Capítulo 6
Quando o Sr. Carlo Pimenta, célebre poeta beatnik e membro honorário da sociedade dos orquidófilos, alcançou o cruzamento da Afonso Pena com Bahia, atento ao movimento de fim de tarde, ali no mercado das flores, foi (riscado) então abordado por indivíduos (riscado) elementos suspeitos foi quase atingido por um veículo de placa fria em alta velocidade que, desrespeitando afrontosamente o sinal vermelho, avançou faixa de pedestre adentro. No entanto é digno de nota que o prezado Sr. Pimenta tenha se safado desta, ainda que tenha perdido seu guarda-chuva de estimação esmagado (riscado) agora destrambelhado no asfalto.
Assim é o primeiro parágrafo do conto que HD rabisca frenético durante a aula de Metodologia, indiferente ao mal-humor da professora ou à curiosidade do rapaz de cabelos espetados na carteira ao lado.
Isso quando não mergulhava em leituras labirínticas, também a procura do Castelo, junto com os acólitos de Kafka, ou em suspeitas diante de Capitu, cúmplice do Dom Casmurro no enigma do Machado.
Leituras sem qualquer método e que se perdiam no caminho. Ficou uma semana contando para si mesmo o enredo de Ulisses, de James Joyce, aquele escritor irlandês, o mesmo que o poeta Ezra Pound considerava como a salvação da literatura.
O caso é que foi certeiro até o episódio do lanchinho no Barney’s, “sanduíche de queijo e um Borgonha”, depois na Biblioteca se perdeu entre os volumes de Platão e Aristóteles, esqueceu as peças de Shakespeare, as falas de Hamlet, ou Hamnet, figuras já confusas!, o pai que não é pai sem o filho que luta para consubstanciar-se com o pai... E aí, no labirinto das ruas de Dublin, trocou o nome das personagens, esqueceu quem era o padre e quem era o agente funerário, quem era o trapaceiro e o advogado. (“Quem era o homem com o impermeável – lá no cemitério?”) Meio ao desfile, a cavalgada alucinada do Earl (Duque?), HD quase foi pisoteado pelos cavalos! Na sala de concerto, meio aos comes-e-bebes de Bloom, num hotel decente, tanto era melodia que se tornou um ruído.
Aquela risada da Naína.
Sim, pois o que ele sentia pela colega? Naína não era o destino, mas uma ponte. Mas uma ponte para onde?
Andanças. HD empurra o corpo adiante ao pináculo do templo, digo, do alto do Shopping, onde Naína não estava, onde tocava Tears for Fears, “Advice to Young Hearts”, onde um casal se esfregava junto ao bebedouro.
Andanças, pois ele já não tinha paciência. Tênis e sensações à mostra. Um sorriso à suaves prestações. Compre hoje e pague na Copa de 2002. Promessas de virilidade encarnadas num blazer novo.
Uma linda morena estende os braços no stand de chocolates finos. Mas ela não é Naína. O que significa Naína? Ou antes, a ausência de Naína?
Naína e o carro que papai deu de presente. Mas o carro está na garagem. Ela não tem carteira. E ele nem sabe qual pedal é o acelerador. (Apesar de Flávio ter prometido algumas aulinhas de direção...)
Chocolates finos. Bombons com licor de cereja. Linda, a morena. Brincos discretos. Mas (ele insiste) não é Naína! “Come, chocolates, pequena...”, soam os versos de Pessoa.
Aí Naína tira a carteira e chega balançando as chaves. Ele morre de inveja! Afinal quem dirige é o homem! O namorado conduz a namorada em seu conversível. (Ah! o excesso de filmes ianques dos anos 80! Aqueles onde jovens se divertem a doidado, e matam as aulas para namorar no drive-in!)
Então (eu já disse) ele ficou com inveja e o caso foi para o limbo. Ela é quem dirige? Ela é quem oferece carona? Ela é quem mora no Gutierrez? Ela é que é filha de uma médica e de um advogado? E ele? Mora em pensão, vive de Bolsa estudantil, da pouca mesada do pai funcionário público, ou da mãe pedagoga, desempregado por ciúmes do gerente (que agarra a recepcionista!), jogado num curso de Ciências Sociais, numa cátedra de História, pensando em ser professor!
Mas ela agita a chave entre os dedos e oferece carona. E ele aceita? Não, limita-se a agradecer, mas é que precisa terminar o resumo sobre o Período Brasil-Império. E sábado à noite? Não, não vai dá, e o trabalho sobre a Revolução de 1930? Pó, ela é que toma a iniciativa e ele é que recusa!
