quarta-feira, 26 de maio de 2010

final do Capítulo 3 - Náuseas de Estudante


...



Antoine Roquetin vive de freqüentar os cafés, onde se permite observar os atendentes, os solícitos garçons. Seu olhar de obsessivo observador analisa cada gesto em cada detalhe, na busca de um sentido, mas ele só encontra o “gratuito”, a “náusea” que preenche tudo transbordando de seu próprio ser no mundo.

Pois bem, Darío Sabine sugerira á HD um conto que apresente a perspectiva de um dos garçons, que descreveria a presença daquele senhor, ali na mesa afastada, rodeado de pensamentos, sempre a escrever, ou a folhear obesos volumes, devorando croissants, deixando migalhas sobre as folhas do jornal.

Também a rotina do restaurante, ou do café, com “as cadeiras de pernas para o ar sobre as mesas durante a noite”, a exata observação de Stephen Dedalus, já ébrio, no final de Ulisses (“Mas aí já é James Joyce, e estávamos falando de Sartre, da França entreguerras!”)

Certo, certo. Ao contrário de observar, Roquetin seria o observado. E ao mesmo tempo daria voz aqueles que Roquetin imagina que só existem para servi-lo.

Isso tudo, HD pensando, enquanto observa os fregueses. Aquele, na mesa à esquerda, não é só de escolher, em questão de cardápio, tanto faz. O que for do dia, pode ser. Pouquíssimo exigente. Não pedindo omelete com queijo (ou cebola), nem bebida “estupidamente gelada”, nem nada. De duas, uma. Ou o cidadão é um humilde serviçal que, de tão esmagado, já não ousa exigir mais nada do mundo, pois o que vier é isso mesmo. Ou então é um líder, um espírito nobre, um “hiperbóreo”, nos termos de Nietzsche, que está tão acima de certas frivolidades, que nem se dá ao cuidado de escolher o cardápio.

Por outro lado, há o cliente exigente. Aquele que critica a sobremesa (“Isso aqui é isopor? É borracha? Pensei que havia pedido pudim!"), grosseiramente abordando o garçom (“Ó meu chapa, vê se acorda!”), até infantil, fazendo beiço, se o prato vem trocado. Aquele tipo que devia exigir, sim!, mas exigir justiça e dignidade, e não criar um motim por um pudim! (mas pior mesmo eram os acompanhados! Faziam pose de mandões e poderosos para as suas mulheres, tudo isso para cima do primeiro garçom que aparece, “Vê se presta atenção, chefe! Anota tudo direitinho! O meu vinho é tinto suave. O da madame é branco seco, hein!”, e com voz de autoridade no assunto, em suma, um porre!)

Sim, pois o cidadão não se organiza coletivamente para exigir seus direitos, mas na hora da sobremesa, quando pode humilhar um reles garçom, ele não pensa duas vezes! É mais fácil, se não cômodo, brigar com o serviçal, do que afrontar o chefe, a burocracia obscura, a politicagem, a classe dominante!

Por que não critica a política econômica? Não, o demasiado humano se limita a reclamar da sobremesa!





Não só de ir à igreja viverá o homem. E assim, se na semana passada, Alex conseguira arrastar Flávio (e este arrastara HD) para a missa das dezenove, agora o programa é outro.

Darío passeava pelas tantas pontes de Recife, a Veneza brasileira, em sua tour pelo Nordeste, enquanto Alex se prepara para uma temporada no sul de Minas, o paraíso das águas térmicas. Mas HD vivia ainda sua vida a la Truman Show, na mesma rotina, sonhando com as seduções (e ameaças) das Antilhas.

O caso é que HD chega na casa de Flávio num declinar de tarde de sábado, temeroso d não encontrar o amigo, sempre cheio de compromissos, e quando não, pronto para convites de garotas ou jogos de vôlei.

E realmente Flávio tem algo em mente. Prepara-se para sair. E, muito cordial, convida HD para acompanhá-lo. Flávio, com ares de galanteador (confesso admirador de Don Juan de Marco), revela uma súbita visita a uma ex-namorada, que telefonou (“como quem não quer nada, entende?”) no quase fim-de-semana. E que HD não se preocupe, a irmãzinha não é de se desprezar, e já está no ponto!

E não é mesmo? Quando chegam ao casarão, lá nas subidas do Barroco, lá estão as duas princesas. A mais velha, com uns vinte e pouco, é a antiga paixão de Flávio (ou ele a antiga paixão dela), com toda uma intimidade não esquecida. E a mais nova, não mais que dezoito, é só simpatia.

