quarta-feira, 12 de maio de 2010

cap. 3 de Náuseas de Estudante

...


Estavam na varanda, à sombra das samambaias, cheios de preguiça, depois de assistirem, naquela tarde tropical de sábado, ao filme “A Casa dos Espíritos”, baseado no romance homônimo de Isabelle Allende.

Everton – A direita sobe com a fraqueza da esquerda.

Alex – Das esquerdas.

Everton – Sim, a pluralidade. Antes, as fraturas. Essas questões ideológicas..
Flávio - E dogmáticas.

Alex - Isso de socialistas, comunistas, social-democratas, reformistas, extremistas, anarquistas...

Everton – Então a direita sobe. Fascistas, aristocratas, hierarquias religiosas. Todos de mãos dadas. Por interesses em comum. Industriários esquecem as conseqüências e financiam os lobos para cuidarem das ovelhas revoltadas.

HD – Mas não vamos comparar um golpe sul-americano com a guerra civil espanhola. Lá o Generalíssimo teve que costurar uma aliança, impulsionar o movimento, invadir o próprio país. Aqui ao lado, o General viu-se a frente de um acúmulo de forças insatisfeitas, numa rebelião à ordem legal..

Flávio – Ambos atentaram contra regimes democraticamente legitimados!

Everton – Mas com as esquerdas em rixas internas, e é como eu disse. Não é a direita que é forte, a esquerda é que se enfraquece.

HD – Fiquem de olhos bem abertos! Quando Weimar cai, eis o Reich!





Depois de Platão, Marx, Machiavelli, Freud e Bakhunin, o serão daquele sábado torna-se mais festivo. Outros familiares de Everton tomam pose do som e modinha de viola alegra a varanda.

Flávio encontra HD e insinua que o amigo já bebeu demais ( ao lado está empilhada meia dúzia de latinhas de cerveja, fora a caipirinha da primeira rodada), ali sentado diante da TV assistindo clipes musicais na MTV. “Sunday Bloody Sunday”, denuncia um performático Bono Vox.

Lembrando que ainda há uma festa de casamento (importante evento social ao qual não pode brilhar pela ausência), Flávio arrasta HD para o carro. Mas Flávio não está muito preocupado com o horário, pois mal dobram a esquina, na marginal da Via Expressa, ele pára diante de duas mulheres. Ambas de vestidos insinuantes, damas da noite. Uma morena e uma ruiva. Flávio instrui HD para que se acomode no banco de trás, e convida as mulheres para um passeio. A loira senta-se ao lado de Flávio, e a morena (com todo aquele perfume!) ali ao lado de HD.

Enquanto seguem para a pista à direita, além da Gráfica, HD não pode deixar de notar o vestido branco e deveras curto da morena ali ao seu lado. E que par de pernas! Mas encontra-se em névoas alcoólicas e não ousa tocar a mulher. Flávio sussurra ao ouvido da loira, que, de cabelos soltos, geme baixinho. Realmente, HD está tão grogue que nada consegue fazer, e a morena observa-o com infinita piedade.
As mulheres descem um bairro depois. E Flávio evita comentários. Acelera para chegar em casa antes das sete horas.

Chegam a mansão dos Toledo e o pai de Flávio atravessa a sala de estar, rumo a varanda, envolto num roupão bege, exalando loção pós-barba, fumando um cachimbo, em pose entre doméstica e altiva, os pés afundados no carpete felpudo.

O pai de Flávio, o Sr. Carlos, tem todo o prazer em mostrar sua (como ele diz) modesta moradia, com a parede da sala de estar recoberta de pedras, com decoração simples (apesar do abajur exótico, e seu jogo de luz e sombra, em círculos concêntricos.

Enquanto isso, Flávio se prepara, indiferente à decisão de HD em voltar para casa, desprezando aquelas festas burguesas (de tão bêbado, nem sabe bem onde está!). Mas então surge outra figura. Bem trajado, gel no cabelo, gravata e terno, em saudações, todo cerimônia!

