quarta-feira, 19 de maio de 2010

cap 3 - Náuseas de Estudante

...



Às vezes, algo no discurso de Everton, enquanto flanavam pelos corredores da Fafich, se assemelhava as pregações de Celso.

- Cento e cinqüenta anos do Manifesto!

E HD voltava-se para Darío. – Do que o Everton está falando?

O outro, irônico. – Da Bíblia satânica.

- Para o catecismo capitalista-imperialista, claro. – Alex era prestativo em explicações.

- “Um espectro ronda a Europa...”

- Isso! Pois se você analisar calmamente, nada mais cristã do que a denuncia marxista da exploração do homem pelo homem!

Flávio tentava acompanhar, mas fazia suas perguntas fora de sintonia, então Alex pinçava um trecho e jogava na roda, “As revoluções russas de 1917 ?”

- Haveria revolução de qualquer jeito. Naquele campesinato feudal... – Darío começava, apenas para ser cortado por Everton.

- Ora, é a mesma revolução que estourou na Inglaterra em suas turbulências do século dezessete, a mesma que abalou a França nos fins do dezoito e meados do dezenove, e até boa parte da Europa (lembrai-vos de 1848!), a mesma revolução burguesa num mundo feudal...

Então, HD é que interrompia. – Mas duas revoluções num período de um ano? A passagem do feudalismo ao socialismo em nove meses? Isso é o que eu chamo parto de risco! O salto comunista...

Everton não dava tempo. – O salto comunista?! Você é revisionista?

- Só se você for um menchevique.

Mas Darío já discutia outros ângulos, pontuava outras perspectivas, junto a Alex e Flávio, ambos de platéia.

- Marx fez a crítica da sociedade capitalista-industrial em nome do proletariado. Nietzsche critica a sociedade de massas na plena consolidação da burguesia, e defende ideais aristocráticos diante do medíocre homem comum, demasiado humano. Enfim, Freud, fruto de ambiente burguês, denuncia a hipocrisia cultural-sexual da burguesia.

HD entrava na conversa. – Algo de comum entre eles?

Alex julgava contribuir. – Os três escreveram em alemão...

- Nem alemães eram! – Everton não perdia a oportunidade (até já esquecendo a “ofensa” insinuada por HD) – Dois judeus de cultura alemã e um alemão com ascendência polaca.

Alex, suspirando. – Ah, é uma vergonha não saber alemão!

Darío, agora conseguindo responder a pergunta de HD. – Em comum? Sim. Os três ousaram resgatar uma atitude sepulta sob lápides de fórmulas e túmulos de dogmas. Exumaram a Suspeita.)

Depois, quando Alex parava na sala de sinuca, ou Flávio convidava Everton para o vôlei no centro esportivo, HD e Darío desciam à lanchonete da Letras, desviando-se dos gatos gorduchos e insinuantes. HD numa sessão de memorabilia, lembrando de quando seu interesse por História foi despertado, diante de uma capa de um livro da oitava série,onde se retrata uma cena da Revolução Francesa, onde quando o povo invadia as prisões, via-se os sans-culotes matando um soldado. Este se defende, mas eles, os revolucionários, a massa enfurecida, esquecendo ambos de que pertencem a mesma classe!, enfiam uma lança em seu peito!

Mas o soldado não seria igualmente parte do povo? Por que defendia interesses dos nobres? Ou não é assim hoje, a polícia governista atira na polícia grevista? Mas o soldado morreu em vão? Os revolucionários lutaram em vão? O que é o indivíduo que morre nas turbulências da História?

- Pense, Darío, na História, quem são os vencedores e quem são os perdedores?

Mas não ficavam muito por ali. HD fica logo nauseado, com as figuras fúteis que estudam e nada aprendem. Espécimes da inteligência cooptada, em busca de diplomas e cargos públicos. Filhos da classe média que ocupam assentos destinados às classes proletárias. Imagina seus pais arás de mesas entulhadas de papéis e cifras diante de telas e gráficos com olhos fatigados, em horas extras e noites insones, tudo apenas para que seus filhos agora desfrutem e esbanjem a grana.

