sábado, 24 de julho de 2010

Náuseas de Estudante (cap. 5)

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- O “universalismo” está acima de “particularismos” outros, de raça, gênero, crença, classe social.. A Declaração dos Direitos do Homem inclui, por extensão, a Mulher, os negros, os crentes, os ateus, os pobres, os parias, sem uma constituição “particularista”, exclusivista portanto, para cada gênero, cada etnia, cada credo, cada condição social. Por que? por serem “seres humanos”.

Assim dizia o Professor na extasiante aula de Sociologia. Tendo numa mão, os frutos da Revolução Francesa, e em outra, os documentos da Internacional Comunista. Fazia questão de citar fontes e ser gentil, claro que coordenando todos os estudos dirigidos e cobrando bibliografias, mesmo quando encontrava os alunos nos corredores.

- Você já leu “A Dialética do Esclarecimento”, do Adorno & Horkheimer?

Ou, mais eclético, limpando os óculos na camisa-pólo. – Você já terminou a leitura de “Eros e Civilização”, do Marcuse?

Mas, sem oportunismos, HD aprecia a estilística do mestre. Pelo menos, ele, HD, podia soltar suas opiniões em sala. E de suas suspeita quanto aos “ismos”.

O suspeitar de todo “ismo”? sim, o limitar,o dogmatizar de todo “ismo”. Dogmatismos! Direitismos e esquerdismos! Essa de “liberalismo”, liberal para quem?, ou de “socialismo”, que resvala em “estatismo” e “totalitarismo”, enquanto contra o “comunismo” se levantam os “fascismos”, e todos cheios de boas-intenções, “bem-intencionismo”? Não, “intervencionismo” contra “protecionismo”, ou “militarismo” em tempos de “globalismo”, quando tudo não cai em “particularismos” e “etnocentrismos”, coisa de “tribalismos” os mais excêntricos, reunidos em volta de ídolos,modas, estilos e músicas, puro “individualismo” para o “consumismo”, que não passa de um “niilismo” de época excessivamente vazia – “anarquismo” e “solipsismo” !


HD seguia pelos corredores da Fafich, com aquele fardo de nomes, números e datas, depois da aula sobre os “intérpretes do Brasil”, segundo as palavras e a empolgação do professor, ali a distribuir uma cópia xerocada, a conter a bibliografia básica do curso, a começar com os “Mestres”, aqueles por ele aclamados como os “Três Grandes” (“e não estou falando de Potsdam ou Yalta!”) e nomeava : “estamos falando de Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre e Caio Prado Jr.” E quem corresse os olhos pela lista xerocada encontraria outros ícones da nossa Sociologia, a saber, Florestan Fernandes, José Carlos Reis, José Murilo de Carvalho, Raymundo Faoro, Nelson Werneck Sodré ( que HD carregava debaixo do braço, o volume de “Formação Histórica do Brasil”, com seu primeiro parágrafo categórico: “A História se preocupa com as transformações da sociedade, não dos indivíduos.”), Celso Furtado e seu “Análise do ‘modelo’ brasileiro, segundo consta, e ali o “Formação do Brasil Contemporâneo” do Prado Jr. E os regimes de produção e suas influencias sobre as vidas dos povos, com a distribuição das terras, bens e rendas e os antagonismos gerados, e a tese das ‘colônias de povoamento’ e as ‘colônias de exploração’, estando o Brasil incluído na condição desta última, como servidor do capitalismo europeu, ou seja, a economia brasileira voltada para as necessidades do capitalismo europeu, “O Brasil não era feudal, mas estava inserido no mercantilismo europeu”, como dizia o professor, e seguia a lembrar o pouco poder da Coroa sobre os “senhores rurais” em suas sesmarias, o que seria apontado como característica de “feudalismo”, mas que não nos enganemos, em quadro contextual, tal imagem “se desmancha no ar”, e “vejam como há até uma imagem poética em Marx, ‘Tudo o que é sólido se desmancha no ar’”, e o professor emendava citações do manifesto com imagens de um Brasil-Colônia que lembravam os romances históricos de uma Ana Miranda.

Mas HD pensava em que literatura (e não sociologia!) nasceria daqueles passeios pelos corredores da Fafich, deixando-se vaguear por salas vazias, iguais aquela, numa penumbra de abandono, onde figurava no quadro-negro, num esquema traçado à giz, o quadro político no Brasil Império, aliás, o Segundo Império, com um enorme “Poder Moderador” circulado m amarelo-ouro, e sitiado por nomes obscuros, onde só “Princesa Isabel” despertava lembranças. Sublinhado, embaixo, estava “Abolição da Escravatura”.

