoras de rádio, um completo excesso o nosso mercado de bens de consumo, e de bens, e de serviços (personalizados ou não), para a nossa reacionária classe média, para a nossa inculta elite! Sim! Pois o problema antes, vide Indústria Cultural, capítulo 4 de “A Dialética do Esclarecimento”, de Adorno e Horkheimer, era a programação destinada às pessoas incultas, mas hoje a programação é feita pelas pessoas incultas! Nietzsche já avisou! Toda uma elite sem cultura! Quem vai ler Mann e Proust? Quem conservará Mozart e Debussy? Entendeu por que a gente não pode pensar? Ter sonhos, ideais, planos de vida é sofrer decepção. O melhor é seguir o comum, o que parecer pela frente. Ainda que desejem ideais e aspirações o tempo todo sobre a gente, com apelos e propagandas, senão o sistema entre em crise, quem vai consumir? Mas tudo isso, essa de nutrir aspirações, é semear frustração, num mundo onde o vencedor leva tudo, é, “winner takes all”, e como disse o louco Quincas, “Humanitas!”, “aos vencedores as batatas” – fritas! Como sobreviveríamos a tantos imperativos de “consuma isto”, “compre aquilo”, “seja feliz: use o sabonete tal”? Como decidir? (sim, pois você não pode comprar tudo, certo?) pois somos condenados a decidir, não é? Você está m ouvindo, Sabine? Ainda? Pois é. “Estamos condenados a liberdade”, não dizia o francês, o outro, o filósofo, o Sartre. Precisamos decidir, pois as escolhas nos esperam a cada bifurcação da estrada. Fico com a ruiva inteligente ou com a loira boa de cama? Faço Direito ou Medicina? Compro casa ou apartamento? Inicio o mestrado ainda este ano ou vou descansar em Cuba? Entende? Mil escolhas esperando o quê? As nossas decisões! Decidir com base no que sabemos AGORA – e sabemos tão pouco! Na lama da ignorância nós escorregamos! E somos responsáveis por esta decisão, escolhendo A ou B, diante de um eu-futuro, quiçá mais culto e esclarecido? Pois podemos ironizar amanhã a decisão de hoje! O Hector de amanhã atirando pedras no Hector de agora! E inutilmente! (Pois não apenas os outros nos levam a julgamento, mas sobretudo nós mesmos! Claro que os outros são cruéis! Atira e pedem a identidade depois, apedrejam e depois perguntam qual foi o pecado, crucificam e só depois indagam se se trata do Filho do Homem!) Peraí, Sabine! Só um exemplo. Um dia resolvi reunir... Você está me ouvindo? Pois é. Reunir um material que havia escrito, para ver se publicava algo. Rabiscos de 98, 99. Aí quase rasguei tudo. Pouca coisa prestava. Mas não acho certo, não acho digno, isso de ficar julgando a mim mesmo... Ou quem quer que seja aquele de dois anos atrás! Aquele outro Hector, que inda é parte de mim. Viveu intensamente aquele momento em que escreveu aqueles textos. É o eu-de-agora julgando o eu-de-ontem, que será julgado pelo eu-de-amanhã! Mas cada um vive um momento singular, e toma decisões a partir do que sabe! Pode então ser julgado? Não importa se amanhã não julgar o texto, que escrevo hoje, genial! Pois é o genial agora! E ficar debatendo isso é tão ridículo quanto discutir o ‘conflito de gerações’ (generations crash!), como se pudéssemos ironizar os alemães que deram início a Segunda Guerra Mundial ou condenar os norte-americanos por terem encerrado a mesma guerra com bombas atômicas! Podemos realmente pensar que se lá estivéssemos faríamos tudo diferente! Claro, você concorda comigo. Tem razão. É assim mesmo. Uma geração inventa algo que está carregado de sentido e bom senso. Mas aí a próxima geração não compreende e passa a ridicularizar. Afinal, por que andar por aí com uma bengala de freixo (ou ‘ashplant’, se preferir)? Ou usar um chapéu de feltro? Ou por que escrever cartas de amor? Ridículo isso. Não só as cartas de amor... Sei. Mas fala mais alto, sua voz está sumindo... concordo. Pensei nisso um