Sim, poderia suceder-se contatos mais “calientes”, como diria Flávio (e ele até se esforçou, com suas insinuações de fundo erótico, muito sutil), mas HD não conseguia cativar a atenção da mais nova, para que Flávio pudesse escapar, com a mais velha, para o quarto. E Flávio investe na ex, mesmo dando olhadelas para a irmãzinha (sim, pois quando Flávio namorava a mais velha, a caçula nem tinha debutado), a que morre de tédio ao lado de HD, didático ao explicar os tipos de vestes femininas no período do Brasil Império!

Após um lanchinho, com suco de manga e salgadinhos, os amigo vão embora, carregando certa frustração, e uma melancolia erótica (por parte de Flávio) quando seus olhares se distanciam seguindo os faróis.

Esta foi a primeira e última vez que Flávio convidou HD para um programa que envolvia mulheres. Até por que, pouco tempo depois, começará a namorar sério. Flávio conhecera Stella, no estacionamento da faculdade, quando uma amiga em comum pediu uma carona.






Onde essa que o ser humano é um fim em si mesmo, e nunca um meio para algo? Só se for nos compêndios humanistas! Pois em todo lado ele somente encontrava o ser humano como um meio, um instrumento, uma ferramenta! O que eram aqueles operários sujos junto às prensas hidráulicas? Fins em si mesmos? Não! Trabalhavam como apêndices das máquinas, nos ritmos das máquinas !, como engrenagens de carne e miolos, com olhares presos nos índices de produção, nos números e cotas a serem alcançados, nas exigências dos compradores, na ditadura dos lucros, dos quais conheceriam apenas algumas fracos e migalhas. E aquelas senhoras e mocinhas ali inclinadas, corcundas até, em suas máquinas de costuras, com olhos cativos no mover-se de agulhas e fios, o que eram além de ferramentas pra a produção de roupas, vestes com etiquetas para quem pudesse pagar? Roupas que elas mesmas certamente não poderiam comprar... E aqueles escriturários, concentrados contadores, exímios contabilistas, entre pilhas de balancetes e relatórios, perdidos entre diagnósticos e projeções, ousando um fio de Ariadne no labirinto das esferas produtivas, como se quisessem realmente ordenar o caos de pedidos de compradores, remessas de fornecedores, caprichos de clientes, ameaças de credores, incoerências entre entradas e saídas, inexatidão de saldos, acúmulo de promissórias, o fundo inseguro dos cheques, os parcelamentos dos cartões de crédito, a esperança dos crediários, rumo à um futuro de cifras e moedas crepitantes, sem pensarem que são homens, a não ser quando se agitam de desejos e sentem nos bolsos a ausência dos valores que manipulam. Desde quando são “um fim em si mesmos”? Não passam de um meio para a reprodução do capital!





Encontramos HD concentrado nas aulas de Sociologia (isto quando não atento aos sorrisos, aos pés deliciosos de Naína), preocupado com a gênese do liberalismo, imaginando o mundo de trezentos anos atrás, aqueles camponeses, com suas famílias expulsas de suas terras, que eram então cercadas para serem entregues aos rebanhos em imensas pastagens. E nada de nova Arcádia. O lucro é que exigia.


Famílias inteiras que se amontoavam em cidades, prontos a se tornarem mão-de-obra barata e sem qualquer outra opção além de venderem a própria força de trabalho, mas jamais saindo da miséria, vendo as filhas agora prostitutas, suas crianças em trabalhos nas máquinas, sujas de graxa, ou pior, seus dedinhos amputados em engrenagens.

Sim, todo o pó de carvão acumulado nos pulmões, a pele ressequida, os cortiços imundos, as levas de imigrantes em navios fétidos, como o Titanic, com os pobres confinados aos porões, enquanto a primeira classe se degladia pela posse dos poucos botes, indiferentes aos gritos enquanto as águas gélidas invadiam.

Imigrantes para o Novo Mundo, “fazer a América”, roupas em trapos, dependentes dos serviços de imigração, dormindo em bancos de estações, ou sobre as próprias bagagens, tudo para depois serem explorados nas lavouras de café, ou nas indústrias têxteis.

E todo aquele papo de liberalismo e liberdade? Liberdade para o lobo faminto apascentar o rebanho!

Só mesmo a beleza morena de Naína para aliviar o seu desespero.

Humanos desumanizados pela máquina. Matrix. O filme que HD assistira, ao lado de Flávio (que o convidara enfim) e Stella. O futuro administrador delirava com a filosofia dos diálogos, a namorada estremecia a cada efeito-especial, e HD tentava diferir a mensagem sob as cenas frenéticas. Discursa mentalmente sobre a agressividade reprimida eu atrai os jovens para tais sessões de violência surrealista, descarregada em explosões e massacres high-tech. Simbolizam no vídeo a luta social, a competição pela sobrevivência. A fúria diante da máquina é o furor diante da civilização opressora, do sistema mercenário. Então nos sentemos em nossas cavernas acolchoadas para as explosivas sessões de ‘fúria digital’!

