quarta-feira, 16 de junho de 2010

continua o cap. 4 (Náuseas de Estudante)

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Atravessando a Praça da Liberdade, ao sair da Biblioteca Estadual, HD alcança a avenida João Pinheiro, onde pretende esperar o ônibus para a Lagoinha. Mas o estranho é que o ponto está vazio.

Minutos para as dezenove. Um vulto apoiado no muro. Iluminado pela luz do poste. Um rapaz, olhar firme, um volume nas costas, certamente uma guitarra ou violão.

Outro cidadão notifica a ambos a tal greve. O jovem pergunta as horas. O cidadão informa. O jovem sugere o metrô. Seguem pelas ruas ruidosas, tomadas por veículos estressados. É a falta de coletivos. Em algumas esquinas, grupos de funcionários embarcam em kombis ilegais.

- Um ruído. A cidade é um imenso ruído.

O jovem músico concorda. HD complementa. – Ainda mais para você, que é músico, deve ser o pesadelo.

Uma maré de carros e buzinas desce a avenida, abafando as vozes. O músico comenta o ensaio para um show de fim-de-semana. Um rock’n’roll mais pesado e mais soturno. E reclama da quantidade de colagens e estilos de interesse comercial.

- Pouca arte, muito truque. – HD concorda. – Uma avalanche de músicas estrangeiras. O que você entende? É como ir à igreja ouvir a missa em latim!

- Na música, o que eu gosto é o solo de guitarra, ou a voz do cantor. A melodia, o ritmo.

- Daí tornar-se entretenimento. A música enquanto diversão. Distração. “Rock’n’roll a noite toda e festa todo dia”. Rebeldia enlatada. Outro consumo.

A escola de Direito. O músico lembra de uma calourda. Pergunta se seu interlocutor é estudante.

- Estudo História. – diz um lacônico HD.

Para o músico, tal matéria sempre fora motivo de torturas. Nomes, fatos e datas. Lutero, Reforma, Colombo, mil quatrocentos e noventa e dois, Descoberta da América. Mil e quinhentos, Álvares Cabral, acaso ou intencional? Dom Pedro Primeiro, Independência ou morte?

- Eu não suportava. E estudar isso dá dinheiro?

HD tentava ser diplomático: - Se dá dinheiro? Mas, diz-aí, você ganha alguma grana com esta guitarra? (e batia no estojo negro, sem saber que não se tratava de uma guitar, mas de um electric bass.)

- Nada. Trabalho com digitação.

- Trabalha por grana, não? Ou faz por que gosta?

- Não gosto. Mas é o emprego que arrumei. Queria ir pra faculdade. Estudar mais.

- Você é então um refém do mercado. Não faz o que gosta, mas o que é preciso. Se eu fosse olhar essas de “dá grana?”, não estudaria História.

- Ah, estuda porque gosta.

HD era mesmo paciente: - Não. Não é porque gosto, e sim porque é preciso!

- É, mas professor vive f...

- É triste. Mas é preciso esquecer as gratificações e pensar mais na necessidade de passar a limpo a História deste país.

Um repórter desceu do carro, diante do jornal Estado de Minas, e não pôde deixar de notar os dois vultos. Entrou na Redação, não sem antes ter o cuidado de jogar o cigarro na sarjeta. O músico pensava alto: - Pouca gente faz o que gosta...

- E fazem obrigadas. – HD empolgado. – E a questão nem é fazer porque gosta, nem por recompensas. Mas a necessidade. A necessidade de sobreviver versus a necessidade de serem esclarecidas.

HD não saberia dizer se o outro entendia. – Existem certos ‘engodos’, entende? Pregam as oportunidades iguais para todos, não é? Mas, observe, pare pra pensar, quantos carros, e quanta gente nas ruas sem transporte coletivo. É impossível que todos tenham um carro! Não apenas por diferença de renda, mas também por deficiência das vias públicas! Nem rodízio resolveria! Assim, somente alguns, os privilegiados, e os que prestam serviços aos privilegiados, podem manter tal conforto.

- É, meu pai vendeu o carrão, que quase chegava a ser meu...

- Então, imagine você precisar voltar pra casa, a pé, por falta de um serviço essencial como é o caso do transporte coletivo!
Desciam a rua da Bahia, onde, diante do mercado das flores, um cego pedia informações, e seguiram, com um olhar, a loira, de vestido preto, a atravessar o viaduto Santa Teresa.

Moleques ofereciam balas de hortelã no sinal fechado.

