quarta-feira, 28 de abril de 2010

Náuseas de Estudante - Capítulo 3


Capítulo 3


Numa tarde de vento, HD saía do restaurante La Romana , esforçando-se para dobrar o jornal. Escândalos no banco Central. Vagarosas as investigações sobre a morte do calouro na USP. O sistema compulsório de “demissões voluntárias” nas metalúrgicas do ABC. Desdobramentos da moratória russa. Um veículo acaba de estacionar á sua frente. Desce Flávio Toledo.

- Caminhando contra o vento, Hector?

HD sorri, como se a observação fosse uma saudação. Flávio acena para um garçom, entrega a este um maço de notas, orientando o rapaz a depositá-las no Caixa. Volta ao carro, pinça um envelope pardo dentre outros papéis. Confere o conteúdo e fecha a porta. Aciona o alarme. Tudo metodicamente. Percebe HD e esboça curiosidade sobre as notícias do dia, etc.

Revelando ter almoçado mais cedo, Flávio segue pela calçada, ao lado de HD, que já desistiu de dobrar o jornal. Combinaram uma visita à empresa de um dos amigos do pai de Flávio, onde HD espera uma oportunidade. Flávio explica que até precisa andar, uma vez que acostumar-se a automóveis é acomodar-se com suas gordurinhas, “Engordei cinco quilos, pô!”

- E as partidas de vôlei? Ou por que não faz cooper, ou vai para um spa?

Seguem andando, ao longo do quarteirão. Em breve alcançam a Alameda e de lá o Parque, onde Flávio não dispensa um momento de relaxamento na sua vida de consultor comercial da família, isto é, do restaurante da família, aquele mesmo de onde HD saíra. Flávio sorria às propostas do amigo.

- Spa? Estou assim tão for de forma? Estou com cara de sedentário? Eu é que não tenho a vida fácil que você tem. Só lendo, estudando, nada de trabalho...

- Nada de trabalho? E o fosfato que eu gasto? – HD parecia indignado. – Então você é que trabalha! E quantos livros de Economia você leu este semestre? E quantos volumes de Sociologia? E quantas tabelas de Estatística você calculou? Vê, esse é o problema! Valorizam o Ter e não o Saber! Se eu recebesse pelo tanto que sei, estaria milionário!

- Vou desculpar a sua modéstia.

Assim é a cena. HD com o jornal do dia, na mão direita, e a jaqueta jeans dobrada sobre o ombro direito, seguindo Flávio pela Alameda, à sombra das árvores do Parque, rumo ao trânsito da Avenida.

- Sim, é preciso trabalhar. Meu pai não vai eternamente depositar a mesada! Mas o sujeito arruma um emprego, um salário (não exatamente um “bom” salário), então arruma uma mulher, logo um casório, e eis os filhos! Tudo se repete! Por isso, às vezes, eu concordo com o meu pai, quando diz que na hora de dormir basta uma tábua e um dicionário, para ser a almofada.

Aí foi Flávio quem parou, a engasgar na risada. – Há, há! Sim, mas é claro! Uma tábua e um dicionário! Para ser a almofada! Se você vivesse lá em casa não dispensaria colchão macio, lençóis limpos, cobertores quentes, almofada de penas.

- Ah, ainda bem que você sabe!

- O que você quer dizer com isso?

- Que você se acomodou. É mais barato ficar em casa.

Uma buzina cortou o diálogo. Flávio notou o sinal vermelho para os pedestres. HD amassou o jornal debaixo do braço. Toda atenção é pouca na selva de concreto e aço. Uma garota exibe orgulhosamente na mochila uma bandeira com as estrelas e as listas. Made in USA. Aparece um homenzinho verde. Atravessam.

- O que você estranha? – HD percebe o olhar de Flávio sobre a bandeira estrangeira. Flávio, o bom nacionalista. – já estamos globalizados. Olha o seu sapato, o seu celular. Você lê romances norte-americanos, adora poesia hispânica, na sua camiseta (aquela que você vestiu no fim-de-semana) havia uma frase em inglês, na sua lapiseira eu vejo ideogramas japoneses. Além disso, você planeja comprar CDs de música italiana, casacos ingleses, charutos cubanos...

