Sintonizar o radinho na freqüência AM noite adentro é como viajar no tempo. Essas chansons de amour, esses boleros , pérolas da geração disco, clássicos de Sinatra, ou dos Beatles, ao lado de Carlos Gardel, Erasmo e Roberto, Mutantes, quando não as viagens de um Pink Floyd, ou ao lado de Emerson, Lake and Palmer, nas viagens de um Yes, “Soon oh soon the light...”
Inumeráveis outros. Por que toda essa nostalgia que o invade? Ali no quarto, ouvindo o roncar do velho estudante perseguido e torturado, enquanto o olhar segue o brilho insinuante dos faróis, que passeiam no teto, atravessando foscas vidraças.
Por que toda essa nostalgia? Pois se vivera algo dos anos setenta fora dentro de um confortável útero. Um fã da jovem guarda imerso em líquido amniótico?
“Minha terra tem palmeiras”, versos de Gonçalves Dias, que HD declamava para si mesmo enquanto atravessa o Viaduto Santa Teresa, observando o Parque Municipal à sua direita, antes de transpor o Sena belorizontino, que não passa de um caudaloso esgotão confinado meio ao concreto e o asfalto.
Claro, há também os pingos de luz nos edifícios de vidro, ou os contornos, as curvas sensuais da Serra do Curral, ou os arcos de concreto sobre a linha férrea, E imaginar que o Drummond ousava escalar, e a Estação Ferroviária, à esquerda, ou o galpão da Serraria, a febril construção da cidade audaciosamente planejada.
Cinderelas passeiam pela ampla avenida Chateaubriand, diante do teatro Alterosa, na maré de sorrisos de batom e gracejos de sereias, enquanto anúncios de néon se refletem nas varandas das modestas casas de traços tradicionais, Mestres-de-obra construíam suas casas ao longo dos anos vinte, sendo então abordado por criaturas sensuais com olhares de promessas, estas mocinhas de unhas esmaltadas, Por gentileza, eu gostaria de, mas as respostas pouco gentis afugentam sua audácia,E tão acima de minhas posses.
No entanto, é preciso dizer, naquele coração jovem não há lugar para mágoas, e HD desceu rumo a Contorno, aquela avenida que abraça a cidade, e se perdeu em ruas estreitas, com antigos calçamentos, com os muros cobertos de trepadeiras, e singelos muros baixos exibindo alpendres ao estilo lusitano. Casas erguidas à seis, sete décadas, feridas pelas asperidades do tempo.
Admirando a passagem do tempo (numa penumbra de túnel do tempo) nosso HD fazia sua tour pelos bairros tradicionais, onde os botecos nas esquinas são ponto de encontro para os talentos, onde os amigos de velha data, com seus semblantes grisalhos, podem trocar impressão sobre o mesmíssimo túnel do tempo.
- O senhor saberia...
Não, o senhor não sabia. O Clube da Esquina existia em cada esquina. Era inútil procurar uma esquina específica.
Passou diante de varandas tímidas, e sobrados de reforma recente, daquele casario de porta em plena calçada, com botecos vazios ou lojas de doces ou produtos da roça, quando não uma reformadora de sofás.
Grandes casas com jardins sossegados, indefesas sem muros ou grades, deslocados no mundo da violência, expondo seus corpos num tempo congelado, até saudosas dos trilhos dos bondes, serpenteando nos limites dos subúrbios. Saudosos subúrbios.
Um som ritmado e pesado de percussão alcançou-o numa esquina. Viu o casarão, amplo jardim, botões rubros além das grades com pontas em volteios de flor de lis, e suas luzes apagadas, exceto em uma janela.
No bairro, onde se respira música (seja a popular ou a agressiva), alguém ensaiava um solo de bateria. Numa marcação pesada de pausada, em som sombrio e denso. Um ritmo semelhante aos remos em ação numa galé romana, uma melodia ainda sob a mão severa a espancar a pele dos tambores.
Na placa, Rua Mármore, um reflexo de farol. Duas estudantes cruzaram seu caminho. Percebe os uniformes, mas não o símbolo do colégio. Logo, surgindo de uma esquina, dois sujeitos de roupas escuras. Um carregando um estojo com formato de violão. Os vultos seguiam a sua frente, na outra calçada. As estudantes, a sua frente. Uma porta iluminada de um bar. O olhar adentra e encontra um relógio de parede a marcar sete horas.
