quarta-feira, 5 de maio de 2010

Cap. 3 de Náuseas de Estudante

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Uma das funções de HD no Departamento de Pessoal é justamente o contato direto Departamento e Pessoal. Ele distribuía os contracheques, arquivava os documentos dos empregados, recolhia sugestões, e reclamações. Era a ponte entre o Escritório, ali na Avenida, e alguma indústria de subúrbio, para a qual o Departamento fora contratado.

Por exemplo, aquela visita a filial do Prado. Em plena avenida Francisco Sales, uma indústria de tecelagem. Operários sujos e suarentos. Latrinas mais vergonhosas que a Revolução Industrial. Um cafezinho e um copo de leite às nove e às dezesseis horas, com direito a um pão com manteiga em cada ocasião.

Reclamando de um certo valor no contracheque, aquele, que parece ser o líder local, ou o operário-do-mês, causa um tumulto verbal no refeitório. Que aquilo era um roubo!

E enumera as horas-extras, e que ele ficara trabalhando até a hora do Jornal Nacional, para aquela entrega de Viçosa, que a máquina de corte exigiu um conserto (com desmontagem e tudo!) de quase três horas, e que ele ficara sem o cafezinho depois das seis e nem podia usar o telefone, pois haviam trancado o escritório (o que é isso, não confiam nos empregados? Vai que a fábrica pega fogo! Como é que a gente chama os bombeiros?!)

Muito calmo, consciente da gravidade das reclamações, HD mostra que está ao lado dos operários, mas que nada podia fazer além de transmitir o teor das insatisfações. Mas parecia que falando assim, pausado e difícil, ele atraía mais hostilidade! Os operários não enxergavam nele um empregado, um subalterno! Ali, HD representava o Escritório Central, o Departamento, era o Mensageiro do Alcaide.

Assim a angústia do estudante nascia de seu duplo deslocamento. É pouco aceito meio aos profissionais do Escritório, com os seus diplomas de doutorado e pós-doutorado, e é rejeitado meio aos empregados, com seu palavreado de patrão, como se ele viesse confundi-los com terminologias, valores e contratos.

E é com semelhante fardo, a pesar-lhe sobre o semblante, que HD chega a faculdade, subindo os degraus dos quatro andares da FAFICH, para uma aula de Filosofia, onde o professor sonâmbulo expõe (durante duas horas!) o triste julgamento de Sócrates.



Toda a conversa surgira quando Everton, aquele com broche vermelho na camisa, chegou com o “Origem das Espécies”, o clássico de Darwin, debaixo do braço e começou a discutir darwinismo social com Flávio, aquele que vivia oferecendo carona para os amigos, e paras as garotas. Alex lia algo de Teilhard de Chardin e estava de bom-humor. HD chegou logo depois, ocupado em folhear “A Era dos Extremos” de Eric Hobsbawn. Darío brilhava pela ausência.

Everton, negro, alto, o mais velho, o mais experiente, ex-casado, sindicalista, estudante de filosofia política palestrava diante de Flávio e Alex, quando HD entra.

- Não há vinte maçãs pra vinte pessoas, logo há disputa. Homo homini lupus. Ninguém quer ficar com menos de uma maçã.

- Menos de uma maçã sofremos amarga fome. – Flávio sorria.

- Certo, certo. Imaginemos. Temos quinze maçãs, e as tais vinte pessoas. Cada uma se satisfará com 0,75 de maçã? Acontece que um certo sujeito, forte e arrogante cata cinco maçãs, para ele e seus próximos (seus protegidos?), então sobram dez maçãs para quinze bocas, logo 2/3 para cada, pouco mais que meia maçã.

- E os outros aceitam? – Flávio indigna-se.

- E o que podem fazer? – Alex resigna-se.

- Certo, certo. Continuemos. E se forem dez maçãs? Logo meia maçã para cada um. Mas o fortão do grupo cata as cinco para ele e família, e ficam cinco frutas para os outros quinze, logo, um terço para cada. E subnutrição.

- E revolta!

- Hobbes: a escassez e a luta.

- Não. Podemos imaginar coisa pior. Cinco maçãs para vinte bocas, logo um quarto, ¼, para cada. Mas o usurpador apodera-se de todas e os outros ou guerreiam ou morrem.

- A guerra ou a fome.

- E ao vencedor, as maçãs. Humanitas!

É quando HD intervém, fechando a obra-prima de Hobsbawn sobre o sangrento século vinte. - Hobbes, Darwin, e a escassez, é isso que derruba Santo Agostinho, o bom selvagem de Rousseau, o socialismo, a igualdade comunista?

