sábado, 17 de abril de 2010

Náuseas de Estudante - cap. 2 (final)

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Acostumou-se a apresentar-se “Hector Dias, à sua disposição” ou apenas “Hector. Muito prazer”, muito antes que começasse a ser chamado de “HD”, por amigos de faculdade, literatos suspeitos e gente do meio cultural. Vez ou outra, “Hobsbawn”, por gracejo de Flávio Toledo, leitor do historiador inglês.

Isso porque HD descobrira que seu extenso nome era motivo de olhares e sorrisos de mofa,por soar pomposo, a evocar personalidades literárias, em comentários semi-eruditos, de gosto duvidoso, em curiosidade quanto ao parentesco e etimologias.

- Outro parente dos Guimarães!

- “És filho de uma pisadela e de um beliscão

- Espero que ele não encontre um Aquiles.

E ele se deixava a lembrar de Hektor, “o que segura firmemente”, perseguido três vezes em volta da cidade de Ílion, ou Tróia, como comumente conhecida. Cena de “A Ilíada”, de Homero que ele lera em tradução duvidosa (antes de ler a do Haroldo de Campos, tempos depois), “Canto, ó Deusa, a ira de Aquiles...”, que vai se vingar da morte de seu amigo Pátroclo, morto por Hektor, que HD reconhecera num certo quadro (ou escultura?) do dinamarquês Bertel Thorwaldsen, “Heitor despedindo-se de Andrômaca”, onde Hektor ergue nos braços um bebê, ao lado de sua esposa Andrômaca, atendidos por uma serva prestativa, e sob o olhar de um soldado, com arco e escudo, de prontidão, à espera do oficial. Então, na famosa guerra, Hektor é morto por Aquiles (aquele só vulnerável no tendão do pé), que arrasta o corpo do troiano, atado ao seu carro de combate, ao redor das muralhas da cidade sitiada (e depois incendiada,por astúcia de Ulisses e seu cavalo de Tróia), enquanto o rei Príamo, de Tróia, roga ao guerreiro grego que dê sepultamento digno a seu filho, “Canta a bravura e a magnanimidade de Aquiles, filho de Peleu...”

Ou então pensava no maestro tupiniquim, Heitor Villa-Lobos, e deitava-se a ouvir aquelas tropicais Bachianas, e outras composições, das quais ouço entendia, pois seu forte nunca foi (nem será) a música, e pensava na Semana de Arte Moderna de 22, e um maestro entrando de chinelas com sua cabeleira revolta à la Beethoven, algo assim.

E aquela referência aos Guimarães? Certamente os escritores, a serem sempre lembrados, desde o remoto autor de “Escrava Isaura”, Bernardo Guimarães, com a bela escrava e o mocinho abolicionista, de Ouro Preto, terra de outro, parente certamente, o poeta simbolista Alphonsus de Guimaraens, “Pobre Alphonsus, pobre Alphonsus”, na verdade, e isso HD descobriu depois, Afonso Henriques da Costa Guimarães, claro, claro, até chegar ao regionalista pós-moderno místico-linguístico, João Guimarães Rosa, natural de Cordisburgo, célebre autor de “Grande Sertão:Veredas”, onde Riobaldo narra suas aventuras enquanto o diabo rodopia num redemoinho.

Quando não inventavam de comentar seu parentesco com Gonçalves Dias (pois de Bartolomeu Dias ninguém mais se lembra...), com aquela de “Meu canto de morte Guerreiros ouvi : Sou filho das selvas, Nas selvas cresci; ”, a esquecerem que o poeta romântico era do Maranhão, e se parentesco havia, advinha de terras portuguesas. Aliás, as terras de um Almeida Garrett, aquele fã de Camões, como bom português que é, ou era, pois morrera em meados do século 19, celebrizado por sua obra “Viagens na Minha Terra”, parodiando alguém que viajava ao redor do próprio quarto, certamente um francês, possivelmente um antecessor de Proust, que gasta trinta páginas para descrever-se ao despertar.