O fato é que ele nunca entrou no carro da Naína (e tratava-se de um modelo nacional, estilo gota, uma fofura aquele vermelho claro!) e se afastou (ele se afastou!), em traumas, sem mentiras esfarrapadas, mesmo naquele dia em que ela foi de vestido vermelho (mais rubro que a tonalidade do carro!) parecendo a Marylin Monroe (uma Marylin não loira, mas com traços indígenas!) e ele ignorou (ignorou o fato explícito de que ela fora assim vestida para contra-atacar!) pois agora (que ela estava apaixonada) ele nada mais senti do que inveja.
E foi assim que HD perdeu a oportunidade de ascender socialmente! Escalar os degraus até a classe média belorizontina, através de um casamento tradicional (pois Naína era um mulher para casar!) com o futuro garantido e apartamento no Gutierrez!
Mas tudo isso porque a morena – ali a oferecer chocolates finos e bombons com recheio de licor de cereja – não é (e nunca seria!) a esperada Naína. Que ele sabia que não viria (ele sempre soube!), ela que, não exatamente por orgulho, ficara magoada. É que ela percebera a mesma distância, o mesmo fosso social...
Uma linda morena estende os braços no stand de chocolates finos. Mas ela não é Naína. O que significa Naína? Ou antes, a ausência de Naína?
Naína e o carro que papai deu de presente. Mas o carro está na garagem. Ela não tem carteira. E ele nem sabe qual pedal é o acelerador. (Apesar de Flávio ter prometido algumas aulinhas de direção...)
Chocolates finos. Bombons com licor de cereja. Linda, a morena. Brincos discretos. Mas (ele insiste) não é Naína! “Come, chocolates, pequena...”, soam os versos de Pessoa.
Aí Naína tira a carteira e chega balançando as chaves. Ele morre de inveja! Afinal quem dirige é o homem! O namorado conduz a namorada em seu conversível. (Ah! o excesso de filmes ianques dos anos 80! Aqueles onde jovens se divertem a doidado, e matam as aulas para namorar no drive-in!)
Então (eu já disse) ele ficou com inveja e o caso foi para o limbo. Ela é quem dirige? Ela é quem oferece carona? Ela é quem mora no Gutierrez? Ela é que é filha de uma médica e de um advogado? E ele? Mora em pensão, vive de Bolsa estudantil, da pouca mesada do pai funcionário público, ou da mãe pedagoga, desempregado por ciúmes do gerente (que agarra a recepcionista!), jogado num curso de Ciências Sociais, numa cátedra de História, pensando em ser professor!
Mas ela agita a chave entre os dedos e oferece carona. E ele aceita? Não, limita-se a agradecer, mas é que precisa terminar o resumo sobre o Período Brasil-Império. E sábado à noite? Não, não vai dá, e o trabalho sobre a Revolução de 1930? Pó, ela é que toma a iniciativa e ele é que recusa!
O fato é que ele nunca entrou no carro da Naína (e tratava-se de um modelo nacional, estilo gota, uma fofura aquele vermelho claro!) e se afastou (ele se afastou!), em traumas, sem mentiras esfarrapadas, mesmo naquele dia em que ela foi de vestido vermelho (mais rubro que a tonalidade do carro!) parecendo a Marylin Monroe (uma Marylin não loira, mas com traços indígenas!) e ele ignorou (ignorou o fato explícito de que ela fora assim vestida para contra-atacar!) pois agora (que ela estava apaixonada) ele nada mais senti do que inveja.
E foi assim que HD perdeu a oportunidade de ascender socialmente! Escalar os degraus até a classe média belorizontina, através de um casamento tradicional (pois Naína era um mulher para casar!) com o futuro garantido e apartamento no Gutierrez!
Mas tudo isso porque a morena – ali a oferecer chocolates finos e bombons com recheio de licor de cereja – não é (e nunca seria!) a esperada Naína. Que ele sabia que não viria (ele sempre soube!), ela que, não exatamente por orgulho, ficara magoada. É que ela percebera a mesma distância, o mesmo fosso social...
“Aviso aos corações jovens
Um dia vocês estarão velhos...”
HD resolveu subir ao alto das antenas, de onde, no ondular das serra, poderia sentir a cidade de Belo Horizonte aos seus pés.
Por que lá encima, tendo a cidade aos seus pés? Ansiando por visões de totalidade? Ele que não hesitava diante de um abrigo no passado, como fizera aquela manhã, mergulhado nos livros, e suas imagens de outrora, ali no Museu Abílio Barreto, um oásis de memória num deserto de esquecimento.