Alguém passou no corredor. Nada mais que uma sombra a ensombrear ainda mais o nada daquele vazio. E não era a sombra que ele esperava! Quem? Naína, a inquieta, sempre fazendo mil coisas ao mesmo tempo! Morna, moreninha, pele bronzeada, e lábios finos, longos cabelos lisos e negros, luzidios de escuros!, brasileira de corpo e alma, ah, a moreninha do Macedo...

De súbito, temeu a solidão, aquela solidão nascida do pensamento. “Preciso de pessoas, eu sou realmente ‘eu’ quando estou junto às pessoas, aqui sou uma sombra entre sombras.”, e assim HD desceu ao refeitório, com esperanças, talvez até encontrasse a Naína.



Abril/2000

Descompasso da economia global. Flutuações do Euro. Exuberância do Tio Sam é ameaça. Crescimento econômico interno dos EUA assusta. Europeus e japoneses precisam comprar mais, diz economista. Naomi Klein, autor de “No Logo”, “O mundo está sendo dominado pelas marcas.”

Então na reunião do Fundo Monetário, em plena capital americana (ou estadunidense), Washington, distrito de Columbia, jovens com suas rosas selagens entre dentes, e suas rubras cabeleiras arrepiadas, enfrentam os policiais em sus uniformes de corvo, acolchoados e blindados, e seus capacetes com viseiras na cegueira da névoa de lacrimogênios, onde policiais negros espancam, profissionalmente, ainda que sádicos, os brancos filhinhos-de-papai que se rebelaram em assumir as empresas da família. Que falta faz uma férrea disciplina! Esses filhos de yuppies assistem MTV demais e sabem todas as letras do Rage Against The Machine na ponta da língua.

Cerca de mil manifestantes foram presos.

Eles se aproximam das famílias / com os bolsos cheios de munições”, um forte refrão para esquentar a manifestação!

Bulls on parade !”

Ao primeiro convite de Naína, HD desconversou. Depois, ele a acompanhou,ela tornando-se sanguessuga em seus braços, arrastando-o para dentro. Ele ainda resistiu.

Mas havia aquele trabalho de Estatística. “Existem mentiras, mentiras e estatísticas”, ele citava, irônico.

- O gráfico de setores lembra muito uma pizza...

- E se a gente pedisse uma? – ela sugere.

E pediram.

Estudava na sala de estar, num apartamento de segundo andar, no Gutierrez. Com direito a vista par uma pracinha, onde babás levavam, carregavam a e suportavam criancinhas travessas e mimadas.

- Taxa percentual em vertical no gráfico de colunas.

- E horizontal no gráfico em barras.

- A distribuição agrupada de freqüências no exercício seis é...

- Peraí! Este eu ainda não terminei.

E não terminava mesmo! Estava distraído. Havia um par de pernas morenas no caminho.

Naína talvez nem percebesse, mas aquelas pernas longas findando em pés claros de unhas luzentes, era o motivo da lentidão mental do rapaz. É que estudavam numa mesa de vidro, redonda, translúcida, coberta por um forro de crochê que, descontínuo em floreios, deixava bem visível dois pares de pernas. Uma par com calças jeans e tênis, outro, nu, lindamente nu. Pés desnudos, enroscados.

- Terminou a média aritmética do exercício oito?

- Ei! Alto lá! Mais calma, sim? Estou no cinco, refazendo a segunda mediana...

E ele já vira situação semelhante. Sim, muitas vezes! Sandra e suas coxas fabulosas, e entre eles uma tabela periódica dos elementos químicos, além de uma dezena de exercícios sobre estequiometria.

- Determine a moda no conjunto de dados...

E ela nem oferecia um refresco, ele que esperasse o refri que é brinde da pizza. E ela monopolizando a calculadora, e ela toda frienta, em arrepios, mas com os pés desnudos no piso gélido. E ela nem percebia que arrastava o forro, e que as unhas luziam num tom róseo.

- Confere aí pra mim o primeiro polígono de freqüências.

E ela sempre terminava antes. Como consegue se concentrar?

E ele confere três vezes o exercício oito, mas nada! Os resultados ao conferem. Ele suspira, ela cruza as pernas. Pés morenos. Unhas esmaltadas luzentes. A borracha desliza pelo chão. Sob a mesa. Eu pego!

Mas o que há sob a mesa? Por que se demora? A borracha se perdeu? O que há?

A borracha não sei. Mas encontro bronzeadas pernas esculturais e um cheiro de mulher.

Ela percebeu a demora no segundo minuto, mas aí sentiu um bicho cheio de dedos e tentáculos subir até suas coxas indefesas.

Ele, ajoelhado, abraçando os quadris da garota, aspira um perfume abrigado sob uma lingerie branca. Calcinha rendada e branca.

Afasta a saia já curta, descobre o formato das coxas, risca a cintura com as unhas, ocupa o território em seus promontórios e vales na infantaria avançada dos dedos na pele lisa das nádegas.

