sábado, 3 de julho de 2010

final do Capítulo 4 de Náuseas de Estudante

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Comentam – os outros rapazes, pálidos candidatos – os casos inusitados, que conhecem, que vivenciaram, onde os candidatos se dão mal... Assim, um deles que esperava numa sala de entrada a hora da entrevista e encontrou clipes metálicos numa mesinha ao lado e começou a brincar, a desdobrar e a amassar e a montar novas figuras com os pobres fiozinhos metálicos e até que deixou ali boa meia dúzia de figuras pouco geométricas... Nisso aparece uma atendente, “Olhe, agradecemos ao Sr., mas o Sr. não se encaixa em nossos quadros...”, e ele, boquiaberto, arrasado, quer saber o motivo, “Ora, se o Sr. nem é funcionário e já danifica material da empresa...!” e todos seguram os risos.

Um outro lembra a velha armadilha da apostila da Empresa a disposição numa mesinha – e também um monte de revistas ou a TV ligada com banalidades e tal. Então o candidato é interpelado sobre a Empresa, mas ficara embasbacado diante da TV ou a folhear revistas de moda feminina de celebridades, fofocas, sabe-se lá mais o quê! E a mina de ouro ali do lado... “Caso o Sr. tivesse o cuidado de se informar sobre a nossa Empresa...” e adiós vaga querida!

Agora o tempo passa veloz e soam quinze horas. Na sala principal, lotada, jovens trocam apreensões, e HD somente reconhece aqueles dois jovens (um dos quais foi aquele que o cumprimentou) remanescentes do grupo de quase cinqüenta! (Aproveita o tempo ocioso para calcular: cinqüenta pessoas se apresentam, umas cinco desistem por causa do horário ou insatisfação com o salário, e umas dez são eliminadas por não satisfazerem o perfil traçado pela instrutora; depois, a prova acaba por eliminar mais uns dez. Sobraram quantos? Uns vinte e cinco. E quantos escolheram o mesmo cargo e horário? Talvez uns dez. Ou nem isso. Veremos.)

Três e meia, quinze horas e trinta minutos, e nada. Fila da Previdência Social? O aconselhado é indagar (quem tem boca vai às ruínas de Roma...) apenas para receber a resposta de que outra turma está sendo avaliada, e que a Dinâmica de grupo incluirá os que passarem nesta avaliação. Esperemos portanto. Deixa-se ficar ali na sala principal, ouvindo fragmentos de conversas fúteis e diálogos patéticos de todos aqueles que esperam a porta do paraíso celeste da vaga de emprego se abrir e anunciar o próximo redimido que deverá passar pelo fogo purificador do teste de digitação e então encontrar-se apto para entregar seus documentos. Todos aqueles documentos exigidos!

Comentários sobre o filme ianque da temporada, sobre as novelas globais, sobre os seriados made in USA (“McGywer salvou fulano com um barbante, uma goma de mascar, e um pedaço de papel laminado, daqueles de bombom... hahaha!”), até que uma voz se sobressai, “Ele acredita que o que fez o bolo foi o acidente da caminhonete”, trata-se de um jovem de uns dezoito anos, com uma camiseta de banda de rock pesado made in USA (uma geração antes e ele estaria com uma camiseta do IRON MAIDEN) e em plena dissertação entusiástica sobre o criacionismo versus evolucionismo diante da platéia de duas garotas e um outro rapaz (o que se diz ateu)

Continua o rapaz com a camiseta da banda de rock pesado made in USA (e dificilmente saiba o que a banda diz!), “Pois, vocês devem saber, existem duas idéias: o bolo foi feito por alguém, no caso um Deus, que criou tudo, ou, então, o bolo foi uma coisa casual, por geração espontânea, tipo assim, haviam uma fôrma e um saco de farinha na caminhonete, aí ela tombou junto a um poço, a farinha caiu na forma, onde caiu água, havia também um saco de açúcar que derramou também, et cetera, até que apareceram uns ovos e eis o bolo prontinho! Isso porque a massa caiu no asfalto quente...” Aí uma das garotas não hesita em perguntar: “Mas existia uma fôrma, não existia? Por que uma fôrma? Não havia já o propósito de se fazer um bolo?” e aí a conversa segue entre o sério e o jocoso.