Um lar para o historiador, cujo trabalho é manter viva a memória, e as mil interpretações, dos fatos que estão sepultos sob o asfalto e as escórias do dito progresso, onde uma fragmentação, descontinuidade obsessiva cria um vazio de identificação, onde novas gerações desconhecem os feitos e opiniões das gerações passadas. Que pesam sobre as mentes dos vivos...
Mapas, planos, projetos, croquis, escalas, ampliações, maquetes, fotos de daguerreótipo, imagens já amarelecidas que lembram o Capital brotando de um imenso canteiro de obras, onde homens grávidos de idéias pretendiam erguer a cidade planejada, e seu gigantesco tabuleiro de xadrez, a Cidade de Minas, antigo Curral Del-Rey, enfim Belo Horizonte, com a muralha protetora da Serra do Curral, com o cartão-postal da Estação Ferroviária, do prédio dos Correios, do Palácio da Liberdade, a sede do Governo Estadual; além dos jardins da Praça da Liberdade, ao estilo parisiense, e o Parque Municipal que, se não desmembrado, engolido pouco a pouco, seria o nosso Bois de Bologne; além dos retratos dos construtores e outras personalidades de Ouro Preto, antiga Vila Rica, e fotos de bondes, e da alameda que era a Afonso Pena, coberta por imponentes fícus – todos sacrificados! – e fotos de antigos bares, o Estrela, onde Carlos Drummond e Pedro Nava se encontraram, onde hoje é o imponente Hotel, outro cartão-postal, e também do coreto do Parque Municipal, e o Viaduto Santa Tereza, além de beldades, fotos do Acaiaca, fotos da Lagoinha, do Calafate, do Funcionários, fotos e fotos e todo um passado saudosamente degustado como um bom romance, mas com a vantagem de ser real. Mas, ele – ele! – só tinha vinte anos!
Ele, um belorizontino da gema, mas educado sob a fuligem da siderúrgica de nome alemão, ali, não exatamente atolado, mas num ‘barreiro’ periférico. Antes o Barreiro fosse independente (havia quem fizesse campanha para isso!) e ele estaria na elite. Ou pelo menos mais próxima dela. Mas o que era o Barreiro?
Ora, onde ele vivera! Atoleiro mais velho que o Curral, abençoado pelos braços abertos do Cristo pálido no alto dos Milionários, bairro ou cidade, recortado por ferrovias onde locomotivas histéricas rasgam a noite.
Mas onde a prometida estação do metrô? E a faculdade?
O problema da periferia era um só: ser periferia!
Mas lá de cima ele via Belo Horizonte, a cidade planejada, nascida de um papel e uma canetada, dama requintada, a seus pés! E um vento numa zombaria carregando seus risos de satisfação.
Janeiro/2001
Davos prepara-se para a batalha. A Suíça um país tão pacífico! Chefes de Estado, representantes de mega-corporações, delegados, secretários, investidores, publicitários, além de outros especialistas, preparam-se para a papelada do Fórum Econômico Mundial, que descubro hoje acontecer desde 1971, feito de números e promessas.
Mas aguardem a reação! Em Porto Alegre, no aclamado Fórum Social Mundial, ativistas preparam a imagem invertida no espelho. E já armam suas redes na sombra e aguardam ansiosos os esperados discursos das esquerdas.
E as autoridades já se preparam para expulsar um arruaceiro francês que sai pelo mundo devastando lavouras de transgênicos! Ei, mas não é o mesmo que andava detonando as famosas lanchonetes fast-foods?! Com aquele jeito de Asterix contra os romanos (“Esses romanos devem ser loucos!”) Ah, se o Henri estivesse aqui!
Isso enquanto o pouso suave da água norte-americana não será nada suave, e o dólar sobe, e a vaca louca enlouquece, e discute-se a tal “segurança alimentar”, os canadenses recusam a carne bovina brasileira, e a Argentina descarta negociação bilateral com os ianques, ansiosíssimos quanto a área de livre comércio. Mas quer maior livre comércio do que os colonizados, sempre de mercado aberto, à serviço dos colonizadores com seus mercados protecionistas?, já diria Flávio, todo empolgado, passando do espanhol para o inglês e arriscando ofensas em francês (os de Quebec bem que merecem!)
Anistia e ONGs criticam repressão em Davos. Forças policiais fecham as fronteiras, revistam e deportam manifestantes, aí a Anistia exige liberdade de expressão, e as ONGs denunciam que há um Estado policial”, e agricultores continuam em protestos contra as plantações de transgênicos, e o anti-Davos Fórum Social fala em uma “sociedade civil global”, e Eduardo Galeano lê trechos de seu livro “Patas Arriba”, pois tudo está mesmo ‘de cabeça para baixo’, aí eu vou até começar a ler este livro! Aquele amigo argentino do Flávio, o Alonso, Ruy Alonso, não teria um exemplar?