Ouve um suspiro?

Ela se afasta da mesa, num repente. A cabeça dele à mostra. Ela acaricia os cabelos fartos. Mordisca a ponta da orelha.

Ele puxa a saia minúscula par cima e a renda alva e perfumada para baixo. Colinas se destacam. A cavalgada alucinada de uma língua ansiosa. Gemidos que você ouviu? Nonada.

No golpe, o forro vai abaixo. Calculadora. Cadernos. Uma caneta preta. Duas canetas azuis. Esferográficas. Abaixo.

Abaixo da mesa, sob a transparecia do vidro, ela vê o rapaz todo vestido, mas a desnudá-la. Está deveras ocupado entre as suas pernas. Outro gemido? Impressão sua!

Mas o avanço continua. Dois batalhões percorrem a colina, agora três. Há uma gruta a ser sondada.

Não há dúvidas. São gemidos. E contínuos.

Exposta. Reclinada na cadeira. Beliscando os mamilos sob a malha da blusa, pela permite a invasão. Toda a vanguarda cruel do prazer.

Ferozmente. Tropas cruéis. Bombardeiam sem piedade. Batalhões hesitantes, que percorrem toda as extensão e voltam, sem sinais de cansaço. Mesmo que inundados.

Ele vai. Ei! Ouviu? Uma campainha? Shit!

- Ai, Hector! É o cara da pizza!





Maio/2000

Enquanto a Argentina se convulsiona em crises econômicas, jovens enfrentam os policiais fortemente armados com suas viseiras de plástico e convicções, totalmente cegados pela disciplina. Mascarados ousam levantar barricadas e golpear o símbolo do fast-food, em suas lojas clonadas mundo afora, vendendo comida manufaturada, já denunciada por camponeses do sul da França com seus bigodes celtas e cachimbos.

Trafalgar Square? Quatro mil manifestantes? Setenta e sete presos e dezesseis feridos?

Enquanto em Barcelona, os descontentes vestem máscaras e fantasias, enquanto em Jacarta, Belgrado, Moscou, Sófia, Calcutá, Chicago, São Paulo, outros subversivos incomodam a ordem social, com seus ásperos gritos e nome da dignidade.

Em São Paulo, sindicalistas fazem ato público e sorteiam carros e casas. Os operários, eufóricos, erguem bandeiras e frases feitas.




Adentrava, cauteloso, numa favela, um aglomerado ao pé da Serra, levando uns discos de vinil, debaixo do braço, para presentear a um amigo.

Atravessa o labirinto traçado da vila sob os olhares hostis, mesmo ‘adequadamente’, isto é, discreto, camiseta, jeans desbotado e tênis esfolado, porém fora do style local, com suas calças baixas e soltas, blusão com estampas de time da NBA e boné idem. Em suma, o seu visual ainda era considerado muito ‘asfalto’, muito rocker para o local rapper.

Encontra dois rapazes na porta de um barraco, que conversam sobre bandas e letras de protesto. Mas, deslocado, ao entender os termos lingüísticos, gírias do dialeto, e desperta as suspeitas dos mesmos. O que pensam que sou? Esses olhares desconfiados...

Em esforços inúteis tenta reduzir sua linguagem a monossílabos, tal como faziam, ou dissolvia conceitos em imagens, como se falasse com crianças, para ser compreendido por aqueles jovens, se eu mostrar o que sei, aí minha cabeça está a prêmio!

O mito da Caverna ao vivo! Jamais aceitam que alguém esteja além daquela vidinha! Regurgitavam ressentimento nos olhares, discriminando, Você é do asfalto, Você é boyzinho da zona sul, em todo um racismo às avessas, incapazes de aprenderem com quem se dedique a trazer novas experiências.

Então é assim? Eu me esforço par entender e aí aparece um grupo e o chefe aparente, todo agressivo, quer saber o que estou carregando, e outro passa a mão em minha cintura, a conferir se estou armado, e jogam meus discos no chão, O que está acontecendo? Qual é o problema?

E ele ainda tenta contornar o mal-entendido, mas ao perceber o volume na cintura do chefe, de pronto, derruba o cara sobre os caixotes, e empurra o comparsa contra o barraco, que, ao bater a cabeça, cai desacordado.

Recolhe os discos e volta correndo por onde chegou, tropeçando nas vielas escuras e fétidas, sentindo os projéteis silvando ao seu redor.

Acordou, debatendo-se, banhado em suor.





Na terceira geração?, HD se perguntava, em pleno Viaduto do Santa Tereza, ao notar um grupo de crianças, cheirando cola ao lado de uma fogueira, lá embaixo, na Serraria. Fogueira de ripas de caixa de maçãs, que aquecia uns seis ou oito garotos, também duas meninas, e o mais velho não aparentava mais do que uns doze anos.

