domingo, 1 de agosto de 2010

Cap. 5 de Náuseas de Estudante [cont]

[...]


Estava com sorte, pois foi logo informado de que Flávio se encontrava no escritório. Segundo andar, corredor, segunda porta à direita.

Diante da porta, palavras hispânicas. “Ya está bien! No te enrolles!” bateu. Flávio abriu. HD nem cumprimentou:

- Aula de espanhol?

- Sín, muchacho! Este aqui é Ruy. Del Plata.

Troca de saudações. Flávio estende um pires com uvas passas. Quieres? Sobre a mesa um jornal, as manchetes à vista. Crise na Argentina, Revolta na Palestina, Repressão na China.

- La verdad es que si yo fuera tú...

O fato é que Ruy tenta aconselhar Flávio quanto a um investimento, após discutirem as exportações brasileiras, as privatizações, como era exemplo a Companhia do Vale do Rio Doce, sob as pressões do FMI, diante das crises econômicas mundo afora.

E Ruy lembrava un poquito el señior Castillo, mas era só impressão, pois Ruy estuda Administração e nada demonstrava de esquerdismo.

Flávio é que se dava bem em apoiar os trabalhistas na Prefeitura, em alianças que muitos,logo de início, desaprovaram. Mas há sempre aqueles que manipulam a opinião dita ‘pública’ e alimentam as farsas políticas. Mas Flávio sempre tivera bons informantes (pois bons amigos é fato raro) e mantinha-se longe dos ‘abutres’ que cercam os arruinados politicamente.

O que HD imaginava, após tanta conversas sobre os bastidores da política, era uma obsessiva cena de um jovem parlamentar, cheio de ‘boas intenções’, sendo recebido por um parlamentar mais velho, mais experiente, que olha de cima, todo paternal, “Ora, meu filho, eu estou aqui desde que você foi desmamado, e você chega aqui falando em reformas? Ora, deixe disso! Esqueçamos essas utopias. Venha, vou mostrar as maravilhas de nosso honrado cargo. Aceita um drink?”

A cena ficara ainda mais colorida (ou mais sombria, depende...) quando HD ouviu uma certa discussão entre Flávio e seu cunhado Augusto, quando de uma visita anterior.

HD chegara à procura de Flávio e o aguardava na sala de estar, quando ouviu vozes exaltadas. Reconheceu a voz de Flávio num tom a la Sermão da Montanha, e outra num tom de aberto sarcasmo, a do Augusto. Debruçou-se na varanda, sobre o parapeito lateral, e descobriu junto a porta da cozinha o perfil dos dois debatedores, cada um com sua taça de vinho.

- Mas se todos pensarem iguais a você, Augusto, só haveria competição! Cada um por si e Deus contra todos! Além de cinismo é blasfêmia! Acha mesmo que Deus deseja o mundo assim?

- E você é o enviado do Senhor para restaurar Seu Reino? Ora! E se você disser que Deus não deseja, eu digo que não Lhe interessa, pouco Lhe importa. Que os imbecis continuem a incensarem, a doarem esmolas, a suplicarem a mínima atenção. Espere o maná cair, espere. Não vá semear a terra antes para você ver!

- É, mas para você trata-se de antes conquistar a terra, se apropriar e cerca-la tão logo seja possível. Quem chegar primeiro é que leva o ouro, é assim que você pensa. Onde vamos parar? Em que selva?

- Como imagina que tudo isso aqui foi desbravado, conquistado? Na boa vontade, na caridade? Digo que com espada e fogo! E escravidão! – e degustava obscenamente o vinho.

- Alto lá, Augusto! Do jeito que você fala até parece que defende que a coisa deve continuar assim! O tubarão engolindo os peixinhos! Eu não aceito. E muito menos que você o defenda, o justifique! Eu não sou capitalista!

O outro quase se engasgou com a risada.

- Ah, não? O que é então? Vai agora abrir a sua bolsa aos pobres ? O que é isso? – aponta a mansão – tudo isso ao seu redor? – o gesto se estende até a garagem, aos carros. – não é o lucro que mantém? Ou você quer implodir o prédio mesmo ocupando a suíte presidencial?

