domingo, 18 de julho de 2010

Cap. 5 de 'Náuseas de Estudante'

[...]

- Grande figura, o Alex! Tenho até saudades. Tardes parlamentares aquelas!

- Ainda bem que ninguém inventava leis.

- E eu me lembro do Celso. (Se lembra do el compadrito?) pois é, com aquela conversa, a la Churchill, de que o problema do capitalismo é a “distribuição desigual das bênçãos”, e que o socialismo cuida da “distribuição igual das misérias”.

- Se for para abrir a temporada de citações, não esqueça aquela do Gassett, Ortega Y Gasset, digo, de que bolchevismo e fascismo são “duas falsas auroras” pois trazem um “dia arcaico”.

- O “dia arcaico” ? o que ? o mercantilismo estatal? Só se for!

- Ah, se o Brasil tivesse dado cria a um Colbert!

- Mas o que levamos foi uma porrada do Marquês de Pombal!

- A gente só leva porrada mesmo!

- Que isso? Onde está seu ufanismo, seu nacionalismo neopositivista?
- Nem vou comentar. Vou sair de cena com uma citação do Gilberto Amada: “Um país novo povoado de ruínas. Feita em saltos, a nossa história desconcerta o investigador. É regime da inconseqüência.”

- Ainda bem que você não faz História.

- Prefiro a Sociologia do cotidiano... Do que está rindo?

- Do Alex te acusando de “intelectual de gabinete” !





Terra tupiniquim. Coincidência ou não, duas semanas depois, HD está no paraíso de Santa Cruz, Terra Brasilis, a sentir-se um Caramuru, cercado de indígenas, com seus corpos heróicos de sobreviventes e suas pinturas faciais de guerreiros. Em pleno bandejão do Campus!

Krenaks, Caiapós, Maxacalis, Xavantes, e outros povos, com seus dialetos, suas mulheres belas e robustas, suas crianças agitadas e de olhares curiosos, a sentirem-se estrangeiros na própria casa.

Mas é HD quem se sente estrangeiro! Afinal a terra foi conquistada dos povos nativos (ilha deserta isso aqui nunca foi!) numa sangrenta e contínua invasão, com aqueles navios despejando a pálida e raquítica imigração européia. – e vou comemorar os 500 anos? Como digerir a culpa social por ser branco europeu?

Sim, os índios altivos, suas mulheres belas, seus filhos saudáveis, e ali o filho de europeu, deslocado, sofrendo com o clima tropical.

- Ah, eu confesso, que saudade de Lisboa!



A aula de Estatística, com suas médias e medianas, esgotou o que lhe sobrara de paciência. Assim, HD resolveu dar o fora, o mais discreto possível. Claro que o professor não notará sua falta, e muito menos que o aluno vai repetir a disciplina. Isso realmente não importa.

O importante é que estamos longe de casa e existe um preço a se pagar por isso. Contas precisam ser pagas, compromissos devem ser cumpridos. O que se pode fazer? Pagar, claro. Mas o dinheiro vem gotejar da mesada. E, se tudo der certo, da Bolsa Estudantil. Após uma peregrinação por gabinetes, funcionários e “muito obrigado”, ao apertar a mão do gerente. Uma conta bancária, como todo cidadão decente.

Mas há que se preocupar com as notas (a oscilarem entre A e C, exceto o D e metodologia e o E em estatística) que são o espelho do bom aluno, aquele atento as grades de disciplinas e caprichos dos mestres, que sopram apenas para morder depois.
E sobrava tempo para alguma coisa? Não. Não deixa tempo para convidar a aluna da segunda carteira à esquerda, aquela morena com olhares nebulosos, sempre aérea, atrasada, com freqüência, para a primeira aula e reprovada em Antropologia, “Nem sei porque a gente estuda isso! Se vocês acham que vieram do macaco, o problema é de vocês!”, não que ela fosse criacionista, longe disso, mas por vaidade mesmo, “Ora, filha de maca é a mãe!” e daí ninguém levar a aluna à sério.

Por outro lado, não se sabe se HD está interessado na aluna ou a novidade. Pois tudo aquilo é novidade. Essas garotas a brotarem junto com os seus seios, com olhares úmidos e desejos que vazam e ninguém (ninguém?) dá conta, “É a idade, é a iniciação”, diziam os alunos que se aproveitavam. Mas as alunas diziam o mesmo, quando arrastavam (elas arrastavam!) os alunos (assim não se sabia quem jogava com quem, ou quem se aproveitava de quem, quiçá todos joguem e aproveitem!) e é tudo isso que deixa HD ocupado. Exceto quando está sem grana.

E hoje HD está sem um tostão. O dinheiro ainda não caiu na conta. Precisa buscar um cheque na própria Fundação. Lá no edifício com as carrancas dos índios. E pergunta-se: como?

Não encontrou Darío (hoje, quinta, ele freqüentava as disciplinas da tarde), e os demais onde estão? (por exemplo, o Flávio, que nunca negava uma carona) pois a solução é justamente esta: uma carona. Daí HD estar agora na portaria da Avenida Antônio Carlos, de olho nos carros que vão saindo.

