quarta-feira, 23 de junho de 2010

ainda o cap. 4 de Náuseas de Estudante

.
..
...

Os pés ligeiros correm pelo estrado de folhas ressequidas, entre as lâminas de sol, filtradas entre o plexo de ramos, onde, se haviam frutas brilhantes, ele não notara, pois a banheira, e a água borbulhante da banheira, a bebezinha imersa em gargalhadas, resfolegando meio as bolhas de sabão. Bolhas em miríades. Mas, e aquele triciclo?

Os pés esfolados. Há sangue. Borbolhas de água tinta rubra. Que chutam uma bola que se banha em sol e água. Entender que as pernas chutam a bola que se alegra no rio de espuma e o esguincho de gargalhadas do corpo brancorosado que agita uma névoa de bolhascristais.

- Ai, não deixa no olho...

A bebezinha vê e deseja as rodas que brilham e as bolhas que sobem e a espuma que lhe ameaça os olhos avermelhados.

- Ó mãe, tá coa mão num ôi !

A pitanga esmagada sob a mão que guia as bolhas da mão a face, a enfeitar os olhos que – não adianta mesmo – protestam contra o sol e o sabão.

Mas, olhe bem, um floco de poeira vem cair junto ao rio que se forma.

- Afonso vai mesmo reformar ali o muro. – e pano velho cai no varal entre as roseiras.
A tia-avó limpa a sofrida vassoura com um garfo entortado.

- Ó Hilda, esse xampu não irrita os olhos? A Débora toda assim cheia de espuma!

Mas há um estranho brilho na borda da banheira, onde um estranho pato amarelo de plástico brinca desafiando uma mão que – pobre ser! – impede o seu nadar calmo pelo lago de espuma, em bolhas que brilham, e sobem e estalam, e explodem:

- Quer que eu deixe as crianças aqui? O sol não tá forte não... mas óia ali o meninu lambuzando a varanda todinha coaquelas rodas tudo enlameada!

Mas não é que é mesmo? Um rastro medonho desliza pelo piso – ‘tava mesmo limpo? – a distribuir sua lama e espuma.

- Onde eu deixei o rodinho todo azul?

Seguir as bolhas e mergulhar na banheira, todo um brilho que machuca os olhos, no seu sabão e no seu reluzir de bolhas de cristal.

- Olha, eu não tenho um chapéu?

A luz cobre o agitar da água, onde a mão ousada seduz e agarra o pato em sua peregrinação:

- Bicudo! Bate nele!

Ali a beijar a espuma – ainda que o gosto te deixe arrepiado – a espuma que não seria somente espuma, mas a sua proteção, tal uma sombrinha aberta contra o sol da tarde de verão.





- Defina o conceito de “Hegemonia” segundo Gramsci.

A voz do professor desperta HD na modorra da manhã. Inevitável olhar para o lado. Um sorriso brilha na terceira carteira à direita. Um rosto moreno de promessas. Ela cruzou as pernas e responde ao interrogatório.

- “Pode-se dizer que para Gramsci, a Hegemonia é a cultura numa sociedade de classes

- Certo, dona Janaína. Mas isso está no livro da Chauí. Sejamos mais críticos, sim? Mais nós mesmos, o que acha? Em suas palavras, quero dizer.

- É... ora! Quando existem classes sociais, uma sempre vai mandar em outra!

- Mas sejamos mais amplos, mais sutis, também. Que isso de ‘hegemonia’ guarda uma sutileza!
- Ora, é fazer que uma classe seja dominada por outra. É mandar em...

- É mais sutil. Não domínio,. Mas condução consensual. Ultrapassa poder, e cai nas esferas culturais. É fazer os valores do dominador serem aceitos e internalizados pelos dominados.

Uma camisa azul-marinha se agita na segunda carteira à esquerda. É a voz de Luiz, que fura a manhã de ventilador pifado. – É como se as ovelhas aceitassem pensar como os lobos...

- Querendo ser os lobos! Os pobres querem ser ricos também, não é? – Agora era um vestido quase rubro que levantava um braço, uma caneta e a voz.

- Os ricos movem a máquina prometendo aos pobres que eles, os pobres, podem ser ricos também – algum dia! Desde que sigam as regras dos ricos...

- Ok, ok. Gosto das participações. Mas “hegemonia” é a capacidade de “direção”, de “condução das massas”, de “soberania de uma visão do mundo”, sendo política e culturalmente considerada.

- Ei, Naína! Estou vendo a cara do Pato Donald na sua mochila! – gritou alguém.






- Agora que Globalização é realidade...