- O importante é observar. Aprender a observar e aprender a denunciar. Aprender sempre, da forma que puder. Nunca um momento sempre aprender algo.

- Tipo assim: para não desperdiçar o momento então aproveito para aprender?

- Isso-aí! E nada de viver como um sonâmbulo. Cochilando nos coletivos, hipnotizado pela TV, entorpecido nas filas dos guichês !

A Praça da Estação apresenta o espetáculo do início de noitada, com seus bares convidativos, moças fáceis, figuras com poses de malandro, ao estilo “malandro oficial”.

- Gente demais. O problema da metrópole: transbordando de gente, e rompendo o cercado original. Deformando todo o belo desenho. Cuidadosamente planejada pelo ilustre Aarão Reis...

- Pô, cara, mas que papo-cabeça, de historiador! Você já pensou em ser guia turístico?

Sorria enquanto seguiam pela avenida Santos Dumont. Nas asas da noite. Envolto pelo perfume das damas, envenenado pela luxúria. Ou asfixiado pela névoa de tóxicos. As buzinas envergonhavam o cantar sedutor das sereias, aquelas de pernas nuas, à espera de clientes.

- O que você pode aprender aqui?

O músico olhava ao redor, mas padecia de outras preocupações.

- Pô, irmão, tô precisando de um ‘intera’, pra pagar o metrô.

HD tirou uma nota, a pensar, “Ele deve pensar que a companhia dele já é paga o suficiente.”

Nas despedidas, o jovem sorriu um “Adelfo”. E mergulhou na torrente de faces cansadas.



Não apenas mendigos e andarilhos se encontravam sob o viaduto Santa Teresa naquele fim de tarde, quando HD subia da Contorno para a rua da Bahia. Lento entardecer de quinta-feira, quando sua mente se voltava para as pilhas de livros nos sebos do Edifício Archângelo Maletta, onde pretendia encontrar um dicionário Español-Português para providenciar urgentes traduções de Lorca e Neruda.

Algo mais havia. Sim, uma voz.
- Pois as profecias estão se cumprindo! Haverá fome, diz a Palavra! E estamos passando fome! Nunca houve tanta produção, mas muitos rastejam em troca de um prato de comida! Muitos vivem de migalhas que caem das mesas dos banquetes! Meus queridos, a Palavra do Senhor não mente jamais!

E em torno da voz da trombeta (que ecoava de um microfone) reuniam-se outros homens de paletó e gravata. Um afinava um violão, pronto para uma intervenção sonora, com um hino de louvor, pois junto a ele uma mulher, jovem e de vestido longo, ajuntava as mãos em gesto de oração e fechava os olhos. A voz ondulava.

- E estão cegos! Todos cegos! Negam a Palavra e destroem o planeta! Com agrotóxicos, com poluentes, com químicas, horrendas, meus queridos! Esquecem do Todo-Poderoso que veio se sacrificar por todos nós, para que tivéssemos uma vida íntegra, digna! Então, a Mão do Senhor se abaterá sobre esses infiéis...

E aos pés do segundo engravatado, junto a escada, um mendigo enfiava uma coxa de galinha na boca quase sem dentes. Em suas mãos brilhava o invólucro metálico de um marmitex. Sim, entregue certamente pelo missionário. Ah, que providencial! Daí a atenção mesmerizada dos mendigos!

- Eis que matam a fome espiritual, e também a fome bem carnal, dos míseros ouvintes!

E ouvindo o surdo balbucio, HD seguiu além do banquete dos mendigos.





HD encontrou o ator mais uma vez, mas não se lembrava do nome dele.

O caso é que Darío Sabine o convidara para assistir aquele filme numa noite de Belgrado em plena guerra balcânica, em sessão disputada no Palácio das Artes.

Mas, antes, passaram numa lanchonete. Cream-cracker e vitamina. E numa vernissage. Nuances da Arte pós-moderna.

- O que distingue uma obra de arte de uma bizarrice qualquer?

Indagava-se HD, em voz alta, ao lado de Darío Sabine, seguindo ao longo das paredes, ou estático, diante de um fenômeno. Obra de arte? Um pano retangular preto, descendo pela parede. Na parte superior, um recorte de revista. Lábios rubros em amplo sorriso (de alguma propaganda de creme dental, ou batom) em contraste com (o que vemos?) um lírio branco, alvíssimo, fixado na parte inferior. Recém-colhido! (e nosso artista todo dia a substituir a flor?!)

