quarta-feira, 9 de junho de 2010

Náuseas de Estudante (cap 4)

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Mal chegou para jantar e logo avisa que vai sair. A senhoria resmunga e HD passa à comida. Salada, empanado de frango. Pé-de-moleque é a sobremesa.

Abotoa a blusa de flanela e encara a brisa noturna. Clima agradável após a chuva leve.
Desce a rua da praça, sob as últimas gotas. E nem percebe os vultos sob os postes, juntos aos muros mais escuros, a fugirem da luz de mercúrio. Pernas à mostra, botas de cano alto, sorrisos lascivos. Quando se deu conta, já estava no território delas. “Uh, vem cá, gostoso!”, “Olhe que cabelo lindo que ele tem!”

Desvia sem mudar o ritmo, a observar, a evitar mal-entendidos. Insinuações de encher o ego do macho, jovem no cio. Passou adiante. Gemidos e risinhos. Eufóricas.

Observa-se. Calça jeans surrada, blusa preta, cabelos soltos. Mas não é narcisista. O problema é o desconforto. O desejo há, mal algo em mim envenena-me com culpa. As putas e os sorrisos de batom. O que me impede de ter prazer? Observa os vultos. Qual explicação? Sensualidade incontida? É caso de desestruturação econômica, desemprego? Alugar o corpo quando não se pode vender a mão-de-obra?

Vultos postiços. Para os travestis é ainda mais difícil. Toda uma hostilidade social. Só se revelam nas sombras da noite. A noite que arranca os véus. Homens de carros esportivos manobram sob as árvores, tecem propostas, escolhem, aceleram, desaparecem, tudo com discrição, status e um nome a zelar. Filhos de figurões. Fidalgos.

Operários seguem a pé, passam as mãos rugosas e calejadas na pele ainda sedosa das mulheres, rudes com hálito de bebida, luzentes de suor, cheirando a fumo vulgar. Elas negociam, enrolam notas entre os dedos esmaltados, manchados de nicotina ou cicatrizes de queimaduras.

Os operários evitam os gays. Se pudessem partiriam para a agressão. E os gays ficam num misto de medo e desejo, enquanto as mulheres são negociadas. Como fazer, se desejam os operários, machos potentes, mas que não ocultam o desprezo?

O que me impede de ter prazer com um homem, um daqueles travestis? Educação repressora? Os gregos não julgavam normal o que hoje é abominação? Porém toda uma tradição patriarcal, onde o macho fertiliza a fêmea submissa, a perpetuar o sangue e o nome do patriarca, não concede lugar ao invertido.

Imagine aqueles haréns com dezenas de jovens submissas! E só de imaginar vem toda uma auto-censura! Reprimir a sexualidade... então surgiu o Sr. Freud e escandaliza meio mundo com a revelação de desejos ocultos, retorno do recalcado, sexualidade pervertida... já dissera Sade, o marquês...

E sinalizou ao ônibus. As imagens das mulheres na penumbra se esfumaçam, mas, logo acomoda-se, percebe as curvas d suas passageiras. Uma de pé, logo a frente, acompanhada por um garotão, e outra sentada, nos bancos paralelos, vestidinho curto, pernas magníficas. Seu hálito recende a sexo, possuído de um torpor lânguido. A imaginação aumenta as formas, completa as linhas que o vestido oculta, e redesenha, em dimensões voluptuosas, ao acrescentar pequenos retoques. Apaga desproporções, maquila traços da face, retoca aquele batom. Em suma, passados alguns instantes, ele julgava diante de si as duas fêmeas perfeitas!
E um desassossego, um aperto na calça, dedos trêmulos, um suplício. E ainda a modelo peituda a sorrir no outdoor, e ainda a propaganda de meia-calça, e ainda a letra caliente daquele samba de batida sensual. Olhos fechados: a imaginação em delírios. Olhos abertos: as formas desejadas ao alcance das mãos.

O casal a se esfregar. O garotão, um tanto afobado, insiste em alisar o vestido da mulher, enquanto ela protesta, num controle intimidado, a afastar as mãos atrevidas. Em cada gesto cúmplice e moralista, e se entrega e se recusa, seduzindo e castrando.