HD já não se segura e cai numa crise de riso! Gargalhadas mesmo, assim abertamente! Constrangimento! Flávio é diplomático como sempre, apresenta o cunhado, noivo da irmã mais velha, profissional em início de carreira na administração, Hector esse é o Augusto, Augusto esse é o Hector.

É visível o contraste. HD engole o escárnio e estende a mão numa saudação, assim mesmo, de camisa poída, cabelos até o ombro, calça jeans desbotada, ar de “pouco me importa”. Augusto aceita a saudação com infinita condescendência.

Não sei se Flávio pôde prever, mas naquele momento, diante de seus olhos, se inicia uma sutil uma sutil inimizade, a disputar o domínio de sua alma.





Flávio ressalta o fato de HD precisar ir bem vestido a entrevista. Afinal, trata-se de uma grande empresa, e o Gerente de Pessoal é velho camarada de seu pai, além de assíduo cliente do restaurante.

Emprestando suas finas roupas sociais ao amigo, Flávio orienta calmamente quanto a etiqueta, a combinação de tons e cores.

Diante do espelho, HD aos risos, notando sua nova imagem “social”, faltando apenas a gravata e o gel.

A imagem de Augusto num flash e HD ri subitamente. O pai de Flávio não pode deixar de estranhar o novo amigo de seu filho. Mas Flávio defende HD por admirar sua atitude de desafio. No íntimo, Flávio gostaria de ser assim, do contra mesmo, mas a família sempre o cercara de cuidados e formatos.


- Que assombro, a civilização! Tenho pelo menos três mil anos! Afinal, não sou uma construção histórica? Geração após geração acumulando cultura, até florescer o meu “eu”... – ajeita a seqüência de botões. - Um organismo Homo sapiens sapiens de, sei lá, vinte mil anos, mas a civilização, com suas providencias e frivolidades, cobre o nosso corpo com roupas, sabonetes, xampus, maquilagens, cremes hidratantes, espumas para barbear, loção pós-banho, pó-de-arroz, condicionador capilar, tinturas, gel para cabelo, perfumes, e outras químicas. Somos um macaco com elegância mais do que um macaco com consciência!

As irmãs de Flávio aparecem e elogiam o “new look” do rapaz.

- Gente, o Hector ficou até bonito! – elogia a mais nova.

Ou seja, realmente a roupa faz o homem!





- Hector Dias, Auxiliar Administrativo do RH!

Assim, finalmente alguém lhe concedia atenção. Um olhar numa penumbra de escritório, um empregado abandonava a máquina, uma secretária até ousava um sorriso. Mas, afinal, quem é Hector Dias?

Quem sou eu-mesmo? Havia, no mundo, alguém em si-mesmo? Sempre se acrescenta um cargo, ou função, ou Partido , ou ideologia, ou organização. Fulano, Assessor do Prefeito. Beltrano, Técnico em Contabilidade. Siclano , Diplomado em Programação de computadores. E sempre assim. Sempre úteis a alguma coisa em seus cargos! Sempre precisando provar algo, competência ou criatividade!

Será que somente os ditos humanistas consideram o “Ser humano” em si mesmo? O ser humano enquanto valor absoluto, medida de todas as coisas? Além de utilidade, função, lócus social, interesse público? E se eu me voltasse, a dizer, “sou uma pessoa”, isto bastaria?