Pensa nos Pedro Bala, nos João Grande, e outros capitães não da areia, mas da selva de asfalto, a viverem nas ruas, amedrontando os pedestres, importunando os comerciantes, retalhando o rosto das madames co cacos de vidro, transando nos bancos de praças, morrendo nas chacinas encobertadas pelas sombras.

Lá encima, o Othon Palace Hotel, iluminado, figura imponente, em soberba e todo envaidecido. O cartão-postal ali tal um altar, ou um pódio a ser alcançado, o palco da glória.

Passar uma noite na suíte de ouro é o ápice da escalda social?

A poucos passos, na Praça da Estação, dois policiais abordam, com visível brutalidade, um jovem de uns dezessete ou dezoito anos, cabisbaixo sob o peso da mochila, revistando-o com manifesta grosseria. O rapaz não parece nada perigoso, os policiais, sim. Mornos, corpulentos, despejam olhares de escárnio. Vendo-os assim, parecem se vingar! Mas o que o rapaz terá feito? Qual a sua culpa? Não, não é isso! O rapaz está até bem trajado. Tênis de marca e etc. só aquela mochila custa um terço de salário mínimo!

Retiram o material da mochila, que o estudante segura, humilhado, ainda mais cabisbaixo, ali desamparado, diante da Lei!, uma vez que reclamar um pouco de dignidade é desacato à autoridade. (E o desacato ao cidadão?)

Depois de revistarem tudo, e nada terem encontrado, saem enraivecidos! Ora, por que? Aposto que nem precisariam ter encontrado pó ou baseado, mas se houvesse apenas o cheiro, eles teriam dado uns bons tapas no rapaz, que se afasta ofendido, quiçá jurando, para si mesmo, terrível vingança. Eles, os policiais, e HD, observam o vulto se afastar. Os policiais troca olhares. Vê-se que são pobres, e a ação anterior não passara de um leve ‘trote’ com o estudante filhinho-de-papai!



Nem duas semanas depois, HD num ônibus, na avenida dos Andradas ao largo do Santa Tereza, surpreendido por uma batida policial. Os homens são instruídos a descerem, com as mãos nas cabeças.

Meio batalhão, fortemente armado. Descem os pais de família, os estudantes, os operários carregando marmitas. E todos esperam.

Inicia-se uma revista policial um tanto rude, especialmente para três rapazes negros, de bonés com símbolos da NBA, que são agressivamente abordados e levados para um canto, sob pancadas e tapas nas orelhas.

HD tem a sua mochila revistada, e o policial, moreno, sorridente, com um ar malicioso, até cúmplice, exibe a capa da revista que encontra, “gostosa essa loira peituda, hein!”, e pisca, jogando a revista de volta à mochila. “E esse sujeito é pago para nos proteger!”

HD e os outros volta a bordo. Todos os outros passageiros (as mulheres, as crianças e os idosos) olham, com indisfarçado receio. “Mas medo de quê?”

Um dos policiais (daqueles que a pouco empurrara os ‘suspeitos’ para um canto à base de pancada) se apresenta junto à roleta, ao lado do cobrador, em alta voz, à todos os passageiros.

- Foi por pouco, hein, minha gente! Eles estavam prontos para ‘meter a parada’ aqui no lotação! Foi por pouco!

Comentários. Suspiros. HD entende que o policial quer dizer que um assalto a mão armada estava em gestação e que os passageiros foram salvos por um triz! “TRÊS vivas à polícia mineira!

Minutos antes, todos estavam recolhidos aos seus mundinhos, mas agora discutem detalhes, compartilham palpites, comentam a insegurança das metrópoles.

Fascinante o que o medo não faz! Tanto serve para afastar como para agrupar, tanto nos separa quanto nos aproxima!




Setembro/2000


Melbourne, Austrália. Manifestos contra o Fórum Econômico Mundial. Forças policiais (uns oitocentos profissionais) enfrentam mais de mil e quinhentos descontentes.

Mulher nua é algemada e conduzida paternalmente por policial.

Praga (e São Paulo)

Enquanto em Praga, os ativistas tiram o sossego das autoridades, em São Paulo (afinal não podemos ficar para trás!) outros descontentes sofrem a repressão das forças de segurança (de quem?), em manifestos diante da Bolsa de Valores, em passeatas de ecologistas, sindicalistas, anarquistas, aposentados, membros do movimento dos sem-teto, mendigos, articulistas, ativistas de ongs internéticas, além de hackers anti-globalistas que traficam informações on-line.

Claro que a polícia ia reprimir! É a subversão! Depois é só jogar a culpa nos punks!



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LdeM


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