Aqueles embalos sensuais o afligem, e se fecha os olhos uma figura sensual chega esvoaçante com as formas e o sorriso de um desejo conhecido. Naína ofertando os lábios fartos. Ouve os risinhos abafados e eis o voyeurismo aberto.

Aí a luz se paga por instantes, e quando refazem a luz o Don Juan grita: “Ah, apaga a luz, pô!” a vulgaridade é desculpada pela névoa ébria?

Amassos, luz que pisca, buzinas, vizinho querendo ler, o outro quer que apaguem a luz, todos querem algo, todos querem transar. Como agradar todo mundo?

E eis que entra um cidadão, a arrastar consigo uma garotinha, despenteada, coberta com farrapos. E ele não está em melhor estado. Inicia uma ladainha, quiçá decorada, de que não deseja fazer nada de ‘errado’, diz ele, que desculpem, mas deseja só um minuto de atenção, e lamenta sua situação, recita sua desgraça, ele pai de família desempregado, nascido no interior, aquela ali é a caçula de suas três filhas, e a mulher mal tem forças para lavar roupa, e que ele não consegue emprego, desculpe incomodá-los, aqui pedindo auxílio, qualquer contribuição, a caridade ali dos ‘corações cristão’, qualquer centavo, vale-transporte, mesmo uma palavra amiga, se não podem ajudar, ao menos não façam ‘cara-feia’, ou ar de compaixão, ele um homem trabalhador reduzido a um pedinte, aponto de perder a família, a ponto de ‘virar mesmo um marginal’, hoje está pedindo, amanhã – que Deus não permita – pode estar tomando, lesando o próximo, ele homem trabalhador...

Nesse drama, HD não sabia se fingia dormir, se prestava atenção à chuva lá fora, num retorno tímido, ou ao casal inquieto, ou se encarava o homem, ser desumanizado, reduzido a pedinte, imagem do fracasso que tomos tememos, a enfrentar a hostilidade muda de homens e mulheres urbanos (“a vida na cidade não é fácil!”) confinados no coletivo lotado, aos solavancos, no retorno do trabalho, exaustos, reféns do salário de fome, mal-humorados, dentro de suas conchas. E o que aparece? Diante deles uma prova tocável (e mal-cheirosa) do tão falado “êxodo rural”, e viravam o rosto, ignoravam.

A garotinha olhando, à espera. O pai, agora calado, nem sabe o que fazer. E se ele começasse a se cortar? E se furasse os próprios olhos? Qual seria a fala adequada? Onde está o roteiro? (Se há, indaga-se, quem ousou escrever um enredo tão grotesco?)

A garotinha continua olhando. HD precisa descobrir rapidamente qual o papel a ele reservado. O de implacável juiz dentro de sua concha? Ou a ignorar, fugir, fechar os olhos? Mas ela não desvia o olhar, espera algo de mim, até uma ofensa se não posso oferecer elogios, mas que não aceita ser ignorada. O que me encara através desses olhos infantis, lavados por lágrimas, sujos de poeira e maculados de medo? O que será deste pequeno ser, se sobreviver? Será a puta de dez reais de amanhã?

Mas tudo se assemelha a um pesadelo, com o agravante de ser real. Cabisbaixos, os vultos figurativos da Miséria, se afastam. Precisam aceitar que não existem. E o coletivo pára, e os vultos se precipitam na noite. Meio ao estremecimento da arrancada, HD ainda vê, lá fora, sob a chuva que aumenta, pai e filha, ambos desalojados, desamparados, a correrem rumo a uma marquise.

E quando se percebe livre de pai e filha (personificações da Miséria) seu olhar gira à procura das belas formas (personificações da Luxúria). É assim que somos: mal nos livramos da Miséria corremos à Luxúria!

No vidro explodem as gotas, a distorcerem e a confundirem faróis e néons dos outdoors. Eis a viagem: um tédio entre a partida e a chegada. Eu sempre ignoro o que se passa entre o ponto do qual vim e o lugar para onde vou, e consciente dessa negação (ainda que insistamos ser precioso cada momento!) onde estou me perdendo a cada instante nesse transportar de A para B, e que já não sei se é a somatória de barriga cheia e sacolejar que me causa essa náusea.