Flávio dizia, apoiado no carro, cuidando em amarrar os cordões do tênis, onde HD lia uma marca estrangeira.

- Mas posso citar muitos que consideravam o nacionalismo como o responsável pelas guerras, ainda mais as do século 20. Nacionalistas de direita e nacionalistas de esquerda.

- Então, a globalização, ou a “mundialização”, como preferem os franceses, é uma boa? Era esperada?

- Uma boa? Depende para quem. Tem gente lucrando, com certeza. Mas é uma conseqüência provável desde as Grandes Navegações, que inauguram o comércio global em grande escala. Nada de caravanas, o lance são as caravelas, os navios abarrotados de mercadorias e especiarias! Não é o problema a mundialização. O nacionalismo, sim. O desejo das esquerdas foi sempre o internacionalismo. Mas alguns países estão mais preparados – mais protegidos - do que outros para o comércio em escala global. Assim, carregam tudo, e dão o preço.

- É mesmo! O próprio movimento anti-globalização só é possível porque existe a globalização!
Enquanto Flávio dá caça as espinhas se inclinando diante do retrovisor, HD se concentra nos rótulos coloridos e oscilantes exibidos nas mochilas das três mocinhas que passam. E como se ele não existissem!

- O que é preciso é uma Regulamentação nessa de “globalização”. Regras que levem a uma maior igualdade com melhor divisão e circulação de rendas. O problema não é a “mundialização”, mas o modo “salve-se quem puder pagar” como o processo está aí. A quem a globalização serve? Quem está lucrando? Não há drama em que a Terra se torne uma, como dizem, “Aldeia Global”, e que o seu tênis venha da Indochina, desde que os trabalhadores sejam respeitados, e as culturas regionais sejam preservadas.

- Concordo. Daí o povo precisar opinar, intervir na coisa toda! Por isso, sou a favor da democracia. Só nas democracias há verdadeiro diálogo.

- Flávio, esse seu idealismo me comove! Democracia? Qual democracia você quer? A formal, a representativa, a direta? E mais: a jurídica, a econômica, a social? A política, a substancial?





Inusitado foi o encontro com um tal Raul Miranda, nos corredores da Fafich. O tal Raul era amicíssimo do tal Castillo e era, certamente, aquele especialista em Era Vargas, que outrora despertara comentários. Especialista em Década de 30. O chamado “Período Entreguerras”, e todo aquele panorama mundial, etc.

- Então, o colega conhece o Castillo? Está organizando aí um comitê...

- É, o Darío me disse. Uma célula no D. A ....

-Não tive tempo de ir. Estou escrevendo um trabalho sobre a propaganda no Estado Novo. E também algo sobre o Integralismo.

- Interessante. Descobri, tempo atrás, que o Plínio Salgado também foi escritor...

- Propaganda! Atrair a massa através da literatura. Divulgar idéias reacionárias através, ou melhor, nas entrelinhas do estilo. Muito comum isso na França, na Espanha. Gente de direita e seus romances reacionários.

- Lembro do Graciliano preso, acusado de “subversão comunista”. Já leu “Memórias do Cárcere”?

- Não. Mas aí o Graciliano é outro caso: o escritor de esquerda. Mais outro turbilhão de 36. Mil novecentos e trinta e seis. Ano complicado. No mundo todo. Basta lembrar que estoura a Guerra Civil Espanhola.
E nisso o tal Raul se encostou na murada do corredor, apreciando lá de cima, o busto do pensador Emmanuel Kant, solitário meio aos arbustos do jardim, diante da Biblioteca. Dois rapazes passaram, compartilhando o cigarro. O tal Raul continuava.

- Sim, ano turbulento. Autoritarismo de direita, com os fascistas, os franquistas, os integralistas, os varguistas extremados, e os autoritários de esquerda, com os estalinistas, ensaiando para os “processos de Moscou”. Entre os extremistas, encontramos os socialistas moderados, os social-democratas, muita gente lamentando o fim da Luxemburgo, digo, a Rosa de Luxemburgo, pois seus livros eram então lidos, e comentados. A falência da social-democracia, a derrocada de Weimar, esses lances.

- Conturbado, o cenário. Acho que foi este ano que o Graciliano publicou o romance “Angústia”...

- Conturbado? Cê tá brincando! A Itália, sob o tacão de Mussolini, invadia a Etiópia, e Hitler, em plena ascensão, cuidava em perseguir adversários e ordenar a remilitarização da Renânia, fora a segunda visita do Marinetti, o tal futurista, fascista italiano, isso sim!, ao Brasil.