Foi Darío Sabine quem marcou o encontro. HD lembrou que passaria nas bibliotecas. Mas acabaram se encontrando no Bandejão da Faculdade de Direito. HD seguia pela Augusto de Lima e Darío Sabine descia a Álvares Cabral.
- “Quando do comida aos pobres me chamam de santo. E quanto pergunto por que não têm comida, me chama de comunista.”
- De quem é essa?
Estavam na fila do Bandeja. Darío de olho nas saladas, e HD atento aos bolinhos de carne. Obviamente, Sabine continua vegetariano convicto, natureba clássico, mas sem entrar para o Partido Verde.
- Do Helder Câmara. “La caridad consuela, pero no cuestiona”, Eduardo Galeano.
- Certo, certo. – HD se apossando dos bolinhos – Pois a caridade é vertical, de cima para baixo, mas a solidariedade é horizontal, de igual para igual.
Darío Sabine concentrava-se na salada. HD ocupava-se em estranhas cirurgias nos bolinhos, mas sem deixar de falar. – Mas ele era mesmo comunista? Digo, no sentido de comunismo enquanto ideal cristão, que os ateístas se apropriaram, etc. Entende? A aproximação é fraternidade, a solidariedade cristã. O Boff, você sabe, sempre defendeu. Mas fragiliza a moral laica. Apenas sou solidário se aguardo a recompensa no Paraíso? E deixo o inferno aqui na Terra?
Como da outra vez (vocês certamente se lembram) o prato de Darío cede espaço ao vazio e o de HD continua cheio. Darío então começa a falar para que HD possa então dedicar-se aos bolinhos.
- O problema é que o socialismo resvalou em estatismo. Lembra do Everton? Chamava o Stalinismo de Fascismo de Esquerda, Totalitarismo de Esquerda, esses rótulos. E o Cristianismo (você leu isso em Weber!) com sua ética protestante deu impulso ao espírito do Capitalismo.
- Falta de coerências, é isso? Tipo: fascismo com apoio das massas e democracias com despolitização graças à mídia de massa? Mas e o cristianismo enquanto pelego da competição egocêntrica capitalista? Uma espécie de amortecedor pseudo-ético, “Meu Reino não é deste mundo” ?
E HD esquecia-se de comer.
Mas ambos se lembravam de Celso, anti-democrata, anti-iluminista, fundamentalista-cristão, pretenso poeta, futuro padre. Alex tentava se fazer entender. O mesmo Alex que sumira, mas que, quando a saudade atingisse o ápice, voltaria. (Até mais rápido do que imaginavam!)
Alex, concluindo um raciocínio: - E considerando-se o formalismo russo...
Celso já cortava. – De formalismo a poesia está farta! E de russos já me basta os comunistas. Coisa de ateus. O próprio Dostoiévski, que os desprezava, dizia, “Se Deus está morto tudo é permitido”. Se Deus está morto, então que exista Stálin! Alguém precisar representar a autoridade. O povo precisa de autoridade! De um líder, alguém, ou algo, ao qual obedecer, tal um rebanho precisa de um pastor. Comunismo? Nem o dos doze apóstolos! Afinal alguém – e logo o traidor! – não tomava conta da bolsa?
E começava a narrar um caso hipotético (ainda bem que hipotético!) onde apresentava uma dona-de-casa, mãe amargurada e ressentida, que cansou-se de servir ao marido na mesa e na cama, a tornar-se altamente repressora, governando os filhos com punhos de ferro, controlando seus gestos e preferências sexuais. E a dona-de-casa defende que os bandidos devem ser colocados em campos de concentração, os assassinos merecem a pena de morte, os estupradores devem ser castrados, os ladrões sofrerem com as mãos cortadas, os desempregados levarem surra para ‘tomarem vergonha na cara’. Diz tudo como se os desempregados fossem os culpados e não as vítimas. E proclamaria, se subisse ao poder, que o melhor programa cultural é a novela das seis. E que um dever (por excelência) a freqüência às missas, a doação de esmolas e o beija-mãos, do padre, principalmente.