Reclinado, com um tremular na nuca, vai a embaralhar idéias. Sexo. Sexo gerando miséria. Surge a imagem da garotinha e seu olhar que implora. O homem que declara sua honestidade na pobreza, não tem onde reclinar a cabeça, mas com três filhas! Qual o futuro reservado para tais sombras humanas? Servas, escravas, putas! Marginais, presidiárias. Sexo irresponsável, excesso populacional, crime de lesa-pátria?

Não, não, e se o agora pedinte antes fosse um empregado de confiança, ou mesmo um médio produtor, contando com o sucesso de deixando a mulher procriar, e de súbito as três pancadinhas da miséria em sua porta...

É inútil, não há como relaxar. Abre os olhos a tempo de perceber que o casal no cio está descendo meio a cortina de gotas, e que um vendedor de colchas se acomoda no espaço reservado aos deficientes físicos, a desempenar as costas, contorcendo a face num esgar, como a tirar do lombo todo o fardo do mundo.

Mas não pode ficar a contemplar o seu Atlas, pois percebe ali o centro da metrópole, a promessa de outras luxúrias, mescladas a outras misérias.

O coletivo pára. A chuva ainda ameaça lá fora. Abre o guarda-chuva e mergulha na noite alagada.




CDs se sucediam no aparelho. Livros se acumulavam no carpete.

Então, Darío Sabine apareceu e eis o ânimo para cair na noite.

Seguem a ferrovia até o Santa Efigênia, onde adentram um bar na avenida do Contorno. No piso inferior, jovens, de roupas escuras e faces pálidas, jogam sinuca, sem empolgação. Conversam sobre os mortos-vivos.

No ambiente superior, outros casais se beijam ao som de Queen, “Bohemian Rhapsody”, “Is this real life / Is this just fantasy”, onde HD paga uma rodada. E saem com uma garrafa de vinho. “Mama, life had just begun...”

De súbito, se percebem no Edifício Archângelo Maletta. Lá encontram um ator, velha amizade de Darío, de antes da tour pelo Nordeste. O ator a beber sozinho.

O ator convida os amigos, um segundo depois, a compartilharem a bebida e (quem sabe?) a noite. Com certa condescendência, com o ar de “concederei alguma atenção”. Mas logo surgem questões existenciais, e “vou pegar pesado com o cara”, pensa HD, quando comentam o romance “A Hora da Estrela”, de Clarice Lispector, “sim, quem espera sempre alcança. É?”

- Uma moral baseada na esperança?

O ator: - Você é existencialista?

HD revela suas leituras nauseantes. Clarice, Woolf, Joyce, Sartre.

O ator: - “Nascemos entre urina e fezes”. Não lê por afinidade, imagino.

- Leio para criticar.

E saem os três vultos pelas ruas, em diálogos sem nexos, arrotando contra a lua, mijando nas sombras da Avenida Augusto de Lima, no ar úmido da noite.

O ator se afasta na esquina do Mercado Central. Seu vulto se perde além da praça Raul Soares. E os amigos seguem nas entranhas da avenida Paraná. HD ouve um som pesado caindo de uma casa noturna, e pretende entrar. Um som áspero, com melodia ainda. Um estilo grunge, indie rock, quando brilha um reconhecimento nos olhos de Darío. Contudo, Darío chamou HD à razão, pois é óbvio que o show está nos últimos acordes e o vocalista sem voz.

Na parada de ônibus (se houver ônibus!) os amigos esperam, alçando olhares até as janelas iluminadas nos edifícios. Num dos apartamentos, janela aberta no quinto andar, um vulto humano. Um homem debruçado, a observar o sono da metrópole, fumando um cigarro.


Única janela em luz no caule de concreto.


HD esboça um poema, num rabiscar frenético no verso de um folheto.

Um suspiro rasga a noite,
dispersa a fumaça do cigarro,
torna audível o silêncio.

Olhar solto na noite adormecida,
humano – presa fácil do indagar,
“em verdade estamos sós?”




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