O Campus encontra-se no seio de um bosque á caminho da Pampulha, zona norte, distante portanto do hipercentro, o que mantém a universidade afastada do povo mais do que já está. Espera-se que um aluno mais abastado e generoso ofereça uma carona ao estudante pobre, e em apuros, ali de dedão estendido.

Foi o segundo carro em dois minutos. Parou como se miragem. Um sujeito moreno, de óculos, abaixou o vidro e “se vai descer, pode subir”, foi o que disse o estudante, e riu. Na verdade, seria: “se vai descer para o centro, pode subir no carro”, e ainda bem que HD entendeu.

Um futuro psicólogo. Eis o que se podia dizer do generoso estudante. Morava no Sion, zona sul, e portanto atravessaria o hipercentro. Ótimo. Poderia deixar HD diante da igreja São José, e bastaria atravessar a Avenida. Melhor, impossível. E comentavam o estresse do transito. Ou o inchaço das cidades. Sem qualquer profundidade, apenas para se livrarem do vazio.

- Há um projeto para a duplicação da avenida...

- Li algo sobre isso. Nos jornais. Mas é que m sobra pouco tempo para ler... preciso terminar uma monografia sobre Doenças Psicossomáticas, essas coisas. Só consigo folhar o jornal na hora do almoço...

- É . Também pouco leio os jornais. Aliás, a minha preocupação é mais o passado do que o futuro...

- Deixe-me adivinhar. Estuda História?
- É. Por isso o lance do passado...

- Que sempre precisa ser reescrito. Reavaliado, em nova narrativa. Tipo um trauma. Sempre fragmentado, sempre narrado novamente e de outra forma...

- Vejo que você gosta do que estuda...

- Sim, gosto muito. E você? Não?

- Gosto, gosto. Mas é que às vezes me dá desespero. Acho que deveria estudar artes, literatura, sociologia, sei lá. Coisas atuais. No entanto vou me especializar em Governo Vargas.

- Entendo. O passado oprime a mente dos, digamos, sobreviventes...

- Marx dizia que “o peso das gerações passadas sobrecarrega as atuais gerações”. Algo assim. Até concordo. Mas lembro o tempo todo do James Joyce...

- Quem? – volta-se o futuro psicólogo, agora atento a mudança de sinal.

- James Joyce. Um escritor. É uma fala de um personagem dele, a que não sai da cabeça. “A História é um pesadelo do qual eu quero acordar”. Algo assim.

- E isso te angustia. Sei. Acho por acaso que eu também não me angustio? Faço análise. Toda semana. Amanhã à tarde, já sei, vou estar deitado naquele divã diante do doutor Ribas, contando pela enésima vez a história do primeiro ‘fora’ que levei, ou daquela discussão ridícula com a minha mãe na festa de aniversário da minha tia... Sabe? E o doutor lá, me ouvindo, e é a mesma coisa, somente vou narrar diferente, com outros detalhes e outros enfoques. Mas nunca vou me livrar disso.

E HD começava a perceber um leve desconforto no estudante, até porque não pretendiam que a conversa tomasse um rumo tão pessoal. De início comentava o trânsito e o inchaço das metrópoles. Assunto de domínio público. E agora o sujeito – um psicólogo! – a falar de suas sessões de análise e seus ‘foras’ e suas patéticas brigas de família?

Mas, por sorte (e Providência?), logo estão no complexo de viadutos da Lagoinha e eis o brilho das vidraças da Rodoviária e eis o prédio imponente da Seguradora na vanguarda das tropas de edifícios da metrópole que vai crescendo para cima, etc.

- Mas são coisas da gente, não? – dizia o estudante. Seus óculos agora devolviam um brilho solar – A gente estuda porque se identifica, não? Eu faço minha análise. Você se preocupa com o passado. – deu uma pausa, atento ao sinal da Praça Sete – Já parou para pensar porque o Vargas te interessa?

Não, HD nunca parara para pensar nisso. E não seria agora. Suas preocupações agora se resumem em “preciso subir e pegar o cheque”. Por isso resmunga um “é mesmo...”, assim que avista as carrancas indígenas, e agradece sincero ao estudante, do qual aceita um cartão, “Plínio D. Santiago – Comércio Digital”, em despedidas diante da igreja.
- É que trabalho com internet, enquanto não me formar. – e estendeu a mão – boa sorte com o seu curso. Até mais ver.

Então HD desceu, e nem pensava se era sério este “até mais ver” que soava tão pessoal como aquelas saudações em cartas francesas. Mas o sujeito era educado, via-se logo! Classe média estressada. Conta as a pagar e passado a sepultar. Tudo em círculos. Hoje, ele. Amanhã, eu. Se tudo é permanente sobe-e-desce, e a roda da fortuna, mas devia ser um.

- Qual andar, senhor?