- “És filho de uma pisadela e de um beliscão

- “ A ciência, se fôssemos eternos, inventaria a morte

Eram assim que surgiam as citações. Do nada. Transitando entre leituras, compartilhando versos e impressões, alguém lembrava então do Manual Antônio de Almeida, aquele na transição romantismo para realismo, ou do poeta Guilherme de Almeida, ali entre os parnasianos tardios e os modernistas, “entre os passadistas e os andradistas”, ironizava uma professora, do alto de sua cátedra, fazendo imprimir sonetos para o próprio deleite, enquanto HD se esforçava no Português Instrumental, preocupadíssimo com futuras monografias.

E de onde, esse autor de “Memórias de um Sargento de Milícias”, um carioca de escrita lusa falando de lusitanos com fala brasileira? Escrevia realismo popular anti-romântico? Ou nada mais pretendia do que um humor caricatural? Está certo que a fala popular ali está, bem antes que tivéssemos um Graciliano ou um Guimarães Rosa, mas pretende retratar ou ironizar? Ou ambos os propósitos?

E quanto ao poeta, dos interiores paulistas, com seu texto “Esta vida”, pouco se referiam, talvez por real despreparo, vergonhosa ignorância, como se Guilherme de Almeida não passasse de um vulto à sombra dos Andrades, ou os indecisos da Semana de 22, que sorriam aos “sapos tanoeiros” mas ainda não aderidos ao “pau-brasil”, tremendo antes de usar um “me dê um cigarro”, que coisa mais bárbara! Mas o poeta não se preocupa em violentar a língua, mas em amá-la e fertiliza-la, em orgasmos líricos, eis o que HD se permitia pensar, ousando odes para as pernas das futuras calouras, ninfas ansiosas nas ondas turbulentas dos vestibulares, e quem disse que sobrava tempo para folhear antologias poéticas? Nem Guilherme, nem Menotti, nem Bandeira, nem ninguém, não há tempo para a poesia.

Mas um dia haveria.

- “Não tinham sexo, nem idade, nem condição humana. Eram os retirantes. Nada mais.”

Havia lido o romance “A Bagaceira”, de José Américo de Almeida, talvez um parente, lá na distante Paraíba, com o seu nome assinalando a interface entre realismo e modernismo, com o desaguar de uma vertente nova, a saber, o Regionalismo. Onde os sertões aparecem como cenário, como já se sentia desde o Euclides da Cunha, com seu soberbo Antonio Conselheiro, “O sertanejo é, antes de tudo, um forte”, mas também folheara um místico “Canaã”, lírico e germanófilo, de Graça Aranha, aquele que pulara para o lado dos modernistas, Mas o que havia na Bagaceira do tal Almeida? Ora, uma faísca de ignição! Estava ali o beabá que engendraria o vocabulário de uma Rachel, em “O Quinze”, onde retirantes e paisagens se confundem, onde homens se arrastam e animais se humanizam. E o fluxo até o mar de um grande sertão, aqueles das veredas de um tal Riobaldo, atravessado por um médico sobre uma mula, a colher anotações sobre o dito e não-escrito, até descobrir que a literatura estava no desfazer-se da literatura, tal percebera um certo Paulo Honorário (o protagonista de “São Bernardo”, outro romance do Graciliano) que escreve como se fala, após dispensar os amigos com suas literatices neo-camonianas e jargões eclesiásticos, a imaginarem que vivemos ainda o século do Padre Vieira, com seus floreados e rebusques barrocos, que Deus o tenha! Mas talvez o outro Guimarães, o seu outro parente, O Rosa, tivesse mesmo uma certa intenção oculta, a mesma do Conselheiro, a de inundar o sertão, não de águas, mas de palavras, para fazer frutificar a fala na terra de vazios.

Até que alguma engraçadinha se aproximava, geralmente com um livro debaixo do braço, e vez ou outra, usando óculos.

- Isto não é um nome! É uma aula de literatura!