Ficaram ali parados um bom tempo. Encaravam o prodígio. Até indiferentes aos risinhos sarcásticos de uma garota, agarrada ao namorado, diante dos quadros surrealistas. (Ah, como ela devia se sentir superior!)
Darío Sabine julgava que a arte (ou não) aquelas excentricidades eram apenas isso: o súbito espantar-se: fendas no cotidiano de hábitos. Pois discordar de uma estética é ainda considerá-la, desviar o olhar para ela! Outro critério: é arte quando nos atrai, não seguimos adiante, com indiferença. Ou seja, quando somos arrancados de nossa vã segurança habitual. “A prisão do hábito!”

Não convencido, HD julgava que toda aquela futilidade servia para distrair,para entreter os desocupados, nada denunciando da dura realidade da exploração no sistema burguês.

Concordando que a Arte distraí, entretém, Darío que, por isso, por trazer beleza à rudeza da vida, a obra artística pode nos redimir, evitar o ato suicida devido ao desgosto.

Não que HD discorde, mas ressalta que a arte deve servir para despertar os oprimidos, libertá-los da alienação, no sentido de que alcancem consciência da opressão.

Mas Darío pensa que Arte procura a Beleza não só por alívio, para um despertar social, mas para conferir algum Sentido, um Significado ao existir no mundo.

BARRIL DE PÓLVORA. O filme do diretor sérvio.

- Deixe-me ver. “Vidas que se cruzam nas ruas de Belgrado... Como é que é? Bure Baruta? Barril de Pólvora. Produção iugoslava-francesa, de 1998, do diretor Goran Paskaljevic...” Sei...

Sim, personagens que se encontram em Belgrado, numa noite de turbulências, num clima de conflito, no chamado “barril de pólvora”, onde teve origem a Grande Guerra, depois Primeira Guerra Mundial, lá onde, na Segunda Grande Guerra, duas décadas depois, o general Tito resistiu aos alemães nazistas, lá onde os conflitos étnicos e religiosos abalaram a esperada paz do pós-Guerra Fria.

Darío comenta o quanto a crueldade é desumana. HD não pode deixar de esclarecer que a crueldade é inerente ao ser humano, logo é humana, demasiado humana.

- Não entendo esta concepção de “humano” enquanto “solidário e justo”. Seria um humanismo positivista, uma vez que o ser humano é contraditório. “A mão que afaga é a mesma que apedreja”, assim não disse o Augusto dos Anjos?

Mas Darío Sabine já morria de tédio e arrastou seu amigo HD para um cerveja ali no Edifício Arcângelo Maletta.



O ator respondia pelo topônimo de “Lisboa”. Não que fosse proveniente de tal capital européia, mas por chamar-se Hélvio Antônio Lisboa. Estendeu gentilmente o convite a Dario e seu amigo HD, para um lugar acolhedor ao lado de uma atriz um tanto falante. HD acomodou-se ao lado da atriz, um tanto obesa, e Darío à direita de HD. Diante do olhar de HD e todo desgosto com a feiúra das mulheres à mesa, Darío sussurrou, “Está pensando que todas as atrizes são Luanas Piovannis?”. Havia, além deles, um casal, daqueles in love, que nada sabiam da conversa, ocupados em beijos e abraços.

Lisboa, à esquerda da atriz (a um tanto obesa) dava continuidade ao assunto “Estética”, ou melhor, “Anti-Estética”. Até porque o Lisboa estava em trajes um tanto punk aquela noite. Cinturão cravado de tachas, camiseta sem mangas e com palavras de ordem em inglês, denin & leather e botas surradas. Mas contraste maior era entre seu visual e sua habitual cortesia.

- Senso estético? O que é isso? O que é belo para uns, não é para outros!

E comentava com HD uma recente audição de Debussy, “Après Midi d’un Faune”, e o genial poema de Mallarmé. Ah, que pena não saber francês!

E a atriz (a um tanto obesa) começava a descrever bizarrices e enumerar as peças nauseantes com recursos escatológicos. Um ator fingia masturba-se no palco, ou pior (“pior?”) uma atriz atirava na platéia um absorvente íntimo usado (“usado, gente!”) e outras cositas más.

Sem falar da agressão anti-estética dos punks, dos jovens do novo metal pesado sadomasô e esquizofrênico, a obscenidade das tatuagens, o masoquismo dos piercings, o horror das marcas à ferro quente (“nas costas, meu bem, nas costas!”), a performance dominatrix de Marilyn Manson, a auto-mutilação à serviço da “Diferenciação”.

Mas, ao fim, a noite nada teve de bizarro. Exceto o fato de ninguém cair de bêbado.



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LdeM

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