- A história é um pesadelo do qual eu imaginei que pudesse acordar.

Mas Darío ainda não conhecia Stephen Dedalus e assim não entendeu a referência.




Sempre empolgado, Flávio Toledo convidou os amigos para uma rodada de bebida e pizza. Lá pros lado do Barreiro. Pizzaria da boa. Isso ele garantia por ser do ramo!

HD e Darío chegavam da casa da professora de História, Ada Soares, arrastando-a, diga-se. Emocionados após assistirem, deliciando-se com broas cremosa, ao clássico “Sociedade dos Poetas Mortos”, ciente do “carpe diem”, aos versos de “O Captain, my Captain”, sob as barbas de Whitman, quase em companhia dos jovens poetas em suas grutas, quase na platéia da cena de teatro, “Sonho de uma noite de verão”, quase vertendo lágrimas diante do ato extremado do ator sufocado pelo pai autoritário, quase subindo nas carteiras quando o professor em sua despedida... (A outra professora, Lia Amélia, mestranda de Filosofia Política, fora recentemente reencontrada por HD e Darío nos corredores do quarto andar da Fafich)

- Fiquei sabendo que você descobriu o rock’n’roll !

Ada estava de bom humor, diante de HD com seu visual a la Seattle. Camisa de flanela, jeans poído, cabelos longos, um tênis castigado.

Flávio acabara de chegar, trazendo Alex de carona.

- É a revolta! O rapaz anda muito rebelde.

Todos em sorrisos, menos HD, claro. O seu desespero histórico não permite que ele se divirta. Lembra a festa da turma, a muito programada e sempre esperada. Mas naquela sexta-feira, o professor continuou as suas exposições sobre o Brasil Império, com ênfase na Decadência, e na Guerra do Paraguai. A vergonha, diga-se. HD, então deprimido, com a sandice do conflito, onde o Brasil não passara de agente a serviço de interesses ingleses, até desiste de ir à ansiada festa.

Agora se percebia em discussões sobre a dicotomia natureza e cultura, concordando com Alex, de que genética é probabilidade, não fatalidade, mas ressaltando que o meio, o contexto histórico, faz a diferença;

Ou ainda, agüentando, com infinita paciência, as ironias de Flávio, quando exalta na roda, entre uma fatia e outra, a admiração, assaz conhecida, de HD pela erudição de um tal Miranda, Raul Miranda, um especialista em Década de 30.

- Verdade. Uma enciclopédia. E o Hector, nosso Hobsbawn, vamos desculpar, mas puxando o caderninho de anotações, todo atenção...

Sim, depois que “A Era dos Extremos” se tornara (ao menos para HD) o livro de cabeceira, Flávio não perdia a oportunidade de invocar o amigo com um caloroso “Amigo Hobsbawn!”, e havia quem o confundisse com Hobbes (o do Leviatã) ou Robespierre (o revolucionário vítima da revolução).

E o tal Miranda, Raul Miranda? Erudito, historiador e arquivista, a defender que a década de 30 fora o grande “nó górdio” do século vinte. (“E para dizer isso ele precisava voltar a Alexandre, o Grande?”) e seguia enumerando efemérides. A grande Depressão. Desemprego e Fome. Mussolini na Itália. Estalinismo. Suicídio de Maiakovski. Revolução de Trinta. Revolta Constitucionalista de 32. Grandes Expurgos. Ascensão do Nazismo. Hitler Chanceler. Rearmamento. O New Deal. O Varguismo. A Intentona Comunista. Os Integralistas. A Longa Marcha do Mão. A Guerra Civil Espanhola. O assassinato de Lorca. Peronismo. Estado Novo. Chaplin com seus filmes “Tempos Modernos” e o “Grande Ditador”. A Conferência de Munique. A Anschluss. O Pacto de Não-Agressão Nazi-Soviético. A Invasão da Polônia. A Drôle de Guerre. O Início da Segunda Grande Guerra...