Outra segunda-feira, desta vez uma daquelas acizentadas, de céu desabado e pesando sobre os ombros, e encontramos HD em sua peregrinação por agências de recursos humanos, onde estão, como sempre estiveram, e sempre estarão, os conhecidos representantes da academicamente denominada “reserva de mão-de-obra”.

A procura de empregos, ou vagas para estágios, os jovens se acotovelam diante de uma dezena de folhas tamanho ofício onde estão listadas as vagas,os cargos e as exigências, tudo o que é possível ao mercado de trabalho ofertar aos que se perdem aos que se perdem em andanças vãs de agência em agência, o dia todo, na distribuição generosa e (onerosa) de currículos, cuidadosamente envelopados, ao custo de cinqüenta centavos a unidade. Imaginem o gasto mensal de um candidatos às vagas disponíveis.

E isto quando não compram uma listagem de agências da região, que aquele gentil e simpático jovem vende a porta de uma ou outra agência, após cuidadosa sondagem das localizações e vantagens de cada uma.

- Podem confiar. Fui em cada uma. Afinal, eu também estou à procura de emprego.

Mas HD, após se assegurar de sua senha, acomoda-se no corredor e abre o volume que tem em mãos, a saber, um romance alemão, escrito por Remarque, intitulado “Nada de Novo no Front”, não exatamente uma leitura otimista, para o dia e a semana que ora se inicia, mas ele não perde tempo com certos autores de auto-ajuda disfarçada em literatura de alto-nível, pelo menos no que consta vendagem e prêmios (ditos) literários.

O romance expõe o cotidiano patético de recrutas e soldados no cenário grotesco das trincheiras da Primeira Grande Guerra, onde nada encontramos daquele heroísmo tão presente em propagandas para recrutar “carne pra canhão”. E Remarque obviamente foi perseguido pela burocracia militarista prussiana, mas não é o que nos interessa agora.

- Experiência na área, rapaz? – pergunta um atendente ao jovem imediatamente ao lado de HD. Um jovem que lê um caderno do jornal do Estado, possivelmente a página de Esportes.

- Seis meses na solda, e um ano na prensa hidráulica.

- Há uma vaga para uma indústria de Contagem. Posso ver a sua carteira?

O rapaz, ao lado de HD (ali atento à leitura, mas sempre incomodado) levanta-se e passa os documentos ao atendente, que o conduz ao longo do corredor, onde desaparecem em uma das tantas portas. Um abafado som de porta a se fechar.

Mas HD está em plena trincheira entre a França e a Alemanha, e acata ordens de matar ou morrer, quando jovens recrutas são entregues ao pesadelo sob medonho ataque de infantaria e artilharia, num surreal chuva de granadas e morteiros.

Nada mais que o absurdo da guerra, ele pensa. Um exército de anseios jovens a lutarem por um palmo de chão, numa floresta escura, sem carícias ou amor de mãe, “o senhor da guerra não gosta de crianças”, diz a canção, e, aqui, todo um “exército de mão de obra” que se forma, não numa guerra que envolve armamentos, mas numa guerra social de “salve-se quem puder, quem for capaz” e dane-se os demais. Não há vagas para todos, e, no entanto, as páginas de Empregos (nos jornais) continuam lotadas. Ficamos nós aqui,mãos nos bolsos, e eles lá,os empresários, sem funcionários,ou sobrecarregando os que há trabalham.

Um “exército de mão-de-obra” que se forma, principalmente no inchaço das periferias, com todo esse excesso populacional, e lembra-se da sua palestra sobre Malthus, e no horror que seria, se tal é possível!, uma guerra em grande proporção, justamente para diminuir a população masculina desempregada, responsável por índices alarmantes de violência!, e que tal uma convocação em massa, onde os desempregados seriam os primeiros a serem convocados?

- Senha 43.

- Ei, moço, não será a sua? – diz uma senhora, agora ao seu lado.

HD confere o papelote. Um número. “43”. Levanta-se e agradece.