E Augusto se satisfazia, orgulhoso, como se o sistema capitalista fosse criação sua. O maior desejo de HD era encontrar-se diante do empresário e perguntar, não sem certo sarcasmo, se ele tinha quinhentos anos de idade. “ora, por que?”, o outro sem entender, e HD, superior, “Pois parece que foi você quem inventou essa merda toda!”

- Que sé yo?! Hay que tener paciencia con el Argentina.


E Ruy lembrava que aquele confisco de dinheiro de contas bancárias, ocorrido no Brasil, no governo collorido, com posterior devolução no ‘cartão azul’, mas já desvalorizado, não foi invenção tupiniquim, mas já havia sido usado na Argentina, na década de oitenta, com o dinheiro confiscado, e devolvido como títulos públicos já desvalorizados.

- Imagino a bomba nas mãos do La Rúa.

Os olhares se voltavam para HD, que sentiu-se no direito de explicar as crises sistêmicas, com produção constante, mas baixos salários, então quem vai comprar? Quem produz nem pode comprar. Sobra mercadoria, co todo o lucro na mão dos patrões. Superprodução. Preços diminuem e não paga a produção. Cortes nos quadros de funcionários. Desemprego. Mercadorias, lavouras precisam ser destruídas. Então o Estado entra no jogo, a mão invisível do Mercado, e gera empregos nas obras públicas, com capital de depósitos bancários, além de comprar e estocar excedentes. Novas leis de proteção social até que a Bolsa de Valores possa reassumir o seu jogo irresponsável. E aí tudo se repete, o Estado é obrigado a intervir para limpar a sujeira do capital.

Após a longa exposição, a qual exigia incondicional atenção, o anfitrião Flávio volta-se para o argentino: “Te apetece comer algo?”, e estende o convite ao “amigo Hector”, o “camarada Hobsbawn”.

E descem até a cozinha, em lembranças de velhas discussões, com Darío Sabine marretando o “neo-colonialismo” da ALCA, “nenhum povo jamais dominou outro povo sem antes dominar a elite deste povo, e assim as elites tupiniquins se vestem com rótulos made in USA.”

Pão de queijo, torrada com geléia, suco de laranja. E HD lembrando as faces da ‘máquina’, na era medieval com face teocrática, “Assim é porque Deus o quer!”, nas convulsões burguesas com face democrática, “governo do povo e para o povo”, até as turbulências das Grandes Guerras, de onde a ‘máquina’ emerge com sua face tecnocrata, “É assim porque o Mercado exige!”

- Mas o marketing é ainda ser democrático! Lembra daquela ironia do Darío, “A Alemanha Oriental era chamada ‘República Democrática’. E o Muro? E a repressão? Democrático? Seria cômico se não fosse trágico! Vá você pular o Muro pra ver!”

E novamente HD conseguia acabar com a leveza do momento. Todos se entreolhavam. Não era somente o lanche que pesava.

- Seria cômico se não fosse trágico.



Setembro/2000

FMI é braço do Tesouro norte-americano”, diz professor de Cambridge, diante do Consenso de Washington. Polonês, naturalizado alemão, é o novo Diretor. Processos com mega-corporções de informática e contra empresas de fundo-de-quintal que distribuem músicas compactadas pela rede mundial de computadores.

Mas os Tchecos, após derrubarem as estátuas de Stálin, querem agora ser bons e prestativos capitalistas, mas percebem suas ruas invadidas por anti-globalistas, com suas palavras de ordem, em busca de câmeras e atenção midiática, enquanto os donos do nosso futuro discutem diante de uma planilha de números, pois até famoso mega-investidor já disse que o capitalismo já fugiu ai controle.

Cínicas, as mega-empresas anunciam suas boas-ações para manterem suas imagens de responsabilidade social (digno de aplauso, além de politicamente correto), diante dos descontentes, dos honrados trabalhadores, pois a ordem exige códigos de ética, senão será o caos (que muitos asseguram já estar por aí...), e vejam, vocês, que até o Banco Mundial tenta mostrar certa sensibilidade social, afinal as ONGs estão à porta, e pede perdão para os pobres, ou caso contrário, prometem parar a capital, tirar o sucesso milenar da pacata e enigmática Praga.