E continuava a hipótese (ainda bem que apenas uma hipótese!) onde a tal dona-de-casa sobe ao poder, sei lá, vira senadora vitalícia que nem o general, ou presidenta, ou primeira-ministra, dama-de-ferro que nem a Tatcher, uma ditadura fazendo o figurino Hitler de saias! E então veremos a mulher, antes oprimida, tornar-se opressora, numa pavorosa alquimia, transmutando ressentimento em dominação, tão zelosa quanto antes quando limpava a poeira dos móveis. Estabelecerá horários, toques de recolher, proibirá casas de show, instituirá o catolicismo como religião única, perseguirá os ateus e outros hereges, eliminara os bandidos e os preguiçosos, os vagabundos e os filósofos! E as novelas seriam reescritas e transformadas e meio de educação, programação única na TV, pois telejornais e debates são chatices. E os galãs e as mocinhas distribuirão, junto com os seus sorrisos, pérolas da sabedoria e da moral!
- Pesadelo!
- O Celso é um carola louco!
- E o Alex?
- Ah, daqui a pouco ele aparece. Hum! Esse bolinho está ótimo!
E começava a narrar um caso hipotético (ainda bem que hipotético!) onde apresentava uma dona-de-casa, mãe amargurada e ressentida, que cansou-se de servir ao marido na mesa e na cama, a tornar-se altamente repressora, governando os filhos com punhos de ferro, controlando seus gestos e preferências sexuais. E a dona-de-casa defende que os bandidos devem ser colocados em campos de concentração, os assassinos merecem a pena de morte, os estupradores devem ser castrados, os ladrões sofrerem com as mãos cortadas, os desempregados levarem surra para ‘tomarem vergonha na cara’. Diz tudo como se os desempregados fossem os culpados e não as vítimas. E proclamaria, se subisse ao poder, que o melhor programa cultural é a novela das seis. E que um dever (por excelência) a freqüência às missas, a doação de esmolas e o beija-mãos, do padre, principalmente.
E continuava a hipótese (ainda bem que apenas uma hipótese!) onde a tal dona-de-casa sobe ao poder, sei lá, vira senadora vitalícia que nem o general, ou presidenta, ou primeira-ministra, dama-de-ferro que nem a Tatcher, uma ditadura fazendo o figurino Hitler de saias! E então veremos a mulher, antes oprimida, tornar-se opressora, numa pavorosa alquimia, transmutando ressentimento em dominação, tão zelosa quanto antes quando limpava a poeira dos móveis. Estabelecerá horários, toques de recolher, proibirá casas de show, instituirá o catolicismo como religião única, perseguirá os ateus e outros hereges, eliminara os bandidos e os preguiçosos, os vagabundos e os filósofos! E as novelas seriam reescritas e transformadas e meio de educação, programação única na TV, pois telejornais e debates são chatices. E os galãs e as mocinhas distribuirão, junto com os seus sorrisos, pérolas da sabedoria e da moral!
- Pesadelo!
- O Celso é um carola louco!
- E o Alex?
- Ah, daqui a pouco ele aparece. Hum! Esse bolinho está ótimo!
“Pacato cidadão, te chamei a atenção
Não foi à toa, não”
Alguém cantarolava, acompanhando ao violão, lá fora, junto às escadas. Um reggae do Skank.
HD percebia a atenção de Sabine, e comentava. – Mas não é que o louco do Celso tem razão! O povo prefere a autoridade. Só funciona à base de pancada. A ordem estabelecida torna-se norma. O povo aceita o que aí está, não luta para mudar, para atingir o que devia ser!
- E nem precisa de muita repressão. A coerção é internalizada. O medo é mais forte. Sufoca até os querem lutar.
“C’est fini la utopia, mas a guerra todo dia
dia a dia não”
- Eu quero o meu, logo defendo a propriedade. Mesmo sabendo que a distribuição da mesma é assustadoramente desigual.
- O pior é que o cidadão não se reconhece como sujeito social. – Sabine precisava falar senão HD não esvaziava o prato. – Não se percebem enquanto agentes e criadores da realidade na qual vivem. E o cidadão não pode nem imaginar em ficar indiferente numa democracia, onde se requer participação!
- Sei, sei. Só os sistemas autoritários, fascistas, ofertam aquele pseudo-sossego de resolver os negócios dos cidadãos, aliviando-os do terrível fardo de precisarem decidir por si mesmos!
- O proletário não percebe que é ele quem cria a riqueza social, ele é o produtor. E as chamadas ‘classes produtoras’ são meras investidoras, detentoras do capital...
E assim didáticos, enquanto ao redor os futuros advogados cantarolam o “pacato cidadão”, ou piscavam olhares à colega da classe de Direito Civil ou de Metodologia Científica.
[...]
LdeM
Nenhum comentário:
Postar um comentário