É fato que HD detesta embarcar em ônibus lotado, mas aquela tarde não teve opção.

Chegou na avenida Paraná quando o ônibus já acelerava. Perdera-o por meio minuto! E o lotação (o nome já diz tudo) seguia lotado. E o ponto de espera agregando multidões.

- Olha a pipoca, olha a pipoca!

Um velho manco, mal vestido em sua miséria, apregoa, exibindo um saco com pacotinhos vermelhos, com pipocas doces, manufaturadas. Chegar a essa idade, pobre e miserável pra que? Será isso um castigo? O velho ainda grita outras vezes e depois se afasta, cabisbaixo.

Meninos vendem doces e balas coloridas. Uma bela mulher ajeita o cabelo. Meio ao transito, arrastando uma carroça cheia de papelão dobrado, o vulto de um homem, moreno, suarento, olhar fixo. Um ônibus pára, ruidoso, e s pessoas se acotovelam, empurram. Acelera, mas uma senhora vem correndo. Assobios. O motorista é obrigado a esperar.

Uma estudante chega, driblando os moleques, incomodando os passantes com sua mochila, mas sem preocupar-se. Encosta-se ao mar de parada e deixa-se ficar alheia. HD finge ler os números das linhas de ônibus e observa a figura da estudante. Mas os lixeiros recolhem as sacolas os entulhos nas calçadas, isso quando não espalham sujeira na pista. Transeuntes seguem em resmungos, e outro vendedor surge.

- Oito pilhas a um real, oito pilhas a um real !

HD, já impaciente, observa as mulheres com suas sacolas de compras e as moças com pastas de plástico, a trazerem um olhar cansado. Disputam o mundo fora de seus lares, pra quê? Muitas seguem para as faculdades, após terem trabalhado o dia todo na avenida, os veículos e suas buzinas torturantes.

Um senhor grisalho, roupa modesta, bem alinhado, sapato engraxado, um sobretudo, cores equilibradas, cinza claro, cinza escurecido. O fato é que ele destoa daquela multidão, um tanto alheio, de mãos nos bolsos, ora passeando o olhar nas curvas das mulheres, ora enumerando mentalmente as janelas iluminadas dos edifícios.

Assobia uma valsinha, um tango, olha as mulheres, meio à multidão o único ser que parece ser ele mesmo. Nada de conferir se ônibus vem, ou se acotovelar meio à multidão. Aproxima-se de HD, sem notar seus olhares. Seu perfume é leve, discreto. Seu olhar traz a esperança de um prazer vindouro. Certamente pretende encontrar-se com a amante. E desliza os dedos nos cabelos (ainda fartos), alisando, alinhando. Aconchega o sobretudo ao corpo, cruza os braços. Parece apaixonado por si mesmo.

Aparece um menino à procura de latinhas de refri ou garrafas descartáveis, e para isso segue revirando o lixo ainda não recolhido. Afasta-se quando os lixeiros chegam frenéticos.

O olhar de HD volta-se para o senhor grisalho. Seu vulto meio à fumaça do cigarro. Tranqüilo, solta a fumaça com prazer, a cabeça voltada para trás. Olhos fechados, entregue a um instante de gozo.

Mas ao lado de HD outra presença. Um senhor um tanto mais idoso, com a pele tostada pelo sol, com uma certa ascendência sertaneja. O homem distribui atenção quando uma senhora e sua criança de colo aproximam-se. A mulher não é bela, e sua criança, uma menininha de uns três anos, insiste exigindo algo, talvez uma bala. Aí aparece um outro senhor, de ar cansado, com um chapéu branco, estilo country, uma certa timidez rural, justamente a oferecer balas, além de isqueiros e espelhos.