- Sei. O poeta já tinha aparecido por aqui antes. Acho que em 26. Os modernistas paulistas ficaram de boca aberta. Mas parece que você se esquece que em 36, o Sérgio Buarque de Holanda lançou seu “Raízes do Brasil”...

- Claro, claro. O grande historiador! Pena que o pessoal lembra mais é do filho, o Chico... mas é que me preocupa os movimentos subterrâneos dos Integralistas, e dos Comunistas. Um reação ao outro! Tudo o que Vargas precisava para instaurar o Estado novo, nosso fascismo tupiniquim.

- Ah, em 36, também, a primeira transmissão de TV! A BBC de Londres! Então já teríamos as imagens das bombas ao vivo...

- O colega tem boa memória, hein! Enciclopédico! Mas em História, meu caro, é preciso entender de processos. Não muito de info, dados, datas, eventos. Mas causas e conseqüências. Não isso de decorar nomes e títulos. Mas poder e forças sociais. Era uma época em que o sujeito político precisava se decidir, ou era a favor da mudança,ou apoiava a mesmice, os coronéis, os caudillos, os duces e os fuehers, sabe... e se o cara falasse demais ia sofrer alguma tortura, algum expurgo, ia parar na Sibéria... ou na selva amazônica...

- Ah, 36! Não é o “ano da morte de Ricardo Reis”?

- Você já leu o romance do Saramago?





Então, numa tarde sem data, HD encontrou Darío Sabine diante do busto de Kant. Daí se acomodar ao lado do amigo, a fim de comentar o livro que andava lendo.

- Se eu dependesse dos professores de literatura para gostar de ler, pode esquecer, cara!

- As aulas de literatura são a melhor forma de se odiar literatura.

- Mas o que você anda lendo?

- Um soco no estômago! “O Lobo da Estepe”, do Hesse.

- “Steppenwolf”? Sei. Já tive as minhas náuseas com o tal.

- De repente serve par alguma coisa.

- Lá vem você com essa de “ser útil”, de utilidade das coisas.

- O que você acha?

- De útil? Mas útil pra quem? O produto livro? Útil para o autor, para o editor? Para o leitor? O enredo do livro? Idem, idem. Sempre se é útil para alguma coisa. E de repente nem se é útil para si mesmo. Servimos para os propósitos de alguém...

- Teoria da conspiração...

- Que nada! Mas é igual aquela velha pergunta: o que você vai ser quando crescer? O que VOU ser? Como assim? Eu AGORA não sou nada? Só serei alguém quando for útil? Quando pagar todo o investimento que fizeram em mim?

- Parece que é. Quando alguém perguntar quem você é, e você disser que é “doutor”, ou “especialista em idiomas”, coisas assim.

- Logo, a minha identidade é dada pela minha posição social, profissional. A forma como sou útil a sociedade.

- Ou inútil. Se for um bandido, por exemplo.

- Mas você está se esquecendo da utilidade aí! Pois sem bandidos não haveria empregos para carcereiros e carrascos...

Agora, cabisbaixo, HD encarava a capa nebulosa do romance. Imaginava o protagonista diante do espelho, uma navalha na mão. Ou num teatro de horrores. Voltou-se para Darío e seu semblante sério.

- Você não parece gostar muito do sistema...

- Que sistema? O que é sistema? O sistema. Sistema social? Econômico? Político? Sistema normativo?

- Sei lá. O sistema, essa teia de aranha ao nosso redor. Os cordões que nos prendem iguais se fôssemos fantoches...

- O que é isso? Bakhunin está afetando o seu cérebro? Diagnóstico: excesso de leituras anarquistas. Olhe, Hector, o problema aqui não é que haja algum “sistema” e suas normas. Normas precisam existir. Limites precisam existir. Mas o problema é colocar a “norma” acima do próprio ser humano. Para quem servem as normas? Normas que ordenam um jogo onde alguns ganham, e os demais perdem. Na verdade, a norma devia servir à todos, não nós servimos a norma. Sim, pois ao contrário da norma servir ao nosso bem-estar, nós é que nos curvamos sob o peso da norma!

- A norma é uma espécie de Frankenstein...

- Lá vem você com literatura! Mas é quase isso. Perdemos controle sobre as tais “normas” e elas saem andando por aí, a provocarem desastres. Ou então passamos a adorá-la. Imagine! A norma, a nossa criação! E passamos a adorá-la como se ela fosse outorgada pelos deuses! O racional (sejamos kantianos!) seria se utilizar da norma, e não se curvar diante dela. A norma é um necessidade, mas nossa vontade é soberana.