O escritório é no terceiro andar, e como estão bem dispostos, sobem pelas escadas. HD atento aos detalhes, quadros nas paredes, cópias de pintores famosos, corredores amplos. Um edifício de classe e glamour. E não esquece os esclarecimentos de Flávio, sempre cordial e solícito, sobre o ambiente de trabalho, o desempenho profissional, o gerente que é amigo da família. Outro detalhe (será detalhe?) que não escapa: a presença das mulheres. Secretárias, datilógrafas, digitadoras, recepcionistas, faxineiras, administradoras, advogadas, gerentes, empresárias.

No terceiro andar, HD observa o trânsito na avenida, a mancha verde do Parque, o tracejar das pessoas em passos apressados. Ao seu lado, uma campainha. O elevador se abre. Belas mulheres. Trajes discretos, é verdade, pouco femininos. Exceto por uma, mais sedutora, com um vestido e sandálias. Gestos contidos e olhares cordiais, mas distantes. Diríamos que a média de tal amostragem é de cinco a seis mulheres em grupos de dez. as mulheres ocupam todos os espaços.

Flávio se apresenta a recepcionista, com uma troca de sorrisos, e são conduzidos por um corredor. Eis a porta da Diretoria. Fechada, austera, afastada, faltando apenas a placa “Afastem-se, subalternos”, uma secretária (ou mais do que uma secretária) atende os recém-chegados. Loira, alta, elegante e outras adjetivações. É só o que HD conseguiu pensar. O Diretor estava ocupado. Sem problemas.

Flávio compreendia. - Mas eis o meu amigo. Aqui o Curriculum. Outros documentos. Obrigado pela atenção.

Depois, novamente pelas escadas, animados e confiantes, trocam comentários sobre a loira, alta, elegante, e outros adjetivos, que desconfiam ser mais do que uma secretária. Flávio tece seus planos para a compra de um apartamento, de um carro de renome. Todo um luxo que idealiza. Tenta contagiar HD com suas ambições. Quem sabe até possa dividir o flat com o amigo Hector?

HD agradece, mas além de pensar se a secretária é mesmo só secretária, está preocupado se será mais do que apenas outro candidato.




Mas HD conseguiu o emprego. Auxiliar Administrativo no Departamento de Recursos Humanos. Dentro da Máquina. Do outro lado do Espelho. E sob as ordens diretas da Rainha de Copas, digo, do Gerente de Pessoal.

Vamos aqui cognominá-lo “Olhos-de-Lince”, tal o encontramos na perspectiva de HD, a ressaltar o seu cuidado obsessivo com detalhes. Moreno, alto, muito cordial (por dever profissional), com gracejos fora de moda, mas sedutor para as mulheres, o Olhos-de-Lince adora nutrir-se da humilhação alheia, obviamente a humilhação dos subalternos. Não dispensa, contudo, humilhar os candidatos. Não realizava as entrevistas. Disso a psicóloga cuidava. Psicóloga a ser justamente a loira, alta, elegante, etc, que não é realmente a secretária, mas Assessora. Contudo, o Gerente é quem seleciona os currículos. E ali HD a lembrar, naquele covil de lobos, que quando ele, pobre ovelha, andava de agência em agência de empregos, mofando nas filas com um currículo ns mãos.

Quando encontrava currículos sobre a sua mesa, sempre congestionado, o Gerente nem sequer folheava, apenas, mostrando-os à HD, “Olha o que eu faço com essa papelada desqualificada”, e jogava tudo no cesto do lixo.

- Ora, se eu precisar de alguém aqui, por que empregaria estes desqualificados? Vou trazer é o meu sobrinho, que é bom técnico. Ou então o meu filho, na faculdade...