S-26. Cordões de isolamento. Uniformes brancos e óculos de natação, punhos erguidos e incendiando os carros, o soar das trombetas nas vozes dissonantes de mais dez mil incomodados.

Onze mil leões-de-chácara encaram a multidão que mantém os líderes, delegados, funcionários, tradutores, jornalistas, garçons, e outros reféns, presos no centro de convenção por mais de sete horas, enquanto ONGs fazem protesto (numa igreja protestante!), denunciando a política hipócrita dos economistas (mas o que faríamos sem eles?)





Naquele domingo, de sol alucinado, HD em andanças pela feira de artesanato em pleno asfalto da avenida Afonso Pena, ali empurrado pela multidão, abordado pela velha que vende churros, ou pelo velho a oferecer balões coloridos com formatos de poodles e zeppelins, quase jogado meio a roda de capoeira.

Roda de capoeira girando em torno. Sonido de berimbau, instrumento de corda e percussão. Pernas giram acima dos corpos. Alguém mastiga um acarajé. Não, não se trata do Pelourinho, apenas da Rua da Bahia. Flores no mercado das flores, artesanato na feira de artesanato. Manhã de domingo. Quente.

Sorrisos manchados com recheios de churros. Mãos que alisam tecidos. Olhares que se recusam. Barracas oferecem roupas com ares de brechó. Bijouteria, jóias pouco autênticas, brincos indiscretos, artigos sem qualquer credibilidade. CDs de bandas alternativas, produções independentes, música regional e folclórica, ou pop internacional com sotaque mineiro.

Acompanhados de quadros pintados ao vivo, retratos de transeuntes desconhecidos. Cheiro forte de perfume feminino, água de colônia, desodorante. Fragrância de roupa nova na cabide. Ou cheirinho bom de pamonha, mingau de milho verde ou doce de pé-de-moleque, feitos na hora. Diante de crianças que gritam e esperneiam em exigências. Doce de leite, bolo de chocolate, maçã-do-amor. Pipocas saltitantes. Mas a namorada ali quer uma bolsa nova. Pode ser daquelas com couro-imitação-de-crocodilo. Este aqui a oferecer copinhos plásticos para telefones celulares. Aquele estende bilhetes lotéricos. Na barraca à direita, a loira, meio aos animais de pelúcia, grandes, ciclópicos, gradaúdos, morde avidamente um picolé de chocolate branco. E sorri quando percebe o olhar dele. Mas dura apenas um instante. É empurrado e está diante da liquidação de calças jeans desbotadas, cintos de fivela de pseudo-marfim, botas de cowboy, chapéus de cowboy, e outros artefatos de cowboy !

Uma menininha exige um balão colorido com formato de cãozinho poodle. O pai pinça notas verdes na carteira. Ela paga com um sorriso. O berimbau é estridente. O cheiro de milho cozido é todo envolvente. Flores todas expostas. Pernas giram acima dos corpos. O recheio do churro mela os dedos.

Cansado das multidões, HD busca refúgio na escadaria diante do Viaduto do Santa Tereza, diante do trânsito, paralelo aos vultos das famílias nas alamedas do Parque.

Sentado ali, a mastigar um churro, em pleno descanso, e recebe a amável saudação de um casal de jovens, um pouco mais novos do que ele, na euforia de seus vinte anos. Oferecem um jornal, e ele agradece, até estendendo o churro, mas alega não ter dinheiro. Eles despejam sorrisos, dizem que é de graça.

- Como é? Não vão cobrar?

Queremos convidá-lo para uma palestra. – diz o rapaz, muito amável, e bem trajado.

Palavras de força! Lá em nosso templo. – completa a moça, muito gentil, e igualmente elegante.

E HD ali a imaginar que eles o observam como se ele fosse um pobre coitado, um mendigo, e assim nem cobram o jornal. – É de graça? Sério? – e vai abrindo o jornal. – Achei que estivessem vendendo. – e olhando o casal – Vocês não trabalham vendendo isso?

O rapaz, amabilíssimo. – Não, só desejamos convidá-lo...

- Alto lá! Nem relógio trabalha de graça! Um domingão desses e vocês andando por aí, sem ganhar nada?

- Somos voluntários. E ganhamos sim. Almas para Deus.