- Se reconhecermos que não há meças para todos. – Everton com seu ar didático. – Mas nunca se produziu tanto! Imagine quarenta maçãs para as vinte pessoas, e o usurpador levando quinze,ou seja, três para cada um de sua família, e o restante fica com uma e meia cada. Entendem? Alguém querendo sempre mais. Sempre há um usurpador. Quem o deterá? Quem poderá contra ele? O Estado? E se ele financia, corrompe, o Estado? E se for o próprio Estado?

Depois daquela conversa, que impressionou a todos (até ao ausente Darío, quando depois HD a resumiu) passaram a se encontrar no barzinho da Biológicas ou na casa de Everton, em verdadeiros congressos, em serões nas tardes de sábado. Flávio oferecia uma carona para HD (isso quando Flávio não desmarcava o jogo de vôlei), pois Everton morava depois da Gameleira, no anel rodoviário, nos limites da Cidade Industrial.





Dias depois, Darío, didático. – Segundo Darwin, na Natureza, alguns são fortes e transmitem seus genes e outros perecem, por serem inadaptados. Isso na natureza, não na Civilização. – pausa, ainda didática – Na Civilização, o darwinismo, dito aqui, social, não se aplica. Não se está no Poder por ser forte, mas se é forte por estar no Poder. É uma questão de posição social na hierarquia do Poder, não de força física ou pureza genética.

- Hector Dias é parente distante de Gonçalves Dias?

Alex, leitor do romântico brasileiro, ironiza em citações da introdução de “Primeiros Cantos”.

- “Com a vida isolada que vivo, gosto de afastar os olhos de sobre a nossa arena política...”

Ou então declama trechos de “Canção do Tamoio”, sem mais nem menos.

- “Não chores, meu filho; Não chores, que a vida É luta renhida: Viver é lutar.”





Foi numa tarde de sábado (daquelas quando Flávio desmarcava tudo para ir jogar vôlei) que HD e Darío Sabine resolveram fazer uma visita ao Alex, o ex-seminarista. Alex mora num apartamento próximo a Universidade Católica, e atualmente abriga o seu irmão, recém-saído de uma clínica para alcoólatras. Isso os amigos só descobriram quando chegaram lá. Alex não estava, certamente saíra para pedalar até a serra, seu hobby de fim-de-semana, mas ao seu irmão não foi difícil de encontrar.

A porta do flat estava obscenamente aberta e o irmão, mais velho e mais grogue também, exibia-se todo espalhado pelo carpete da sala. Um apartamento até vazio, com almofadas (não poltronas) com estantes baixas repletas de volumes, muitos ainda com plástico (Alex não dispunha de muito tempo para leituras além daquelas do currículo acadêmico) e nas paredes uma cópia de Van Gogh e dois posters, um do Pink Floyd, onde via-se um facho de luz projetado sobre um desfile de martelos (sic!) e outro do filme Blade Runner, com um carro-aéreo a sobrevoar o imponente edifício cilíndrico. No corredor, uma guitarra, sobre uma caixa de isopor (certamente com bebidas).

Notaram tudo isso em um segundo, pois abrindo os olhos, de imediato, Renato, o irmão, se levantou, derramando abraços sobre os dois desconhecidos.

- Amigos de Alex? Ora, então são meus amigos também!

E ofereceu vinho. Mas a taça estava pela metade. E a garrafa, idem. Foi até a caixa de isopor (realmente, condicionando bebidas) e puxou outra. Vinho barato, mas nada desprezível. Depois, ligou o som, ou melhor, aumentou o volume do som. O que fez o flat estremecer. Estavam ouvindo a intro de “The Wall”, do mencionado Pink Floyd.

HD já assistira o filme (inclusive aquele que mais se repetia na telinha do boteco em frente ao colégio, onde o professor de Química vivia bebendo com os alunos do último turno, e HD assistia enquanto esperava Sandra, ou quando a procurava) e imaginava o desfile dos martelos em coreografia fascistas diante de um líder pálido e sadomasoquista, externando todo o seu medo neurótico em ameaças contra negros, judeus, gays e imigrantes. Darío lembrara referencias às obras do inglês George Orwell, aquele do romance sobre o “Grande Irmão”.