E HD folheava e folheava as páginas do romance, sem ler coisa alguma, notando apenas pontos de tinta negra em folhas quase amareladas, cheias de manchas e digitais desbotadas. E deixava o seu amigo Darío desabafar, e ele bem que precisava. O tempo de Hector ainda chegaria. Só esperava não se tornar também um prisioneiro de sua própria idéia de liberdade.





Era para ser uma segunda-feira comum. Juntar os currículos e sair para a tour de agência em agência. Nos intervalos devorar um sanduíche ou algum pastel suspeito. Mas recebera um telefonema avisando-o da entrevista às dez horas, na agência E. RH .

HD acordou cedo, após sonhos confusos, onde aceitava o convite de um amigo (quem?) para ir a uma boate de striptease, e a paquera ficara sabendo do programa e acabou por deixá-lo. Então ele implora aos Céus uma outra chance, e promete a alma aos poderes dos quatro elementos, tudo isso para poder voltar no tempo e reparar o seu erótico erro. Ao fim, ele realmente retorna no tempo, mas retorna muito tempo antes. Talvez uns dois anos, pois a garota nem morava na rua onde ele a conhecera, e quando consegue reencontrá-la, numa parada de ônibus, ela está de cabelos longos (ela que exibe o charme dos cabelos curtos...), olhar distante, e obviamente não o reconhece (claro, convenhamos, ela ainda não o reconheceu!) que cai na real e entende que precisa é reconquistá-la, fazer tudo de novo, mas como?, como foi mesmo a primeira frase?, não se lembra, então, suando perplexidade, ele desperta.
E foi dormindo dentro do ônibus, que (novidade!) demorou a aparecer e demorou a chegar a Afonso Pena. Dez minutos atrasados (segundo os ponteiros da recepção) o que não alterou muita coisa, visto ficar esperando até quase onze horas para que se iniciasse a tal entrevista coletiva. E com umas cinqüenta pessoas na sala! Lotada! Nem haviam cadeiras, que a instrutora precisou sair a procura...

A instrutora explica pacientemente, bem ao estilo nova pedagogia de pré-primário, os detalhes sobre a empresa contratante, que atua nos emaranhados da telefonia, e sobre as facetas do ansiado cargo, gentilmente (um poço de simpatia...) solicitando aos candidatos que se apresentem. O que as mocinhas fazem de modo lento, enovelado, narcisista, entre entediante e irônico, enquanto os rapazes se apropriam de um formato mais objetivo e claro. Mas (convenhamos que o tempo passa...) logo, nos aparelhos digestivos, soam as doze badaladas e uma anunciada parada (uma pausa, digamos) para o almoço (da instrutora, esclarecemos), propiciando aos ansiosos um relaxamento nas cadeiras ou um passeio pelos corredores.

Com o segundo advento da instrutora, todos são conduzidos a outra sala, no andar de cima, onde recebem as folhas com as provas de redação, português e noções de informática, enquanto HD escolhe um lápis com ponta decente, diante de questões que se apresentam simples e pouco originais (“acho que já vi isso antes...”, pensa HD, cruzando os dedos) que não exigem mais do que meia hora de tormenta mental. Registra-se que já são uma e meia (13 e 31 – em dígitos verde-piscantes) e que os candidatos são liberados para um lanche (rumam até as lanchonetes estrategicamente localizadas...) e quem foi aprovado deve retornar às três horas.

Na saída, um cidadão, com um maço de folhas impressas, bloqueia os passos de HD rumo ao paraíso dos pastéis. Trata-se de um jovem vendendo listas com endereços de agências de emprego! “Todas as da capital e arredores!”, ele garante.


Após o paraíso dos pastéis, o jardim das delícias. Dos doces. Na praça, sob as sombras deslizantes. Termina uma sequência de versos (que iniciara ainda durante a palestra da instrutora) e tenta ignorar o cataclisma do trânsito e o estresse dos motoristas, anotando um verso, devorando um doce.

Voltando à agência de RH, ainda meditando, apenas para constatar que o tempo às vezes passa devagar. Descobre que faltam vinte minutos para às quinze horas. Instintivamente, ainda meditativo, procura um recanto sossegado, a fim de passar a limpo seus poemas.

- E aí, Hector, estudando um pouco?

Uma voz a procura de amizade. Ali, tranquilo, e finalmente reconhecido! O dono da voz é um dos rapazes da avaliação da manhã. HD, esforçando-se para lembrar o nome do cidadão, responde ao cumprimento. Enquanto o outro sobe lentamente as escadarias, os olhos de HD retornam aos parágrafos áridos de um texto sobre “O Capital”, do Marx, enquanto espera a hora, a temida hora da Dinâmica!

o
oo
ooo

LdeM

Nenhum comentário:

Postar um comentário