sábado, 10 de julho de 2010

Náuseas de Estudante - Cap 5 / início


Capítulo 5



Ele sentiu os olhos se abrirem antes que o despertador ousasse qualquer escândalo. Os olhos seguiam os vestígios de luz invadindo as cortinas, caminhando pela parede, lambendo o alto do guarda-roupa, incidindo na estante, numa espécie de cascata dourada.

Mas o corpo não se movia.

Aí o despertador se manifestou – sintonizado numa rádio local que derramava clássicos rock’n’roll dos anos setenta. Ele estava sozinho no quarto, por isso ninguém protestou. A cama ali ao lado – ainda vazia.

Na verdade ele já começava a ter saudades do Fred Mutantes.



- Hector, garoto tão inteligente, mas tão sem paciência!

Uma acariciante voz às suas costas. É Selma, a loira de sorriso cativante, ainda que intimidante. Tem a mania de tratar HD num tom um tanto maternal, apesar de ser apenas um ano mais velha.

O caso é que Rosália, a amiga de Darío Sabine, e sua irmã Antonieta são um tanto parecidas, e HD julga reconhecer Rosália nua mesa de estudos na biblioteca, ao lado de uma estudante de olhar ansioso, com seus cabelos claros, quase loiros. “Olá, Rosália, o que está estudando, hein?”, mas descobre, pelo sorriso da outra, o seu engano, pois esta é a Antonieta! Mas ele não se intimida e continua a abordagem. Estão ocupadas com um trabalho sobre o Renascimento, assunto que ele domina bem. E é apresentado a Selma, que estuda História Européia, e um período avançada.

Antonieta não é tão, digamos, extrovertida quanto a irmã Rosália, a que promovia aquelas festinhas na moradia Borges da Costa. Aqui é a Selma quem alimenta o diálogo, que começou com Da Vinci, e segue com Montaigne e literatura francesa.

- Cansa muito a gente ficar se interrogando. Ah, acho que li isso na Simone de Beauvoir, “agarro-me à idéia de ser feliz”. E felicidade não é apenas uma palavra!

E assim se tornam bons amigos.

- Então, o que anda fazendo, Hector? O garoto tão sem paciência...
E ele está sob aquele conhecido olhar de “quero saber tudo, não esconda nada”.

- Olha, Selma, eu não tenho tempo, sabe? Eu curso nove disciplinas na faculdade, eu trabalho, me dedico às traduções, estou me envolvendo com a Naína (você sabe quem é, não), não tenho tempo nem pra responder emails! E sabe porque eu faço isso tudo? Para não me matar. Eu, estando tão ocupado, tão envolvido com mil coisas ao mesmo tempo, não me permito pensar na morte, na miséria, no ridículo disso tudo. Sou o contrário do Mathieu (daquele romance do Sartre, lembra?), pois preciso dos compromissos para viver, e sou livre não tendo tempo pra pensar!

Mas Selma anda meio deprimida. O trabalho sobre o maio de 68, “o ano que não findou”, é um tanto desgastante. Ela precisa desabafar. Sobem ao segundo andar da biblioteca, ocupado pelos periódicos, e ela dá livre vazão ao seu sentimento de perda, por não ter vivido toda uma época. HD lembra que há muita idealização, até porque a juventude de hoje é um punhado de tribos sem rumo.

- Mas o que me falta é a luta. Lutar por algo, entende?

Então ele a convida para a sua palestra sobre Malthus.



Quando HD vê a Naína, na parada do ônibus, com seu vestidinho branco, com motivos florais, várias imagens desfilam por sua mente ansiosa: a volúvel Sandra que o excita, a cada elemento químico da Tabela Periódica, mas depois o despreza, a melancólica Sonia Regina, com o seu ar triste de despedida, a esperta Vera, a recepcionista, que não hesita em sair com o gerente de recursos humanos. E pode incluir também aquela loirinha fascinante que ele encontra na floricultura, quando foi comprar flores para a sua mãe em maio.

- O professor de Sociologia, e a Sociologia nos incomoda tanto, que diante da montanha de sabedoria que ele é, só nos interessa apontar o seu “inreal”, ou “riquesa”, como uma forma de defesa frente a algo que é superior, daí sermos irônicos. É o mesmo que eu faço agora, apontando os seus erros.

É que ele é meio didático, e cínico, com Naína, mas ela sempre com aquele olhar de “fingirei que não entendi”.