Mas o inusitado é que Renato continuava espalhado pelo carpete. Sem camisa, barba suja de queijo ralado, meio drogado, com certeza, e totalmente alheio. Em certos momentos, até dormia! Aí é HD mudar o som, e Renato se levanta, reagindo de imediato. Que isso, irmão! E o som, irmão! O solo viajante, pô! E emocionado se levanta para saudar os amigos, que nada entendem. Coitado do Alex!, compreendem. Logo, o anfitrião deixa-se cair sobre as almofadas. HD arrisca bebericar o vinho, e Darío ainda lendo as letras dos encartes dos vinis e compact-discs, gritando mais alto que o som (até perder a voz) comentários sobre trechos poéticos nas letras das canções.

Renato desperta, enche os copos de vinho, e volta para o carpete. Que os amigos fiquem á vontade. Vou sonhar com esta canção. Querem um baseado para viajarem? Às vezes, Renato se imagina e se comporta como se estivesse em pleno festival de Woodstock !




Depois das discussões nas tardes de sábado, quando HD renunciava a paz do quarto de pensão e Flávio desmarcava as partidas de vôlei, os amigos assistiam filmes mais off ou simplesmente sentavam-se na varanda para beber chá ou cerveja, dependendo do gosto e da coragem. HD, que anotava (de memória, segundo nos consta) trechos inteiros das discussões, organizava (se era mesmo possível) por tópicos ou assuntos. Notas onde pode-se perceber que qualquer semelhança com diálogos platônicos não é mera coincidência. Encena-se o mesmo drama com as mesmas angústias.

Everton – Qualquer ampliação ns esfera não-produtiva é ridícula. O sujeito deixa de lavrar uma roça, desenvolver um cultivo, para ser obrigado a cair na cidade, onde não há oportunidades. Acaba por perambular por aí – vendendo pentes! E quanta polícia! Exército na rua não basta! Polícia militar, civil, federal, legista, criminal, agora essa guarda municipal! É muita gente à-toa!

Flávio – É porque tem pobre demais – o que significa violência. Se o cara passa dificuldade, fome...

Hector – Desenvolvendo o tema, e a tua ideia, Everton, sobre a inutilidade do não-produtivo, a poesia é ridícula?

Everton – Por esta perspectiva, sim. Igual as cartas de amor. Todas ridículas. E ainda assim o Pessoa insistiu em seus versos. Pense: se o mundo fosse perfeito, ou perto disso, poesia pra quê? Protestar contra o quê? Denunciar o quê? Penso que o Poeta revela o desconforto. Se tudo fosse organizado, eu preciso concordar com Platão quando dispensa os poetas.

Hector – mas sempre haverá indagar, inquietações. Espirituais, digamos.

Everton – Que espirituais! O animal homem tem fome, e sede, e desejos. Alguém a tecer versos por estética, por ânsia de beleza, concordemos. Mas será um entretenimento como pescarias de verão, passeios no parque campestre, cursos de arranjos florais...

Hector – Seja por desabafo ou bela forma, sempre alguém ousará esboçar versos.

Everton – Não viverá disso. Se não produzir, se não contribuir na lida diária, se não trabalhar na terra ou na manufatura, será preso por inútil. Chega de desempregado de um lado e funcionários-fantasmas de outro. Que sejam banidas as mãos estéreis, os parasitas, os andarilhos, os sonhadores! Abaixo os inábeis, os ociosos e os solitários. Trabalho comum para o bem comum.






Outro trecho, datado de um mês depois.

Darío – A Revolução Russa foi uma revolução burguesa que resvalou em comunista. A Francesa quase seguia pelo mesmo caminho...

Hector – É, se o Graco Babeuf não fosse esmagado. Perto dele, os jacobinos parecem mais uns mencheviques...

Everton – O quê? Os jacobinos não tinham nada de moderados! Os líderes são verdadeiros bolcheviques!

Hector – Falta dizer que Lênin era um Robespierre, e Trotski, um Danton!

Darío – Aí o Stálin seria um Marat!

Everton – Veja o Babeuf: para explodir a revolução dentro da Revolução, ele teria de lançar mão do terror dentro do Terror.

Hector – Babeuf terrorista?

Everton – Não confundam. Moderados foram os girondinos que tentaram de todo jeito salvar Luís 16 e sua Maria Antonieta, a dos “brioches”. No drama russo, foram os mencheviques que tentaram resguardar o Czar Nicolau e sua Alexandra.

Alex – E daí? Quem seria o Rasputin francês?

(Há uma anotação, ao pé da página, certamente trecho de fala de Everton, que sempre agradou HD com certas tiradas.)

- Os índios invadem as instalações da FUNAI, os sem-terra ocupam o prédio do INCRA, os Sem-Teto vão morar nas marquises da CONHAB. Pelo menos para alguma coisa prestam as nossas repartições!



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LdeM

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