quarta-feira, 2 de junho de 2010

Capítulo 4 de Náuseas de Estudante


Capítulo 4


Mozart. Sinfonia número quarenta. Primeiro Movimento.

O vizinho até que tem bom gosto. De olhos fechados, a face ocultada na espuma, HD se deixa embalar pela melodia.

De súbito, imagina-se em Paris! Num sobrado parisiense a barbear-se! E a lembrar-se (sussurrando-os para si mesmo!) versos de “Ô Saisons, ô Chateaux”, de Rimbaud, “Que comprendre à ma parole? Il fait qu’elle fuie et vole! ”, assim, “Que esperar desse blá-blá-blá? Que possa por aí voar ! ”, sim, do poeta que foge da província para morar em Paris! Sua caminhada pelos campos,sob as tormentas, rumo ao sonho parisiense, regurgitando desprezo pela estupidez e marasmo da província.

Abre os olhos. A lâmina desliza. Um espectro solar se insinua pela janela, ousa propagar-se pelo quarto, a rastejar pelo chão, a escalar a mesa, a parede, s roupas nos cabides.

Fecha os olhos. Século Quatorze. Manhã fria em London. Na Torre de London. Um nobre é barbeado com água fria. O Lord Mortimer. Mar morto. Onde lera isso? O Lord Mortimer aprisionado pelo rei. Qual?

Mortimer lá no Século Quatorze. O que há? Ainda bem que tenho água quente. Apesar da manhã não ser tão fria. Mas por que pensar num sujeito morto há quase setecentos anos? E por que não penso ali no meu vizinho, ouvindo Mozart e s barbeando? Por que não penso em todos os pais de família que fazem a barba agora sob os telhados deste bairro?

Mas por que, para sentirmos o momento, precisamos relacioná-lo a outros momentos passados, a biografia de ancestrais? Até que pensemos o hoje como pretérito... Ah, aquela manhã quando eu me barbeava a ouvir uns acordes de Mozart que vazam da vizinhança... Ah, o peso do passado! Ora, fico contente ou não, quando descubro que naquela mesa de bar, onde me acomodo, acostumava abrigar, em suas noitadas, o ilustre escritor Fulano? E que vivera três gerações antes! Tiradentes, afinal, barbeava-se na prisão?

A navalha desliza através da espuma. Alguém bate à porta. Darío chegando tão cedo?

- Então esta é a sua contribuição para o grau de desordem do universo!

Darío Sabine adentra e surpreende HD de cuecas. O quarto algo abafado, com apenas uma janela semi-aberta, oculta por pesado cortinado.

- Por que isso? – apontando a penumbra do quarto, com cortinas fechadas.

- É que, às vezes, quero esquecer que a há um mundo além dessa janela.

E volta ao banho.

Enrolado na toalha, diante do amigo, HD esboça sorrisos, meio em rubores. Em ânsias de riso, mas a comentar, sem nexo, o que anda lendo, ao perceber à vista, sobre a cama, um volume aberto de “Antologia Poética” de Carlos Drummond de Andrade.

- Como vê, informação não falta. Estou sepultado nela. Eu jogaria tudo isso fora. Claro, só deixaria ali, no seu cantinho, o livro do Drummond.

Enxuga o cabelo, enquanto Sabine se acomoda na cama, revirando os jornais aos montes ao pé do cabide.

- Se precisar para pesquisa, pode buscar. Estou sufocado.

Sabine agradece. Abre o encarte sobre eventos culturais.

- Olhe, uma pasta de recortes sobre a História do Brasil, todos estes cadernos com poemas franceses. Naquele canto minha coleção do Caderno Mais! Desde o ano passado. Fique à vontade.

HD ocupa-se em escolher as roupas. Calça jeans desbotada, botinas reforçadas, camisa de flanela,óculos escuros. Ajeita o cabelo, enquanto se observa no espelho (ou o que sobrou deste), pensando em sua juventude, de cara lisa e raras espinhas. Ou efeitos da poluição no franzir da testa.