E depois começava a arrumar o ambiente, onde passaria sua vidinha até às dezessete horas. Entrava na sala do escritório, paletó a tiracolo, afrouxando a gravata, deixando a maleta na cadeira. Ligava o ar-condicionado. Abria as cortinas, arrumando uns bibelôs numa estante sobre o arquivo, de onde tirava uma pasta obesa de relatórios e mais currículos, e espalhava tudo sobre a mesa, ligando o computador, conferindo as horas, embolando papéis e tirando-os na lixeira.
Depois tirava o conteúdo da maleta. Acomodava-os também sobre a mesa (como encontrava espaço?), afastava o relógio (em formato de pirâmide), o calendário, a caixa de clipes, o porta-canetas, o laptop.

Ajustava aos poucos o escritório à sua vontade, estendia cuidadosamente sua personalidade metódica ao ambiente, profanado pelas mãos da faxineira. Só depois é que se apercebia da presença de HD, ali junto a porta e, convidando-o para se sentar, passava-lhe as instruções para o dia. Era gentil e não modificava o tom de voz, apesar dos olhares de superior (ou talvez por isso). Gentil, mas profissionalmente. Não havia interesse pelo que HD pudesse pensar, pouco lhe importava. Nada indagava sobre a vida do estudante. Saudações estritamente profissionais. Aliás, “Sejamos profissionais” era o seu grande lema. Ele tolerava HD, e não o oposto. Mas HD era dotado de bom senso e não replicava. A nota tudo rapidamente e cinco minutos depois já está no Arquivo.




Conversam sobre o segundo mandato do Sociólogo da Sorbonne. Flávio, novamente em suas caminhadas, “para manter a forma, meu velho”, deixara o carro na garagem. HD comenta, exaltado, as notícias dos bastidores da Reeleição. Quem diria o nosso Sartre nessa.

- E o racha dos moderados? E o vexame dos governistas?

- Bem, sobre essa política, eu ainda preciso me informar, eu estou ainda na política teórica, na Política, de Platão...

Flávio se desculpava, lembrando das aulas do Ciclo Básico e o excesso de teoria, mas conhecia de política tanto quanto HD, se não mais. E na política mesmo. O pai era amigo (“de longa data”, ressalta) de um vereador.

Caminham rumo ao crepúsculo iminente, e Flávio resolve tirar uma grana num caixa eletrônico, logo ali na esquina. Mas a máquina está em manutenção.

- Pô, logo agora! Levantei com o pé esquerdo hoje!

- Interessante, isso!

- O quê? Que eu esteja com azar?

- Não, não. Interessante essa sua tendência a singularizar os infortúnios, do tipo “Acontece logo comigo”! Afinal, todos os que passarem por aqui, e precisarem do caixa, terão o mesmo problema.

- É mesmo! Tem razão.

- E caixas eletrônicos funcionam 24 horas e não exigem reposição salarial.

Ambos exibem sorrisos irônicos. Mas HD ainda não terminou.

- Igual à minha tia. Vivia resmungando que eu não consigo emprego, que nada dá certo pra mim, que há uma maldição na minha vida. Agora, pense, amaldiçoado, eu? Só se for eu e mais 20 por cento da população economicamente ativa! Só mesmo um exorcismo, um descarrego coletivo! Confissões coletivas iguais aquelas do Walesa do Solidariedade!

Flávio até já se esquecia de seus infortúnios, enquanto assistia o nosso HD empolgado.

- Se eu singularizar o problema (ao contrário de analisar a estrutura) eu me alieno da luta coletiva, já que muitos são atingidos e, somente com a união de todos, pode-se reivindicar uma solução, à nível estrutural. – HD estendia seus gestos a todo o quarteirão, a todo o mundo. Cada dona-de-casa que passava, cada pedestre a cuidar de seus interesses, cada profissional a vender o seu tempo, curto tempo de existência. – Se cada um imaginar que a maldição é problema apenas dele mesmo, cada um arruma um paliativo ou conforto, igreja ou mercado negro, e nunca se forma uma mobilização social.

- Ou seja, “Desempregados do mundo, uni-vos!”


continua...



LdeM

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