Cheque em mãos, após suspirar em sua epopéia pelos tramites burocráticos e sorriso cordiais, HD precisa passar na agência bancária mais próxima e descontar o valor do cheque. Volta até a Praça Sete, onde sindicalistas erguem bandeiras e regurgitam discursos, e sobe a Rio de Janeiro. Camelôs nas calçadas entopem as artérias. Nada flui. Tropeços e encontrões. E se ousares a rua, serás imediatamente atropelado! Mas a agência está logo ali. Fácil de ser localizada pela presença de uma fila e pelas mãos estendidas dos mendigos.

- Uma ajuda pelamordedeus.

E que o Todo-Poderoso tenha mesmo alguma piedade. Pois o sistema econômico de trocas de mercadorias não tem. E todos sabem. Não precisa se refugiar nos porões, em leituras do Manifesto Comunista, nem berrar prometendo votos ao candidato proletário (ou que já foi proletário...), pois todos sabem. ( E então presenciar, em plena fila do metrô, um sujeito, visivelmente embriagado, a desafiar os transeuntes, com altos brados, “Vocês são uns covardes, todos vocês, uns covardes!”, e alguém o ironizou, “E aí, maluco!”, e o bêbado se voltou, “Até você aí, fulano! Até você” e foi sorte que disso não surgisse um tumulto ou coisa mais trágica...) e as filas de banco atraem os mendigos igual doce atrai abelhas famélicas, com suas faces de súplicas e feridas expostas, “compadeçam emnomededeus”, e ninguém se importa.

A mendiga ajeita um manta e lá se percebe a cabeça de uma criança. Uma menina, a julgar por um lacinho que parece rosado, não fosse o tecido tão desbotado. E as campanhas contra a miséria? Tudo propaganda? E o intelectual no poder? O nosso Sartre! Mas a mendiga nada sabe dessas políticas. Tem uma criancinha no colo e repete, “uma ajuda pelamordedeus”, e HD observa. É o que pode fazer. Talvez um dia escreva sobre isso num artigo para os jornais, ou em sua própria revista, como sonha em editar. Mas agora, nem ele tem dinheiro. Todo o dinheiro está ali dentro. E três seguranças, armados e perigosos, o separam do primeiro caixa. E mil câmeras têm os olhos voltados para ele, e mil imagens suas são armazenadas em fitas e mil imagens suas podem ser provas de um crime.

Nempensarnisso! Aceite as notas que a moça séria e de óculos agora estende, e agradeça. Cheque descontado, eis o que importa. Façamos a revolução amanhã, antes que os mendigos a façam, amanhã. “Ah, se eu morresse amanhã...”, sempre amanhã, e “assim caminha a humanidade”, vamos almoçar.
Almoço no refeitório da Faculdade de Direito, com nossos futuros advogados e juízes e desembargadores e corregedores e ministros e demais autoridades e apenas um comentário para a salada de alface e agrião. “Ah, e mamãe que torcia tanto para que eu fosse advogado!”, pensava HD, enquanto palitava os dentes.

A próxima missão é pagar a terceira prestação do computador. Logo, voltar até a Rio de Janeiro, a entrada mais estratégica do shopping. E nenhum conhecido no mar de faces da Augusto de Lima e nos restaurantes diante da Imprensa Oficial, os mesmos vultos engravatados.

- Podemos contar com o seu apoio ao Governador? Você sabe, aquela questão de Furnas...

- No que devemos evitar radicalismos...

- Mas é preciso mostrar o punho de Minas...

E os vultos engravatados erguiam os garfos como tridentes em indignação. Nisso uma mocinha folheia uma revista de moda diante da banca. Seu olhar salta da revista e atinge o de HD. No entanto, ele segue seu caminho.

Nas esquinas outros vultos, agora andrajosos, em trapos. Pensa na mendiga, aquela na porta do banco. Quem era ela? De onde viera? Do interior? De uma família em decadência? Qual seria a sua história? Perdera o rumo na vida? E a imagem se fazia em versos, que ele recordava das leituras de Baudelaire, o poeta andejo pelas penumbras de paris, a dedicar poema a uma pobre vendedora de caixas de fósforo, “uma mendiga ruiva”... mas, é de se pensar, quem é aquela que sofre?

Notas grandes na carteira. Deveras perigoso! Assaltos ameaçam nas penumbras da tarde. Após separar duas notas graúdas para pagar a prestação, na loja do segundo piso, HD entra no sanitário masculino. Por sorte (e Providência?) tinha ainda uma moedinha para a roleta. Forrou o vaso sanitário com papéis, para evitar o contato gélido da tampa, e ocupa-se com suas necessidades.

Depois teve o cuidado de tirar as demais notas graúdas e enfiar todas dentro das meias: duas notas em cada uma, cuidadosamente envoltas em papel. Sim, cautela mais do que necessária. Não pode correr o risco de ficar sem o seu único dinheirinho... que sofre as ameaças das vitrines! A última versão de um software, uma nova impressora a laser, uma famosa enciclopédia agora em compact disc, um manual de instrução para avançado editor de texto, novas promessas de programas para edição de fotografias, entre outros encantos. E HD nem se interessa tanto assim por informática! Imaginemos então o seu comportamento ao adentrar uma livraria! Por exemplo, aquela do terceiro piso. Contudo, o seu bom-senso o mantém afastado das sereias.

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LdeM
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