- E o amigo Hobsbawn até esquece de comer!





Acertaram uma tarde no clube. Afinal, não só de estudos vive o homem, Alex é quem ironizava. Convidara também o seu padrinho Celso, futuro teólogo, em promessas de ascensão eclesiástica, ainda que leitor fiel de Boff, e prometera até pagar a conta. Darío Sabine aceitou, mas com um propósito de balanço final, uma despedida,pois iniciaria sua vida on the road, como sempre sonhara. Certamente aceitara o convite do Veneza para uma temporada em Recife.

Alex também (depois é que ele revelou!) pretendia igualmente uma tarde de adeus, pois seguiria para um retiro no sul. E ali HD pretende se divertir um pouco, já temendo o estresse. (E de fato esta é uma das poucas ocasiões em que ele se diverte.)

Chegam, e HD não perdoa, logo protesta:

- Só burguês! Sentiu o perfume?

- Vocês sempre começam assim. – diz uma voz clara e resoluta, junto ao corredor de entrada. Trata-se de Celso, aquela aparição, ao lado de Alex, na contemplação das poses e do glamour. – Depois vocês se acostumam.

- Não brinca! Por que tenho que aceitar?

- Para viver.



Mas HD imagina que a diversão é “algo fisiológico”, no sentido de “tirar o corpo da rotina”, e passa a criticar (academicamente!) a diversão alheia enquanto “alienação”. Celso estende um sorriso, com toda a boa vontade, e lembra que essa de “fisiológico” é a mesma desculpa para o sexo. Entanto (deixando a academia de lado) tomam banho de ducha de ducha, observando os modelitos de óculos escuros. Ao longo da lagoa, num tom um tanto irônico, abordam a diversão do não-compromisso, a sensualidade do semi-nu, o divertir-se enquanto “esquecer-se de si mesmo”(palavras de HD), o divertimento para o cristão e para o comunista (duelo Darío versus Celso) e resolvem jogar peteca na areia. Todos de sunga. “A sensualidade enquanto protesto do corpo”, ironiza Alex. Mas onde estão as garotas?

Mas ninguém ousou aprofundar o tema, senão animavam o Celso, que começaria a enumerar citações de Agostinho, contra o hedonismo.

- Mas alegrar-se é servir a Deus, pois nosso Deus não é um Deus de se alegrar do sofrimento. – Celso lembrava, enquanto seguia para a sauna. – Havendo justiça social, todos serão felizes, em genuíno divertimento.

No calor da sauna, o assunto Deus foi degelado.

- Não acredita em milagre? Não percebes que estar aí vivo, respirando, pensando, é um milagre! Até quando duvidas, estás diante do milagre!

- Ora, não estou vivo segundo as leis naturais? – HD, sem hesitar – E o milagre não é ir além da Natureza? Mas é estranho. Se Deus fez as leis da natureza, por que Ele mesmo vai quebrar algumas em privilégios para alguns?

- E se a própria natureza for um milagre? É assim que eu vejo...

Alex cochicha, a lembrar que Hector é marxista, e Celso não pode deixar de achar interessante, também a julgar igualmente marxista, em consciência e carteirinha, mesmo que rejeite essa de “materialista”, acrescenta, e a defender que Marx é um “verdadeiro cristão” (afirmou com especial ênfase),pois reclama por dignidade e justiça. - Não pode haver amor ao próximo enquanto eu o exploro.

Mas quando Alex comenta, sem qualquer ênfase, que certo fulano é cristão por mérito de et cetera (e isso quando lanchavam, jogando sinuca, jogo que Celso e Alex dominavam bem, para o despeito de Darío e HD, um tanto tecnicamente neófitos), então é que Celso não segura mais.