Pensa que o momento que vive agora, naquele quarto que o faz lembrar-se de Raskólnikov, ou Charles Bovary, vestindo-s enquanto Darío folheia as Revistas Cult sobre nova literatura brasileira, esse momento lê lembrará daqui a dez, vinte anos, com tons nostálgicos, “ah, meus vinte anos!”, e o momento será histórico, a virada do milênio, o milenarismo profético! E as próximas gerações, em outras épocas nebulosas tecerão, num mosaico nostálgico, como toda geração idealiza anteriores e projeta posteriores, “ah, se eu tivesse vivido o maio de 68!”, “ah! Se eu vivesse na belle époque!”, ou “Imagine, querida, os bailes da Corte! Dançar sob os olhares do Rei-Sol!

Mas Sabine indaga sobre um certo conto, e HD emerge do túnel do tempo. Em que livro do autor tal conto habitaria? Mário de Andrade publicou, houve quem dissesse. Ou seria Kafka? Em pilhas e pilhas de livros, volumes, encadernados e apostilados, nada encontram que seja uma pista. Mais fácil é acessar Internet. – Isso aqui é, de fato, o Caos Primordial!

Um conto que fala da morte do pai. HD tece comentários sobre Freud, aquele lance de “complexo de Édipo”, onde o filho deseja matar o pai, para possuir a mãe, e Sabine lembra trechos de Sófocles, em “Édipo-Rei”, e de Dostoievski, em “Irmãos Karamázov”, onde Ivan confessa que todo filho deseja matar o pai, e HD relembra que intitula-se justamente “Dostoiévski e o Parricídio”, a referida obra de Freud.

-Sim, a mais risível das comédias!

- Não entendi. Qual? – Sabine, desatento ao argumento.

- O espetáculo encenado pela espécie humana. O mais cômico, por isso tão trágico. Somente fala-nos furar nossos olhos...

E abandonam o útero do quarto.




Parece que as leituras e releituras foram as principais ocupações de HD no início do último ano do milênio.

Na tarde de 23 de fevereiro, HD entrou na Biblioteca Municipal e solicitou, às quinze horas e treze, uma “Antologia do Conto Brasileiro”, com pérolas de Machado de Assis, Lima Barreto, Mário de Andrade, Fernando Sabino, Clarice Lispector, Murilo Rubião, Rubem Braga, Luiz Vilela, entre outros. Antologia que ocupou sua atenção até o fechamento da Biblioteca às dezoito e trinta.

Na manhã de 03 de março, HD está novamente na referida Biblioteca ocupando-se da leitura empolgada de contos de Machado de Assis e crônicas de Affonso Romano de Sant’Anna, segundo consta no índice de consulta empréstimos. Leitura que o hipnotizou até a hora do almoço. Deve ter almoçado por perto, pois há uma nova solicitação às 13 horas e cinqüenta e cinco, de um “Tópicos de Literatura Brasileira”.

Um mês depois, em primeiro de abril, às quinze e vinte, uma solicitação referente a uma coletânea de estudos e ensaios sobre o tema Tolerância, a contar textos de Voltaire, Rousseau, Merleau-Ponty, Sartre, Camus, Simone de Beauvoir, Deleuze, Foucault, Derrida, entre outros.

Em cinco de abril, novamente está ali o leitor fiel. Consultas sobre Literatura Francesa, até quase dezessete horas, hora em que solicitou alguma apostila sobre o Mercosul. Que ligação há entre as duas temáticas, não foi possível restabelecer.

Em vinte e três de abril, HD consultou guias turísticos sobre cidades européias. Principalmente três: Madrid, Lisboa e Paris. Com qual objetivo não se sabe. Levou de empréstimo um romance de José Saramago (“A Jangada de Pedra”) às dezesseis e quarenta e três.

Em dezessete de maio, novamente à tarde, HD regressa à Biblioteca Municipal para consultar “A História da Segunda Guerra Mundial”. Não levou empréstimos.

Um mês depois, quinze de junho, na mesma Biblioteca, HD está dedicado à leitura de “Apocalípticos e Integrados”, de pensador italiano Umberto Eco, além de “Era dos Extremos”, do historiador inglês Eric Hobsbawn, e finalmente levando como empréstimo m título do literato argentino Jorge Luis Borges, “História Universal da Infâmia”.