Impressionante a capacidade dos jovens de tornar cômico qualquer assunto, por mais solene e filosófico que seja! Pensa um HD querendo entender. Mas logo dois membros do grupo são chamados e a conversa esfria. HD resolve voltar ao seu cantinho, nas bases da escadaria, junto aos lavatórios.

Desce os degraus e lá estão os dois jovens que passaram na avaliação da manhã (um dos quais o cumprimentou, observemos...) e HD logo esclarece que nada de Dinâmica e “Olhem que já são quatro horas”, e o outro comenta, “Vou trazer um colchonete da próxima vez!” Mas o assunto não rende e HD debruça-se sobre umas tantas folhas impressas, em suas leituras sobre o marxismo.

O tempo passa (pois não é que precisa passar?) e meia hora depois uma voz desce aos sobreviventes. É a instrutora que vem chamar o grupo. Na sala de teste, eis mais cinco pessoas, todas jovens entre dezoito e vinte e sete anos, são três moças e dois rapazes, todos advindos da avaliação que findara minutos antes. Assim são , ao todo, oito pessoas depois de duas turmas serem avaliadas! (O cidadão, ao lado, esclarece que, devido ao horário, poucas pessoas se interessaram, além de que existem outras áreas de atuação em telemarketing, etc) Adentram a instrutora (outra) e dois supervisores da Empresa.

Informam que terá início a Dinâmica de grupo – e logo torna-se visível ao apreensivo HD a mesmice da situação, “eu já vi essa antes...”, inclusive essa de “seja você mesmo”, “temos pouco tempo para avaliar vocês”, “não queremos qualquer tipo de representação, maquilagem aqui”, etc – e sugerem logo aquele tipo de apresentação cruzada (e HD já participara de outras) onde o grupo é dividido em pares e um se apresenta ao outro, que apresentará o primeiro. Assim, HD está frente a frente com um DH, e ele se apresenta. “HD, 21 anos, mineiro, solteiro, estudante, gosto de ler...” , e em seguida o outro. “DH e etc etc” e vê-se que é de classe média, bem educado, bem falante, bem nutrido, branco e musculoso, pratica esportes radicais (no entanto fuma) e já trabalhou com vendas, em lojas, ao mesmo tempo em que tentou montar uma banda ( de que?) mas acabou deixando as vendas e transformando a música em hobby.

As duplas se apresentam – um apresenta o outro – e os supervisores, ao anotarem os dados, vão perguntando os pontos positivos e negativos de cada um (todas as dinâmicas coletivas serão iguais? Desde a faculdade de Psicologia os agentes de RH aprendem as mesmas coisas, os mesmos testes?) e HD consegue deixar a instrutora confusa, quando revela ser seu ponto positivo a calma, e o ponto negativo, a ansiedade, e ela: “Como é isso? Calmo e ansioso?”, e ele: “Como todos podemos ver, aqui entre os candidatos, a ansiedade é algo comum, e mesmo os mais tranqüilos atravessam fases de ansiedade. Um contra-balanceia o outro. É difícil ser sempre calmo ou sempre ansioso... Existem situações de mais ansiedade, esta agora , por exemplo...”

Agora, a Dinâmica inclui um teste de aptidão vocacional par vendas. Dois grupos (cada um com quatro pessoas) e cada grupo deverá fazer a promoção de um produto – inventado. A instrutora e os supervisores serão os compradores. No grupo do HD (onde participa o DH, que além de esportista, músico, é fã de quadrinhos, e já leu “O Mundo de Sofia”, além de duas mocinhas: uma toda fofinha, lindinha, meiguinha, tímida, e outra morena, vivida, feia e arrogante, com certa experiência em vendas) surge a proposta de um secador de perucas (idéia do DH que, além de tudo, já foi vendedor numa conhecidíssima rede de sapatarias!) e HD contrapõe com a idéia de um tênis (ou sapato) com ar condicionado! A idéia é prontamente acatada pelas mocinhas, mas sofre resistência por parte de DH, de quem HD esperava plena aprovação, já que o cara conhece de calçados...