- Ele (fulano), cristão ? Ora, por favor? Muito prazer, eu sou São Francisco. Hoje é fácil, encher a boca e soltar: sou cristão! Queria ver era no tempo de Calígula, Nero e do “panes et circenses” ! – e bebia, enérgico, um gole do refrigerante que HD acabara de comprar na lanchonete, do outro lado do asfalto quente.

É por essas e outras que não concordo com Lutero. – continuava Celso, empunhando o taco de sinuca. – Lutero e sua defesa da salvação pela fé, vida interior, e etc. o importante são as obras! Ficar desfilando pro aí com Bíblia debaixo do braço, decorando salmos, entoando hinos, rezando mil rosários, em penitencias em cem romarias, isso tudo é argola de ouro em focinhos suínos! – e detonava a bola onze, na caçapa ao lado de HD. – eu quero ver é obras! Ações para mitigar s fome do próximo e não missas e missas pagas à esses padres pançudos! Eu quero ver a real fraternidade! Fora com esses papa-hóstias e beija-mãos! Eu quero ver igualdade! Chega de esmolas e cestas-básicas! Eu quero ver a dignidade e não essa dita caridade hipócrita e até cruel. Brincar com a esperança alheia! – e acertava a cinco, em pontaria perfeita. – o verdadeiro cristão é comunista como foram os doze apóstolos! Compartilhavam o pão! – e lá se vai a bola sete, caçapa do meio à esquerda. – não ficavam oferecendo migalhas!

HD – Interessante essa! De que o verdadeiro cristão é comunista!

Celso – Comunista, sim. Socialista por almejar igualdade social, sem a qual a fraternidade é uma farsa. Comunista ao desejar um mundo igualitário, onde todo mundo tenha oportunidade.

E venceu o jogo derrubando a bola treze, depois da três.

Celso – Dizem que o comunismo é blasfemo. Sim, o que se alega Ateu. Pois o verdadeiro satanismo é o ateísmo. Que não passa de individualismo e anarquia. Falam em liberdade, mas só borbulha o caos.

Darío – Mas o satanismo surgiu como uma resistência (até mais do que psíquica) contra a Igreja aliada a tirania dos senhores feudais...

HD – Peraí! A Liberdade é coisa do Demônio??

Ainda bem que bebiam refrigerantes, senão os ânimos se exaltariam e o álcool é um líquido inflamável..

Darío – Ok, Celso, aceitemos que só é possível o socialismo se for cristão. Mas será democrático? Pois, o que acontecerá com os não-cristãos? Convertidos? Exterminados? Pense bem. Seria teocracia! É Idade Média!

E a discussão (por habilidades de Darío) segue por meandros de historiografia. – idade Média? Claro que houve, e ainda há no Brasil! Vai ali no interior, no chão árido e trincado do sertão! Lá o coronel é senhor feudal, e conflitos por terras entre as famílias latifundiárias são dignas da guerra das duas rosas!

HD – Concordo. A insurreição de Canudos seria uma espécie de revolta camponesa, nossa Vendéia? Um messianismo de Münster, ao estilo tupiniquim.

Alex (beliscando o queixo) – Lampião, vejam bem, seria um justiceiro à la Robin Hood. E não exatamente um cavaleiro andante. – e depois, na ducha final. – E Antônio Conselheiro, uma espécie de Thomas Muntzer milenarista?

- Você leu o livro do Saramago?
Certamente HD quem perguntou. E voltaram discutindo “In nomine Dei”, do autor português, enquanto Celso palestrava sobre as revoltas camponesas e lembrava o MST e HD fazia certeiras referências à uma clássica peça teatral de Sartre, “O Diabo e o Bom Deus”, com tema semelhante, e bem anterior ao romance lusitano e outros detalhes que agora fogem as nossas anotações.

No entanto, sobreviveram. E cada um seguiu para o seu lado.




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LdeM

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