As garotas desceram uma rua, e HD saiu na praça. Os bares e a discoteca. A imponência pálida da matriz. O colégio militar. Outros jovens vestidos de luto, ou exibindo cabelos coloridos, transitam entre melodias díspares, enquanto um grupo, ao redor de um mulato com violão, relembram sambas populares, do outro lado da praça, um carro equipado com um som escandaloso a exclamar impropérios contra a triste existência.
Retornando, encontra os mesmos sujeitos soturnos de antes, um deles a parecer-lhe familiar. Um ar melancólico de poeta mal-do-século. E HD não pode deixar de notar que eles adentram o sinistro sobrado de onde fluía o peso da bateria, numa escala de golpes regulares. Alguém se aquecendo para um espancamento.
Viu-se na contorno e desceu rumo ao Santa Efigênia, cruzando novamente sobre o ribeirão fétido. Está na avenida Brasil, no sentido Praça da Liberdade. O tilintar dos copos numa churrascaria, um par de pernas a descer de um carro importado, ou a risada provocante de uma jovem enlaçada pelo ardente companheiro, ou a promessa cantante nos anúncios com olhares e sorrisos.
Diante de lojas de vinhos, padarias com infindas delícias, lojas de modas com suas vitrines, aromas sedutores de cafés e pizzarias. Guardas, vigias e manobristas. Policiais fardados. Arapongas em disfarces. De súbito, um mendigo enrolado sob uma marquise, ou um catador de papel e sua carroça grotesca.
- A vida em suas várias formas.
Ouve a própria voz destacar-se acima de buzinas e goles de chope. Nas portas dos hotéis, porteiros sisudos e elegantes recepcionam as madames saídas de automóveis faustosos, amparadas por gentis motoristas. Nas calçadas se entulham mesas e cadeiras, e amigos e abraços. Algum dia, com um emprego e uma carreira, eu terei amigos que me encontrem sob essas árvores e me convidem para uma cerveja? E realmente uma voz sobressai, a exigir um chope. Trabalharei para que, tendo um carro, possa dar generosas gorjetas aos manobristas?
Na praça Tiradentes há tão-somente uma estátua. O vulto do enforcado. Havia navalha na prisão? Ele é o nosso Cristo republicano? Observa a estátua e murmura, “Se você voltasse, Alferes, eles te enforcariam de novo” meio ao rumor da avenida Afonso Pena, que subia do centrão rumo a serra, registra mentalmente a solidão dos bancos, a ausência dosa amantes e seus beijos, os saudosos namorados agora amedrontados.
A vida noturna continuava do outro lado. Mais diversão, com empresários deixando seus escritórios, burocratas evadindo-se das repartições, balconistas emergindo das lojas, garotas de programa assediando os bares. Cada um na sua vidinha, e abaixo os arrivistas?
Novos pratos nos restaurantes, novos sabores nas pizzarias, novas posições nos motéis, novos escândalos nos inferninhos. Uma infante noite dadivosa, para os amantes do prazer e do desperdício, tanto par os manobristas quanto para os ricaços, tanto para os garçons como para seu clientes, tanto para as damas da noite quanto para meus parceiros. A burguesia já não foi, tempos outrora, uma arrivista?
Mais bares, restaurantes, pizzarias, motéis, inferninhos, boates, na regurgitação da vida noturna, na efervescência da Savassi, promessas de prazer e luxúria até a náusea.
O edifício ondulado de Niemeyer meio à silhueta das palmeiras da praça. Algum evento atrai curiosos passantes até o coreto. O palácio impera após outra reforma. Sentinelas atentas em suas poses de autoridade meio às estátuas gregas do jardim.
HD preferiu unir-se sedentários em seus coopers vespertinos, entre rosas vermelhas e chafarizes, entre juras de amor e bocejos de tédio.