dia. Aliás, quase todo dia. Se a História faz sentido. É mesmo um pesadelo, como pensava o Joyce. Inclusive é dele aquela imagem do chapéu de feltro e da bengala de freixo. É, o Stephen Dedalus em pessoa! E se hoje fosse Bloomsday eu até animava a ler o trecho do episódio quinze. Ashplant. Sugestivo... Mas será que a minha vida tem sentido? Será que continuarei, de episódio a episódio, a andar e perambular, com olhar andejo e alma flâneur? Não serei alvo de quadrilhas de seqüestro? Não serei raptado por mafiosos? Não serei abduzido por alienígenas? Não passarei nenhum Cabo das Tormentas? Não acordarei transformado num medonho inseto? Não serei subitamente processado? Não serei seduzido por uma secretária loira e peituda na ante-sala de um consultório odontológico? Não serei envolvido em alguma conspiração? Não serei torturado no porão de alguma ditadura? Não serei eleito par cargo público? Não serei o novo líder da nação? Não serei o próximo ídolo pop? Não converterei as massas à uma nova religião? Serei somente aquele que anda e anda, a observar os passantes e os fatos e nada fazer? Vitrines com modelitos nos quais não posso tocar? Como é que é? Se estou angustiado? Imagine! Você não sabe o que é angústia. Lembra daquela parábola no “Encontro Marcado”, do Sabino? Sobre o homem que busca uma pedra que transforma metal em ouro, e pega pedra por pedra e batia na fivela do cinto feita de metal, para ver se vira ouro. Assim pedra por pedra, andou e andou. Aí um dia, ao descansar, ele percebe que a fivela tinha virado ouro! Mas quando e onde aconteceu? Ele teve a pedra mágica nas mãos e a perdera por desatenção, então o que ele faz? Começa tudo de novo. A busca. O alvo sempre além! A angústia, meu amigo, my only friend. Acha que estou passando da conta? Acha melhor eu desligar? Quer que eu morra de tédio? Quer que eu me atire desse prédio? Não estou sendo sarcástico? Eu perco a sua amizade! Que isso, Sabine! Nossa amizade tem história! (Não sei se tem sentido, mas tem história!) E nossas discussões desde darwinismo, revolução francesa, revolução russa, Hobbes e Leviatã, as confissões de Rousseau? E aquela discussão que o Flávio começou depois de assistir ao filme “Matrix”? Sim, eu sei. Nem você, nem o Alex conseguiram assistir o ‘movie’. Violência demais? Efeitos especiais demais da conta? Mas pense, noite após noite, as salas de cinema ficam lotadas de pessoas que ávidas assistem a cena s de sofrimentos, torturas, assassinatos, massacres. Vivenciam a violência simbolizada. Toda uma violência que varreram, ou procuram varrer de suas vidas. A monotonia arduamente construída requer a violência esteticamente arquitetada. Imaginemos pessoas que não demonstram qualquer ímpeto violento. Um funcionário público. Um arquivista. Pois bem, este homem senta-se à sua mesa de trabalho, num escritório sóbrio e ordenado, preenche documentos, responde memorandos, e depois, cumpridas as tarefas, passa a esboçar, no verso de um ofício rasurado, um longo conto policial noir, onde nos agride um pavoroso assassinato... Este deixa vazar o peso que sofre... Todo um fardo social... Que fardo? O fardo social pesando (o motor da inércia social) os que muito possuem defendem a posse, os que pouco possuem vivem de promessas, os que nada possuem vivem de esperanças de possuírem também, e os que muito possuem arregimentam os que pouco possuem para manter longe os que nada possuem! Hein... Você está com sono, Sabine? Acha que eu devo desligar? Está citando um poema para me consolar? Ah, eu conheço este poema do Drummond, “Se procurar bem, você acaba encontrando/ não a explicação (duvidosa) da vida / mas a poesia (inexplicável) da vida”. Então, boa noite, Sabine. E desculpe aí qualquer coisa. Como é que é? Eu estou falando demais? Ah, mas isso eu já sei.