- A superpopulação divide a riqueza e causa pobreza, além de provocar um extrativismo irresponsável que devasta o meio ambiente. Afinal, pra que tanta gente? Às vezes eu mesmo me pergunto o que faço aqui.

O professor e seu sorriso irônico, lembrando que se não mais se reproduzisse, ninguém daquela geração estaria ali, debatendo a reprodução!
HD aceita a interrupção (hábito comum do professor) e expõe a questão do descontrole – e do descompasso! –, o problema do desemprego estrutural, a reserva de mão-de-obra, os gastos do Estado para com os economicamente inativos.

- Ou então a esfera produtiva deve acompanhar o aumento populacional.

Atenta, Selma observa que Malthus aborda o problema da alimentação. HD concorda, mas amplia a visão de Malthus para toda a atividade econômica.

Malthus se preocupou com o descompasso entre o crescimento populacional e a produção agrícola necessária para alimentar o povo. Hoje a questão é o descompasso entre o crescimento populacional e o crescimento da esfera produtiva. Produção enquanto produção agrícola ou manufaturas. Percebe-se que o Capital não gira, não é investido na ampliação do setor produtivo, mas fica nos setores financeiros, rendendo juros, no cassino da especulação. Para que montar empresas e postos de trabalho se o dinheiro clona a si mesmo?

Meneando afirmativamente a cabeça, o professor mostra-se satisfeito com a exposição de seu aluno militante, aquele tipo que se empolga com as temáticas. Espera, atencioso, o grand finale.

- E como há um crescimento populacional e poucos postos de ocupação, ocorre hoje um nível de competição jamais visto. Conseqüentemente um aumento do estresse, do sofrimento psíquico, e as paranóias e neuroses.




- Leitura legal.

Tudo bem. Mas Naína se referia a obra “Vidas Secas”, de Graciliano Ramos.

- Legal? Você e essa gírias de MTV. Legal ler sobre a miséria alheia, hein? Antes aqueles retirantes na miséria do que eu, não é?

Ele sempre soubera que aquele romance com Naína não seria muito produtivo. Com toda uma mentalidade de classe média, ela reproduzia o que aprendera: uma total indiferença com o sofrimento alheio.

Os romances nordestinos sobre retirantes: da miséria de outros vamos criar arte. Hoje são os favelados que aprecem ‘legitimados’ em livros e filmes.

E Naína esforçava-se por entender, mas ele já empolgava.

- Existem até loucos que agradecem as secas do Nordeste, pois se não ocorressem, não haveria retirantes para inspirar essas obras de arte! O que seria do Graciliano, da Rachel, do Zé Lins, dos poemas-épicos do João Cabral com sua ‘vida-severina’?
E falando, ele sempre esquecia de comer. Ela, ao contrário, já engolia o sanduíche. Agora pedia um milk-shake.

- Então é legal? Ora, precisamos é parar com esse hedonismo de julgarmos as coisas pelo prazer! É preciso consciência, conscientizar-se. Pois o sujeito pensa: não vou ler Thomas Mann, que é muito cerebral, ‘chato de galochas’, vou ler romances de aventuras ou livretos-pornô-de-banca-de-revistas! Se ele busca prazer, encontrou. Mas aprendeu o quê? A leitura deve trazer aprendizagem! Se o estilo traz algum prazer, estético ou erótico, ou ambos, tudo bem! Mais importante é a conscientização!

E ele acabava pedindo um milk-shake também.




Ou encontrava Darío pelos corredores.

- O Brasil podia ser república desde 1817. Pernambuco sempre inquieto (desde os Mascates, lembre-se!) e não passa nem uma década e fuzilam o Frei Caneca.

É que Darío se empolgava com uma monografia sobre a Revolução Pernambucana, a proclamação de um regime republicano diante de uma dita monarquia constitucional, e a posterior proclamação da Confederação do Equador, exigindo uma constituição mais liberal.

- Naquele tempo ser liberal era ser de esquerda.

- Naquele tempo!

E notava o volume que HD conduzia. “O Diário de Getúlio Vargas! É sério, hein?” Isso porque a empolgação de HD era a década de 30.

- “O aparente prosaísmo da vida rural é bem mais interessante do que parece.” Vargas escreveu logo de início. Em três de outubro de 1930!

- O regime corporativista-trabalhista de Vargas foi um regime contra-revolucionário que dissolveu a revolução proletária, ou transcendia o fascismo num esboço de social-democracia?