Mas HD não desiste, resolve convencer o outro com leveza, sutileza, como quem não quer nada, com bom humor, e DH acaba por concordar em apresentar o produto, “com toda a minha experiência, como você mesmo disse...”, enquanto HD preocupa-se com as vantagens, e as mocinhas abordam as formas de pagamento.

Já o outro grupo tenta vender a idéia de uma nova bebida tonificante sem álcool (ao estilo redbull) e o tal ex-garçom ( o tal que saudou HD antes) é o que mais fala. Tentam ‘vender’ a bebida para os instrutores e alegam que entre os efeitos da bebida encontra-se o de melhor audição para atendentes de telemarketing, além de tonificar a voz para quem fala muito ao telefone!

Os avaliadores (principalmente a instrutora) inventam todo tipo de dificuldades e apontam mil defeitos nos produtos, testando assim o poder de convencimento dos ‘vendedores’. Ainda mais quando se oferece um tênis com ar condicionado! Com refil lateral para troca de ar, com bateria removível e recarregável, menor que a de um celular, isso tudo DH segue falando, mostrando toda a sua experiência com venda de calçados, insistindo na relação custo-benefício, e segue com a lábia mesmo depois de HD apresentar as vantagens reais do produto, indicado para quem sofre de suor excessivo nos pés e odores desagradáveis. E as mocinhas são diplomáticas quando falam de valores, abusam de eufemismos, avolumam parcelamentos, amontoam garantias, e aceitam tudo – cartão de crédito, débito, sabe-se-lá-mais!, e cheque para até sessenta dias! Além de negociarem um seguro (afinal quem vai correr o risco de sair por aí com um tênis de quase mil reais?!)

Tudo é avaliado: atitude, poder de argumentação, apresentação pessoal, liderança, etc. Os avaliadores logo se retiram para uma sala contígua e passam a deliberar quem vai ficar e quem vai ser eliminado (sem direito àquela ‘espiadinha’...) , pois o processo continua (vai anotando: teste de digitação, documentação, depois exame médico, treinamento intensivo seis dias por semana, ufa!) Impressionante! O currículo fica quinze dias parado lá na gaveta e quando o RH convoca, quer resolver tudo em 48-horas! Vá se entender! Deixa-se pensar o atordoado HD.

Uma lista de nomes nas mãos da instrutora, eis o veredicto. Apenas cinco nomes. As mocinhas inexperientes são logo dispensadas, só a morena (a que trabalhara com telefonia em bancos) permanece. Outra coordenadora distribui uma lista (enorme!) de documentos exigidos. No olhar de HD pode se ver: É nesse pântano que vou atolar!


Assistindo a debandada geral dos funcionários, os candidatos esperam as detalhadas explicações da coordenadora. “Onde estão os colchonetes?” quer HD logo saber do colega ao lado, o DH. Afinal, são sete horas e a agência já fechar a muito tempo! Os minutos parecem escoar lentamente, mas escoam. Todos saem juntos, trocando votos de amizade e acariciadas esperanças, principalmente o ex-garçom, o muito falante rapaz, ali ao lado de HD, perguntando pelo almejado destino do ‘colega’, enquanto na esquina com a Amazonas, tumultuada avenida de outdoors nova-iorquinos, o grupo se reparte em despedidas.

O ex-garçom, acompanhando os passos de HD, rumo a downtown, também está preocupado com a lista de documentos e HD expõe o desconforto que o golpeia, “ Vou perder a vaga não porque falta aptidão – afinal passei em todos os testes – mas porque exigem documentos para 48 horas! Assim, o excesso de exigências mantém a empresa sem empregados, e os profissionais ficam sem empregos, aumentando assim o mercado informal, onde nada é assinado e,no entanto, o trabalhador tira uma grana, mesmo sem qualquer garantia, ou direitos”.