A moça, didática. – Poderíamos ficar em casa, cuidando de nossas vidas, não é? Ficar cochilando, ou assistindo TV. Mas é necessário sair ao campo, semear a Palavra, terminar a obra. Vem chegando o tempo do fim...

- Ah, sim. Tem uns mil anos que já vem chegando...

- Mas, amigo!, temos a promessa de Cristo! E Ele não falha. Abandonamos interesses egoístas e saímos em busca das almas desgarradas.

Nisso ambos já se acomodaram ao seu lado, Ali na escadaria.

- É de se espantar! Sacrificam o fim-de-semana para saírem por aí pescando as pessoas!
O rapaz, todo bondoso. – Não é sacrifício. É importante para nós. Cristo nos tem chamado para isso.

- Cristo vem chamar os seus filhos.

- Então o nosso domingo é dedicado a lembrar às pessoas que cristo tem operado em nossas vidas.

- Deus tem feito maravilhas na minha vida. – a moça, emocionada. – Eu abandonei o vício do fumo. Não preciso mais de drogas.

- É isso que nos motiva a falar, a proclamar a Boa-Nova. Não é algo de que ouvimos dizer, ou que tenha acontecido a alguém ao nosso lado. Mas algo que presenciamos em nossas próprias vidas!

- Queremos compartilhar essas bênçãos com você, queremos abraçar você como a um irmão.

E HD só poderia ficar a ouvir o casal, surpreso e constrangido, afagado por tanta atenção amável.

- É hoje à noite, você vai lá? – convidava a moça, quase um convite amoroso.

- Lá você encontrará pessoas felizes, que se encontram, diante de Deus.

Aí HD não pode evitar um olhar de ceticismo. – Pessoas felizes? Hoje em dia?! Você é feliz:

- Sim, sou feliz. – o rapaz, com firmeza, sustentando o olhar cético. – E já fui muito infeliz, andava muito abatido, perturbado. Era humilhado, desprezado. Mas eu me revoltei contra isso! Hoje sou feliz, pois “tudo posso naquele que me fortalece”.

Após a citação, em oratória de púlpito, a moça também animou-se a confessar. – Eu sofri muito com a minha família, e meus colegas todos drogados, e eu dormi na rua, mas pude encontrar Jesus e hoje estou liberta!

- Então, são felizes? São outras pessoas hoje?

O rapaz, filosófico. – Aprendemos com os nossos erros...

A moça, boa samaritana. – Falamos para as pessoas que é possível sair do poço, desde que confiem...

O rapaz, conclusivo. – Que Alguém se preocupa conosco.

E com ele, Hector Dias Guimarães de Almeida, quem se preocupa? Sim, eis um apelo e tanto! “Deus lembrará de ti” E ele que sempre comungava, nas missas, junto aos pais, e que no casamento da prima, ouvindo o coro da igreja, até caíra em prantos de emoção!

- Sim, “Deus traz a alegria”. O padre dizia muito isso.

Mas o que pôde perceber é a surpresa no olhar dos jovens missionários.

- E hoje as pessoas estão sem Deus, só pensam no dinheiro, o padre dizia. E que ninguém dá bom-dia a ninguém, e que os justos são explorados. E que Deus não se agrada disso. Que é preciso mudar, dar terra e emprego ao povo. Que devem buscar a Deus e serem irmãos.

E HD fala muito quando se emociona. A infância exumada. O cadáver do passado. A criança em mim sepultada é que sabe mais!

O rapaz, todo compreensivo. – Sim, o padre tem razão. Como é mesmo o seu nome? Ah, Hector. Então, Hector, mas ele, o padre, compactua com tudo isso, pois ele está na Babilônia.

- Ele tem um bom coração, mas está no púlpito errado.

- E quem está no púlpito certo?

A moça, voltando ao tom didático. – Quem está com o Evangelho, com a Luz que ilumina o mundo.

- Pois saiba, Hector, as trevas pretendem abafar a luz, enganando as pessoas. O padres está cego.

- E fico pensando.Felicidade? Que promessa! Se algum dia encontrá-la, imagino que desejarei que todos a encontrem.

O rapaz, empolgado. – É isso! É isso o que sentimos!

A moça, maravilhada. – Sim, um mundo onde todos sejam felizes!