Aquele pessoal de vestes brancas, junto aos self-services, não havia saído de um hospício ou de um congresso espiritualista. Tão-somente o pessoal da Nutrição, a coletar amostras do cardápio par posterior análise. E o pessoal de calça branca eram os egressos da Veterinária, e discutiam as vacinas a serem aplicadas nos rebanhos na prevenção da febre aftosa.

Ao passar adiante, HD acrescentou a salada e foi acomodar-se nas mesas mais centrais, onde imergia em tudo. Ruídos difusos, estridências de talheres, fragmentos de conversas, ecos de opiniões, risinhos após anedotas pesadas, filtradas meio às deglutições e suspiros.

Vindo da direita, um par de vozes femininas, em tom mais sério:

- ...cada dia melhor.

- Cada dia como se fosse o melhor?

- Algo assim. Dizem que fomos feitos a imagem de Deus. Acho que a gente devia melhorar essa imagem a cada dia. Ser melhor hoje do que fui ontem. – Uma pausa. Um talher desce ao prato. – Uma missão, aqui.

- Missão? Você acha? Não diria tanto...

Um silêncio. Alguém mastiga. Outro alguém corta um bife.

- Ah, Cris, penso assim. É o um jeito. Tem umas coisas ... não se explicam.

- Certas pessoas, logo que conhecemos – são de uma simpatia! Outras, ao primeiro contato, já causam mal-estar! Por que eu gostei logo do Nando, e não suporto o André?

- Não tem explicação? É coisa de Empatia. Ou afinidades.

- Ah, querida. Uma intuições que eu sinto!

Novo silêncio. A outra, num tom cúmplice. – não é só você. Eu já tive sonhos os mais estranhos...

A outra interrompia: - Olha, nem te conto! Eu sonhei com o Nando antes de conhecer! Um homem moreno, alto, e um olhar firme.

- O quê? Acontece que o Nando se encaixou nos seus sonhos, nas imagens idealizadas...

- Quê isso, Cris? Eu senti um troço forte quando vi o Nando. Era ele mesmo! Aquele olhar que...

Ao longo do corredor, dois vultos. Jovens de ares tranqüilos. Acabam de se sentar entre HD e as estudantes.

- É ter confiança. Está na Bíblia. – soa a voz calma e pausada.
- Hoje é fácil. Está na mídia.

- Mas, você se esquece dos tantos que morreram, os mártires. Sangue para diversão nos circos romanos.

- Não nego. Pelo contrário. – O outro flutua, entre um concordar e um convencer – É justamente o que digo: eram fiéis. E até ao sacrifício. Mas hoje qualquer um veste a camisa. Slogans e versículos bíblicos. Como se fosse uma moda.

- Mas a Bíblia diz que “pelos seus frutos os conhecereis”.

HD, enquanto partia o bife, deslizou, discretamente, o olhar para o vizinho e distinguiu em sua camisa branca,o logotipo da Aliança Bíblica. E o jovem, com aquele brilho no olhar, a empunhar o garfo tal uma espada:

- É preciso evangelizar! Pregar até os confins do mundo! Desbravar os rincões da África...

- A medida da geratriz somada a ...

Um casal acaba de atravessar o vão junto a mesa, numa ostentação de camisetas com o logo das Exatas. Numa floreada caligrafia. Matemáticos, mas sorridentes. Aos a observação da jovem, o companheiro sorriu conivente. Certamente também errara a mesma questão na prova.

No agitar de suas lembranças, HD reencontra esta moça da Matemática, com seus longos cabelos negros, nas primeiras semanas, ao vislumbrar o seu vulto nas alamedas, na parada de ônibus ou na arena da praça central. E ele permitia-se imaginar as miríades de equações, cifras e gráficos a voejarem no antro daquela cabeça. E se conversasse com a garota? Sua fala regurgitaria algarismos? Ela iniciaria um elogio ao Pitágoras? Não, ele não saberia.

- A confiança de Marx é a superação da luta de classes com a revolução da classe operária...

Com as camisetas das Ciências Sociais, dois militantes adentram o refeitório, logo abordados por um colega, com longa saia neo-hippie e sandálias, a carregar um fardo de panfletos. Confabulam e entram na fila da carne e das tortas naturebas.

Novas lembranças. Não fora na semana passada que pudera antevê-los diante da TV, na salinha do D. A . das Sociais? E nada dispostos ao diálogo?...

....


LdeM

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