Inevitavelmente desciam até a lanchonete da Letras, e Darío polemizava. – Vargas foi o nosso Perón ou o nosso Roosevelt?

- Falta agora você perguntar se o JK foi o nosso Kennedy!

- Chegou a existir capitalismo no Brasil?

- Pense, Sabine, meu velho!, se essa denúncia da Esquerda (essa de que o trabalhismo getulista é pelego ) não acaba ajudando aos triunfalistas neoliberais que proclamam o atraso da legislação trabalhista e pregam a flexibilização?
Pediam torta de frango, e HD nem esperava Darío responder.

- Os governos dos senhores Collor, Itamar e FHC-oito-anos são o total desmonte da Era Vargas? As privatizações, o fim da reserva de mercado, isso tudo é o golpe final?

- Mas quanto tempo o capital se agüenta sem o Estado? – não respondendo, mas revidando, Darío descobria outras questões – Não é o Estado que acaba pagando a conta das irresponsabilidades do capital? Por que esta onde de insultos como se o “Leviatã” não passasse de uma trava inoportuna?
O suco em latinha era bom, mas HD preferia uma laranjada. Darío não se importava 9até por que pedira um sanduba natureba.)

- Por que Vargas se matou? Por que Jânio renunciou? Quem matou o Jango? O acidente com o JK foi mesmo um acidente? Perguntas que não vão abafar!

- Certo, Sabine, você pode até perguntar, mas quem vai te responder?

- E quem matou Tancredo neves?

- O mesmo despotismos que detonou a bomba do Riocentro!

Ambos desconfiados das novas esquerdas (“que aplaudem Walesa!”), não podem deixar de lembrar as exaltações de Everton, naqueles saudosos sábados à tardinha.


- É igualzinho esses povos sob regime socialista – ou estatista, se preferem – que trocam a justiça social e o cooperativismo pela promessa de felicidade capitalista na compra de uma TV a cores ou no carro novo na garagem! O socialismo não objetiva trazer consumo, mas igualdade de oportunidades.

Ou quando comparava as trajetórias dos cristãos e dos comunistas, afinal (Alex dizia) são dois credos, dois sacerdócios.

- Os cristãos sofreram nas mãos dos romanos até serem legitimados pelo poder imperial, mas aceitaram colagens pagãs até atingirem a autoridade de nomearem reis e perseguirem hereges. Os comunistas fizeram a Revolução, detonando o czarismo russo, mas a guerra civil e os expurgos dos anos 30, expurgou a “velha guarda” dando lugar aos burocratas nacionalistas que deram prosseguimento ao imperialismo russo.

Na ocasião, HD ainda mais didático. – Com a precoce morte de Lênin, o Secretário Stálin dá um golpe dentro da Revolução e asfixia o socialismo com uma coletivização forçada, uma burocracia estatal e um unipartidarismo dogmático.

- É melhor uma ditadura socialista que uma democracia liberal? – Flávio perguntara, incomodado.

- Nada disso. A verdadeira democracia é a socialista.
E Darío complementava HD. – o que queremos dizer é que não houve ainda uma real sociedade socialista. A tentativa ainda é válida.

Não demorava e a discussão caía na disputa ‘moderados’ versus ‘radicais’, e Darío vê-se obrigado a esclarecer que se os bolcheviques, os radicais, venceram na Rússia em dezessete, na Alemanha, em dezoito, dezenove, acontecera o inverso, a derrota os espartaquistas e o assassinato de Rosa Luxemburgo.

Autora que, ao lado de Hannah Arendt, todos ali faziam questão de ler.

Mas nesse ponto Flávio narrava suas velhas discussões com seu cunhado Augusto (que todos ironizavam como o conflito entre Flavius e César Augustus), o que não deixava de ser interessante, pois Augustus, de origem periférica, casa-se com uma burguesa, e torna-se conservador, enquanto Flávio, de berço classe média, percebe a desigualdade social e defende as reformas.

Darío não perde a oportunidade de lembrar da Roma República decadente, com Catilina, soldado, de origem nobre, defendendo a igualdade social, às turras com Cícero, da província, mas que sendo arrivista, defende a propriedade, numa oratória conservadora.

- Portanto, minha gente, cuidado com os arrivistas!

Alex piscou o olho, sorrindo e cutucando o pobre HD.


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LdeM

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