- E, por isso, num domingo desses, um solzão de cozinha asfalto, e vocês batendo pernas por aí?!

Junto as grades do Parque, desce outro casal. Mesma elegância e bíblias em mãos. Percebem o trio no topo da escadaria e se aproximam. O rapaz com gravata, seríssimo, e a moça em vestido claro até os tornozelos. Saudações trocadas, sorrisos, idem, olhares, idem, ibidem.

- Não é toda pessoa que nos dá tamanha atenção. – confessa a primeira moça. – Muitos agem como se fôssemos uns leprosos.

- É que dizemos certas verdades. – esclarece o rapaz de gravata.
- Cada um quer ser feliz consigo mesmo e para si mesmo, o nosso próximo não importa. – lamenta o primeiro rapaz.

- Foram criados assim, todos nós fomos. Preocupar-se com o outro é incomodá-lo, assim aprendemos. – explica o rapaz recém-chegado.

- Mas as pessoas só se preocupam com as outras se acreditarem e Deus? Precisam de Deus para se amarem?

Os quatro elegantes jovens se entreolham. Mas o rapaz de gravata logo responde: - Eu aceito o outro se o amo, e Deus é amor. Não se pode ignorar o outro, fingindo respeita-lo.

E o primeiro rapaz, em tom de púlpito. – Se os homens se amassem em Deus não viveriam se explorando. O problema é que o homem está afastado de Deus.

Amor ao próximo? Eu, o próximo? O que amam em mim é o “próximo”? o fato é que não me conhecem, logo o que amam em mim é um imperativo, “Ide e Pregai o Evangelho!” Sou mais um a ser salvo, para que a ordem do Universo ganhe outro servo feliz. Menos um no time contrário.

E assim, HD deixou de perturbar a fé dos jovens. E o rapaz de gravata, que mostra-se mais sério diante dos outros, é enfático, com a mão no ombro do pensativo HD. – Percebe, Hector, existe uma coisa chamada “livre-arbítrio”. Os homens precisam escolher! Deus não força ninguém a amar e a servir.

A moça de vestido, muito amável. – Deus não exige, ele convida.

- A primeira moça, amabilíssima. – o convite que fazemos agora.

E o jovem de gravata propõe que elevem suas vozes ao Senhor. E todos, de mãos dadas, HD entre a primeira moça e o primeiro rapaz, com todo o fervor dos corações jovens, e ansiosos. O que o futuro nos garante? E não importa se muitos transeuntes observam com indiferença ou ironia, pois agora resta-nos somente a fé num outro mundo para sobrevivermos ao sem-sentido deste !





Um fim de tarde com enxaqueca. Cortinas fechadas. Ignorando a existência do mundo. Horror à luz! Mas Darío Sabine, habitualmente em suas visitas de sábado, chegaria com mais inquietações.

- O mundo é o seguinte: uns idiotas que mandam, e outros estúpidos que obedecem.

E HD recebia assim a sua visita, num quarto escuro, sem notarem um do outro mais do que o vulto.
Mas Darío entende a náusea de HD, e seu desassossego. Rudi diante de Adrian, o Autodidata diante de Antoine?

- Você acha que Roquetin é um misantropo? Mas ele não deseja juntar-se ao Autodidata em sua crença na humanidade? O que ele quer é encontrar outros semelhantes a ele. O Sr. Achiles, por exemplo. Mas, este o ignora, e busca segurança junto ao burguês que o ironiza!

- O problema é que ele idealiza uma humanidade, e despreza a humanidade tal como ela é.



HD e os parentes vindos do interior. Comentários sobre a vida pacata e o susto diante do ‘inferno’ da cidade grande. Parentes devotos, cheirando à incenso.

- Um tanto estranhos os seus amigos, hein?

A tia estende aquele olhar de ministro do Santo Ofício aos recém-chegados. Um irônico Darío, e um pseudo-iconoclasta Alex.

HD em tom diplomático, todo cordial. – Sim, eu sei. Estranhos mesmo. Mas são gente boa. Esperemos que Deus possa, um dia, estender Sua Graça sobre eles.




Castillo, o filósofo chileno, exuma o golpe direitista de 73, acusando a ajuda da CIA ao carniceiro General, que agora alega ter conduzido o Chile a um nível de desenvolvimento econômico.