O dito liberalismo pregou a liberdade social do indivíduo, mas na verdade, servimos a um capital financeiro sem controle, sem objetivo, inumano, tal uma máquina! Não mais somos soberanos, somos fantoches! O capital reproduz a si mesmo, e foge ao controle. E realmente (aproveitemos a metáfora cinematográfica) servimos tal uma pilha elétrica a um automatismo econômico, ao qual Adam Smith dizia que devíamos nos submeter, a essa mão invisível (e pesada) do Mercado!

- Bem-vindos a era da desumanização!

É claro que Naína ria daqueles desabafos, e o professor continua, até sarcástico. Aparecia com aqueles volumes de Max Weber, Peter Berger, Noam Chomsky e outras figuras, achando-se o máximo e declarando que ‘os atores sociais’ se comportam segundo padrões, que ‘os atores sociais’ não passavam de encenações de papeies, que ‘os atores sociais’ isso e aquilo, como se todos fossemos uns grandíssimos palhaços!

- “Atores sociais”! Outro rótulo!

O professor se mostrava compreensivo, disposto a ouvi-lo.

Rótulo ridículo! Para o Estado, sou um Cidadão, para a filosofia, sou um Sujeito Cognoscente, para o programador de rádio, sou o Ouvinte, para o de TV, o Telespectador. E também: para o mercado, sou o Consumidor, para o dono da mercearia, sou o freguês, para o policial, sou o Elemento (geralmente suspeito). Quando eu serei uma pessoa, a viver sem rótulo, sem etiqueta?

O professor até concordava. – Somos Homo Sapiens, Homo Ludus ou Homo Economicus?

Depois indicava uma lista de livros do Habermas, com suas análises das ilusões do marxismo, numa teoria social crítica, em referencias a um proletariado “fortemente aburguesado” (sic), sem possibilidade do “sujeito revolucionário”.

Aí o Everton soltava a voz. – Aburguesado? Como isso é possível? O proletariado possui os meios de produção? Extrai mais-valia? Apenas fizeram uma parte do proletariado (os mais qualificados, especializados) se sentir ‘burguês’, dando esmolas mais pomposas! O que divide a classe, debilita a consciência de classe’! e disfarça a condição do proletariado submetido a um peleguismo sindical!

Mas o professor em explicações: a reciprocidade das esferas sociais, infraestrutura e superestrutura, os determinismos. E Naína ilustra com uma imagem literária.

- Cecília Meireles fala sobre um “esquema sobre-humano”, “indizível conjunção que ordena vidas e mundos...

- Ora, mas isso é literatura!

É notável o desprezo no sorriso do professor. Ninguém comentou. A aula prosseguiu com indicadores econômicos e índices de desenvolvimento.




- O seu nome é uma aula de literatura!

Até Naína em ironias. Na verdade eu tenho que aceitar este nome, extenso e declamatório, a lembrar origens e responsabilidades, um nome a zelar. Hector Dias Guimarães de Almeida. Um nome que deve brilhar nos olhares alheios. Ai de mim, se tal nome cair à lama! Jamais se reerguerá! E infâmia e vergonha sobre os Dias, sobre os Guimarães, sobre os Almeida. Que não hesitariam em pedir a minha cabeça.

- Acredita que esqueci a senha da sala de informática?

Vivia distraído. Nome que é precisão, diga-se. No mais, além disso, e como se não bastasse, os números! Quantos números atribuídos a ele, acrescidos ao seu extenso e emblemático nome! Carrega consigo, na carteira de couro negra, no bolso esquerdo da calça jeans, um cartão com sua foto, seu nome e um número. O que deve identificar sua pessoa diante das autoridades competentes. O nome e um número de Registro Geral na Secretaria de Segurança Pública do Estado. Fora o número de Cadastro de Pessoa Física, o número da conta bancária, a senha da conta bancária, a senha do cartão de crédito, o número de inscrição no Auxílio Bolsa Estudantil, o número de acesso ao laboratório de informática, a senha do e-mail, o número de cliente na lan house do Campus, o número de cliente na lan house do bairro, a senha de espera para o atendimento na agência dos Correios, assim, números e números, ao infinito. O que diziam?
- Faça alguma combinações e permutações - e reze uma prece para o Pitágoras.

Somente o sorriso de Naína não podia ser quantificado.





final do Capítulo 3
.
.
LdeM

Nenhum comentário:

Postar um comentário