Logo HD quer saber do ex-garçom se ele tem real interesse pela vaga, se pode realmente se imaginar trabalhando dois anos ou mais naquilo. O ex-garçom pensa com um sorriso e diz estar acostumado a lidar com pessoas, cara a cara, e até braço a braço! Vez ou outra precisava expulsar um ou outro cliente que passa dos limites – “Lembro sempre que é preciso consumir com moderação!” – sem perder o rebolado.

Descendo ao boulevard da avenida Barbacena, HD comenta meio irônico que quem sobreviver ao trabalho de garçom, está pronto para qualquer outro. “Também não é assim!”, o ex-garçom sorri. HD não desiste, “Mas a imagem que você pintou!” E o ex-garçom gosta de falar (percebe-se) e HD lembra que realmente o falante amigo poderá mesmo passar dois anos e mais pendurado lá nos fios da tlefonia, até porque lá tem a facilidade de não haver a presença física do cliente...

E o ex-garçom prossegue com o desfile de lembranças, os tipos de fregueses, e principalmente de um que fosse até de madrugada, bebendo e jogando xadrez. “Jogava xadrez, o cara bêbado?”, HD pergunta. “E eu também!”, responde o ex-garçom. E comentam jogadas de xadrez, que HD conhece das tantas derrotas diante de Flávio, e o ex-garçom explica seus lances prediletos, enquanto contornam a praça Raul Soares, e HD confessa precisar de um mestre, ao que o falante companheiro replica “Melhor um bom adversário que um mestre! Um bom adversário que te obrigue a lances mais táticos, e originais”, e HD, dado ao aforisma, “Adversário é o outro nome para mestre.”

O ex-garçom ainda explica lances inusitados, quando se separam na esquina Augusto de Lima com São Paulo. “Será que algum dia eu o verei novamente? Por que ele quis se aproximar?”, pensa HD já na escalada da ladeira da Rio de Janeiro.

No “Castelinho”, isto é, o Centro de Cultura, ex-Câmara Municipal, ex-museu, ex-etc, HD encontra a imagem dos colossais e vetustos portais de ferro – fechados. Portais que décadas antes, em brumoso passado, se abriram para o rato-de-biblioteca Pedro Nava, assombrado por memórias! Mas uma gentileza do porteiro permite seu acesso ao balcão interior, onde se dedica a conferir informes e escolher folhetos. Nada de interessante e não saiu a programação do mês. Mas, não pretendendo sair de mãos vazias, leva dois exemplares do “Suplemento Literário” do mês recém-finado.

Desce a rua da Bahia, povoado de ruídos, pessoas, passos apressados e pensamentos soltos. A imagem da mocinha de seus afetos ali se faz presente. Pensa em parar no próximo orelhão, um simples telefonema... Não, ainda não. Assim, passo a passo, atinge o viaduto Santa Teresa, onde o Poeta se alçava às alturas, sim, os versos de Drummond ressoam nos vórtices sonoros de buzinas e motores, “o rio de aço do tráfego”, sim, o inchaço das metrópoles – o que restava da Belo Horizonte dos relatos do Memoralista, dos poemas do Poeta? O racional projeto das cidades – onde? Só resta a “racionalidade instrumental”, aquela dos escritos de Weber, o sociólogo, lado a lado com a “irracionalidade inercial” das tantas misérias e superstições, seitas e lucros excusos, consumismos mil, enquanto pensa em soluções socialistas na fila da bilheteria do metrô e soluções literárias quando uma senhorita abre um livro de crônicas na tumultuada plataforma da estação.

Sabe que pensará na mocinha, sabe que seu desejo é real e crescente, sabe e sabe, mas tudo para deixar-se relaxar e cochilar, antes de descer duas estações rumo ao oeste, enquanto um casal troca olhares e carícias, pois a vida continua.






final do Capítulo 4

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LdeM

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