- A custa de muito sangue. – acrescenta Darío.

- E a América Latina não anda só a base de pancada? – contribui HD.

- “Three cheers for Doktor Kessinger! Três urras ao Doutor Kessinger! – Darío lembra o “Nobel da Paz”.

- Por livrarnos de la impiedad comunista !

- Não se preocupem! Somos todos anglo-saxões! – Darío, todo enigmático.

- Olhe, Sabine, neo-liberal é a p.q.p !

- E os nossos mexicanos, hein, Castillo? Imagine os milhares de Pedros Páramos atravessando a nado o Rio Grande. Dando as costas ao Eldorado.

- Sín, Eldorado saqueado! Para donde el oiro del astecas?
Darío nem dava tempo, com seus saltos – Quer outra ironia? O “fugere urbem” dos arcadistas. Veja só os nossos inconfidentes, os bons arcadistas. Pregando a vida bucólica, simples, em madrigais para as Musas, e bem debaixo das barbas deles, saindo de Vila Rica, todo aquele ouro! Para onde? Para Portugal? Ora, para os mercantilistas ingleses! Para nutrir a “Revolução Industrial”, e, por conseqüência, a vida atual, urbana e turbulenta!




Darío já se acostumava ao escuro. Discutiam o platonismo.

Darío - Platão diz que o Mal nunca diz ser mau, aparenta fazer o bem. E que ninguém escolhe o Mal, pois se escolhe algo, este é Bom para ele. O Mal é sempre o não-escolhido, o não-Eu. Quem divulga o seu amor pelo Mal?

Hector - E o Demônio se faz anjo de luz... Platão é um totalitário!

Darío - E Quem levantaria o estandarte das trevas?



Mal é o meu desejo. Deus, a Justiça. É a interdição do meu desejo. Mal é ir além. Diz a lei: “Não matarás!”, por que não: “Deixai viver” ? Porque ir além do ‘não matarás’ está claro o Mal: o matar. O Bem é o intra-muros, fora dos limites, o Mal. O próprio ato de “pular a cerca” já é maldade. Mas as cercas podem ser sempre colocadas mais adiante.
(anotação num início de diário)


Voltava da papelaria, andando por ruas escuras do Barreiro, ouvindo o apito da locomotiva, co o walkman ligado, ouvindo punk rock, irado, pregando “anarchy in UK”, com os jeans rasgados, mal suportando a classe de ensino médio, odiando a professora de gramática (ah, se ele dependesse dela para amar a literatura!), temendo o espectro do vestibular a rondar seu futuro nos próximos doze meses, sofrendo a humilhação da autoridade paterna, com “sua vida fechada em arquivos”, como dizia o Gullar.

Era algo em que pensava naqueles dias. Aceitar ser filho de funcionário público, esquecer esse sonho de faculdade, entrar para uma secretaria municipal, seguir carreira. Afinal, quem pagaria os seus cinco anos de ócio?

O sofrer da dúvida. Como expressar tal angústia literariamente? Será possível? Descrever a própria vida, vendo um eu-passado sob as ironias de um eu-presente? Que postura assumir diante das vidas descritas em “Guerra e Paz” ou “Crime e Castigo”? O que pensar sobre o Sr. Bloom em sua odisséia urbana? É voyeurismo acompanhar as vidas alheias, ainda que ficcionais? É sadismo ler sobre as vidas desgraçadas tecidas em tinta rubra sobre o papel?


Como o fraco domina o forte? Como o fraco submete o forte, para alcançar sobrevivência? Veja os bárbaros. Homens másculos. Violentos, beberrões, luxuriosos. Extrovertidos. Fortes fisicamente e plenos no instinto. Já os fracos tanto fisicamente como na aceitação dos instintos. Introvertidos. Violentos renegados, beberrões mergulhados em culpas, luxuriosos hipócritas. Homens e mulheres fracos e débeis. Tornam-se a casta dos sacerdotes. Dominam o sobrenatural, a comunicação com os mortos ou com os deuses, legislando através de dogmas, manipulando o medo no coração dos fortes.

O fraco criou a cultura erudita, intelectual?

(esboço para um ensaio)


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LdeM
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