Em suas viagens literárias sobre as Grandes Navegações, HD acabou descobrindo Fernando Pessoa. “navegadores antigos tinham uma frase gloriosa: ‘ navegar é preciso; viver não é preciso.’ ”
Obviamente já lera versos do lusitano. Isso no colégio. Mas era parte do dever escolar, não descoberta. Já folheara Camões, “As armas e os barões assinalados, Que da Ocidental praia Lusitana...”, já ler a carta do Caminha, “e neste dia, a hora de véspera, houvemos vista de terra, isto é, primeiramente d’um grande monte...”, fora os famosos Robinson Crusoé, Ilha do Tesouro e Capitão Háteras.
Em “Mensagem”, único volume de poemas de Pessoa, impresso em vida, HD encontrara, na Segunda Parte, intitulada “Mar Portuguez”, uma quadra, “V. Epitáfio de Bartolomeu Dias”, “Jaz aqui, na pequena praia extrema, O Capitão do Fim. Dobrado o Assombro, O Mar é o mesmo: já ninguém o tema! Atlas, mostra alto o mundo no seu ombro.”, e rodeado de outros ilustres, “VIII. Fernão de Magalhães”, “IX. Ascensão de Vasco da Gama” e “X.Mar Portuguez”, “Ó Mar Salgado...”, e foi descobrir que aquele outro “Dias” fora um navegador português, nascido não se sabe quando, e que zarpou do Tejo em 1487 e não conseguiu dobrar o cabo na extremidade sul da África, chamado, por ele, de “O Cabo das Tormentas”, ou “Tormentório”, ou ainda, “Tormentoso”. Isso em 1488, pois no ano seguinte, o famoso Vasco da Gama passa o local e, vencedor, rebatiza-o “Cabo da Boa Esperança”, o “Good Hope” atual. Sabe-se que Bartolomeu Dias, quiçá ancestral ilustre, morreu em 29 de maio de 1500, na frota de Cabral, o Pedro Álvares Cabral que mês antes, dizem, descobriu a “Terra de Santa Cruz”, o atual “Brasil”, pois no mesmo Cabo a Esperança não foi a última a morrer, e o encontramos, o ancestral Dias, no Canto V de Os Lusíadas, do grande Camões, quando trata do medonho gigante Adamastor, e o “Cabo da Volta”, no sul da África do Sul, hoje, chama-se “Diaz Point”.
Mas quando ele leu, “Quem quer passar além do Bojador Tem que passar além da dor,”, finalmente entendeu o que seria espírito de aventura. O jogar-se ao mar numa casca de noz. Difícil para ele entender, afinal era um montanhês, e o único mar que o cercava era o mar de morros.
Mas a onda que realmente arrastava o seu coração era aquela dos estudantes pelas ruas de Paris. Até porque era o assunto do momento. E Fred (dito Mutantes) não perdia a oportunidade de mencionar casos da época, o Maio de 68 que ainda não terminara.
- Mas as passeatas no Rio não eram menores. – após comentários sobre as manifestações na Espanha, Bélgica, Itália e Estados Unidos – E as forças de segurança apresentavam toda a sua delicadeza. Eu não estava lá, mas conheci duas estudantes de lá.
Juventude fremente. Sem ideologias? Só Hormônios? Intelectuais cúmplices ou vítimas?, HD pensava, rabiscando folhas e folhas. Mas Fred não concedia pausas para questões.
- Você acha que todo mundo lia Marcuse? Não, cada louco com sua loucura.muito desencontro. Ou então conjugavam existencialismo e o culto a Mão. Um casal “flower power” distribuindo panfletos para o Partidão. Coisas assim. Fora os filhinhos-de-papai, tudo reacionário-cuzão, que delatavam colegas declarados subversivos.
Mas a classe média era simpatizante. E intelectuais apoiavam os estudantes. Gente de militância é que se convertia à reação e delatava. Fora que em revoltas em líderes nem.
- Aí a Bete, a que eu comia na época, ficava falando em drogas e tal, mas era comum. Era aceitável. Igual fumar estes caretas hoje em dia, “um hollywood para o meu sucesso”, entende, cara?
Mas HD entendia, e enchia cadernos de perguntas irrespondíveis. E que miséria! Ele não estava lá! Alegria, alegria, ser surrado!
continua...
LdeM
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