Já me disseram, algumas vezes, que eu sou ninguém, “você sabe que é ninguém”, desse jeito!, mas o que é ser “alguém” ? É ter uma qualidade ou ter um bem material (ou vários) ? Mas, então, não se trata mais de “ser”, mas de “ter”! Quando serei “alguém”? Quando me formar em História e fizer pós-graduação em “Estado Novo”? Quando for o “senhor Professor”? Quando escrever e publicar os meus livros? Quando ler os meus textos em sarau público? Quando for vencedor do Prêmio Jabuti? Quando for casado e pai de família? Quando for amigo do Jô Soares? Quando for amigo do García Márquez? Quando eu estiver morto e ganhar uma estátua? Quando eu for processado por escrever literatura subversiva? Quando eu vender dez mil cópias do meu primeiro romance? Quando eu ganhar o Prêmio Nobel de Literatura? Quando serei “alguém”, já que “sou ninguém”, como diz um poema da Emily Dickinson, “I’m Nobody! Who are you? Are you – Nobody – Too?”

Quando serei alguém? Quando concorrer a um cargo público? Quando for Presidente da República? Quando for nomeado Comissário do Povo para Assuntos Literários? Quando for namorado de uma atriz de TV? Quando me casar com uma modelo de capa de revista? Quando for fotografado em companhia do Secretário da Cultura? Quando aparecer no programa de tv elaborando sofismas sobre a arte literária? Quando eu agarrar a Miss Belo Horizonte? Quando eu for condecorado com a Medalha Tiradentes? Quando eu criar uma Fundação de caridade? Quando eu der uma Recepção de Gala no Automóvel Clube? Quando eu for flagrado em ato obsceno num banheiro público? Quando eu for declamado nos saraus da zona sul? Quando eu comprar o carro do ano? Quando eu aparecer nos jornais como o “Cidadão do Ano”? Quando eu tiver um sítio em Esmeraldas? Quando eu amar o próximo como a mim mesmo? Quando o meu patrimônio ultrapassar cinqüenta mil reais? Quando eu ficar maduro? Quando eu fizer trinta anos? Então, quando eu serei alguém?




É patente que havia uma guerra no balcânico barril de pólvora da Europa, mas HD não vivia um clima melhor no escritório.

Para dar conta das tantas leituras (e da pilha de cópias xerocadas) ele leva o material de estudo para a sua mesinha modesta no Departamento de pessoal. Entre arquivos e telefonemas, ele se esforça para entender o espírito do capitalismo ou o mecanismo das lutas de classe, listando os nomes dos gabinetes das Regências ou as fases da Revolução Francesa.

Estudo possível quando nada há para ser digitado, ou documento algum a ser arquivado, e o gerente não está por perto.

Mas acontece de HD estar realmente concentrado e aí aparece o gerente, até intempestivo, a exigir este ou aquele documento, ou a digitação (para ontem!) de um memorando ou aviso prévio.

- É pra agora, rapaz! Deixe de lerdeza!

E HD prontamente abandona seus textos sobre democracia representativa, tópicos de terceiro setor, ação comunicativa, Estado de bem-estar social, Tolerância segundo a perspectiva de Voltaire, e deixa-se à disposição.

Por sorte, o administrador-geral simpatizara com o rapaz, admirando sua força de vontade, sua dedicação aos estudos, e prontamente o defende:

- Que isso, Marçal, deixa o rapaz. – pausa, apenas para abrir um sorriso, que somente HD pudia ver. – E, aliás, Marçal, aquela listagem do departamento, que eu pedi ontem cedo, já está pronta?

Agora é Marçal quem sai, todo obediente. E HD resmunga:

- Esse Marçal é uma maçada!
E o administrador em novo sorriso.

Além do mais, Marçal, o gerente, agarrava a loirinha da recepção, e Marçal sabia que HD sabia, pois o rapaz já os flagrara juntos, numa curva da escada. E Marçal já vira HD em prosas com Vera (eis o nome da mocinha) e ao seu mau-humor se juntara o ciúme.

- Vera, você viu o meu livro sobre Canudos?

HD pergunta, ao notar a recepcionista folheando um volume. Ela sorria. Também fã de Antônio Conselheiro? Ele se incomodava.

- Por favor, Vera, poderia me devolver?



....

LdeM

Nenhum comentário:

Postar um comentário