Aceitando o convite de Flávio Toledo, HD encontra-se diante do amigo, no restaurante A Romana, pois voltavam a compartilhar apreensões sobre como conseguir emprego. Verdade que Flávio poderia assumir a gerencia do restaurante da família, as havia a irmã, Flávia, que não aceitaria o fato tão facilmente. E HD não era de suportar o gerente de RH (ou não era tolerado, como queiram) e daí a romaria (novamente!) da entrega de currículos.

O restaurante e sua freguesia exigente. Um clima familiar e alguém pedia uma lasanha. O que também interessa ao nosso HD. Afinal, qual o forte do estabelecimento? As massas! Quem quisesse carne que procurasse a churrascaria do outro lado da avenida. A churrascaria que Flávio não perdia oportunidade de criticar.

Mas desta vez a crítica à concorrência foi interrompida. Olhares se voltavam para um dos televisores no segundo ambiente. O único ligado, devido ao pouco movimento do horário. Um panorama de New York. E lá estavam as famosas duas torres do World Trade Center. E uma das torres em chamas! O inferno na torre? Um filme? Não, a TV comercial não mudaria a programação sem um motivo sério.

Afinal era uma manhã de terça-feira e todos esperavam o noticiário esportivo, após as atrações infantis (ou dando continuidade às mesmas). Mas o fato é que a torre está em chamas... Como escapar do fogo e da fumaça à cem andares do chão? E a notícia traduzia a TV norte-americana ao informar que um Boeing colidira com o World Trade Center. Mas o piloto sumiu? Ei, é outro filme! Existe tráfego aéreo sobre Manhattan? O cidadão não viu as torres meio quilômetro acima do chão? Tudo realmente um acidente?

Mas o que importa? É hora do meu almoço! Pessoas estão morrendo? Quantas pessoas trabalham naqueles prédios? Umas dez mil? Umas trinta mil? Nunca me interessei por aquelas torres. Para mim, nunca passaram de cartão-postal. Ei, lembro agora que o Empire State também levou certa vez a bicada de um avião sem rumos. Mas o World Trade Center?? Que parece filme, parece! Aqueles de catástrofes que os ianques adoram!

Não meditou muito. O som da realidade à milhares de quilômetros chega distinto e angustiante e não há palavras para expressar a confusão do jovem estudante de História que se imagina destinado ao esclarecimento das novas gerações. E não meditou mesmo – outro avião (outro Boeing!) surgiu na tela e afundou na outra torre!

Flávia entrou no restaurante, trazendo junto ao peito apostilas do curso de Gerência, curiosa com o grau de tensão no ambiente. Quem pedira a lasanha até hesita em conferir se a degustação valia o preço. Flávio percebeu o olhar da irmã:

- Outro avião acaba de atingir a outra torre do World Trade Center. E não parece ser acidente.

Alguém indaga ansioso se haverá guerra. Pearl Harbour – a reprise! Mas HD desiste de entender, e passa ao outro ambiente. Flávio ao seu lado. Cancelam a macarronada.




Manchetes do dia seguinte: USA Today, “U.S. under attack”, The New York Times, “U.S. attached”, Folha de São Paulo, “EUA sofrem maior ataque da História”, Aviões atingem as torres do WTC em New York, às 8h45 e 9hs, horário local, e 9h45 em Washington, no edifício do Pentágono e, às 10h10, avião cai em Pittsburgh.


Bem-vindo ao século 21!



Escrito em 2006, de 10 abril a 16 junho (Bloomsday!)
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Revisado/Digitado de dez/06 a out/07
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por Leonardo de Magalhaens
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