O senhor, junto a mulher com a criança, aborda o vendedor e compra um pacotinho de balas. Os olhos da menininha brilham. Ela nem sabe como agradecer. A mãe sorri, muito grata. O vendedor alega não ter troco, então o generoso vai até a mercearia da esquina a fim de trocar a nota. Retorna e paga o vendedor. Dívida saldada, os dois homens estão de prosa. Parece que ambos desceram do Vale do Jequitinhonha ou arredores. Comentam, com familiaridade, os causos da região. O senhor de chapéu louva Nossa Senhora e diz perambular por Belorizonte por uns dois anos. O outro alega estar na Capital quase a uns dez. comentam raras mudanças de prefeitos, feitos de coronéis, ameaças de secas e festivas novenas. O vendedor tira o chapéu, e m saudação e se vai na noite.

O homem não encontra um trabalho digno no campo, na produção necessária de alimentos, e vem para a cidade, sujeitar-se a uma atividade indigna. Quem então produzirá os alimentos para a Capital? Pobres seres errantes que abandonam tudo para rastejarem supérfluos num meio urbano caótico, que exclui os próprios urbanóides! Se a cidade já é estressante para quem aqui nasceu, imagine para quem chega advindo do meio rural !

Mas outras figuras já desfilam. Uma senhora evangélica (identificável por sua Bíblia) de longos cabelos enrolados, e longo vestido, olha incomodada para uma mulher em plena forma a passear atraindo os olhares masculinos. A sensual figura aconchega-se ao orelhão, mudando o foco da atenção. HD não pode deixar de admirar as curvas suaves, as coxas firmes, isso até aparecer outra, de vestido curto, ainda mais sensual, com suas pernas à mostra, sapatilhas de vermelho claro, de beleza loira, e um pouco mais esguia que aquela ao orelhão.

O homem grisalho de paletó continua a soltar suas espirais de fumo. Dois trabalhadores da construção civil aparecem – roupas gastas, bonés com mascotes de times, cada um com sua mochila, onde chocalha uma marmita, e, pedindo fogo, acendem seus cigarros com os dedos grossos, algo ressequidos.

Um convida o outro para um gole, mas o outro recusa, lembrando do turno “manhã cedinho”. Decepção do outro, o que oferece a rodada, pois possivelmente terá folga. Falam sobre a obra, “você vai vê, ele vão ter de derrubar aquela parede e fazer tudo de novo.” Uma moça de aspecto humilde, ao lado, ouve atenta a conversa. “Quem disse que estava fora de prumo? É que fizeram tudo às pressas.” A moça então sorri ao que terá folga, perguntando sobre a obra, pois o marido dela está sem emprego, e o que vai trabalhar no dia seguinte suspira, “ruim é ficar sem trabalho.” A moça concorda, ar triste, “É, pra vocês homens deve ser mesmo difícil. Ficar sem trabalhar...”, e o outro, “É muito ruim, parece até cansar mais.”

Comentam o cansaço, s poucas folgas. Mas que é pior ficar sem emprego. HD percebe, colhendo os fragmentos, que a moça é uma balconista ali daquelas lojas de departamentos, e logo chega uma colega., provavelmente seguindo para a faculdade, pois reclama do cansaço, e agora ter que “encarar uma aula chatérrima”. Os operários comentam que “o bom de estudar é ter bom trabalho, bom emprego”.

- Ah, se eu tivesse de estudado não ‘tava nessa ralando debaixo de sol, batendo massa...

A moça recém-chegada – Mas a gente estuda pega diploma e cadê o trabalho? Paga trezentos contos de faculdade e aí se não pegar três turnos nem compensa o esforço todo.

Um professor ganhando miséria - a outra moça diz – tempão estudando, noite adentro. ‘Cê veja a minha irmã, professora de Geografia, agora uns quatro anos depois de formada é que recebe o dobro do que pagava na faculdade.

Agressivamente apregoando suas mercadorias supérfluas, um vendedor interrompe o diálogo. Pilhas, espelhinhos, fitas adesivas. A mulher continua ao orelhão, a outra mastiga pipocas doces, sob o holofote dos faróis. O senhor de paletó, que HD imagina ser um poeta (por que não?), a viver naquelas muitas pensões ali por perto, indo agora encontrar-se com a amada. Homem maduro em busca de um amor calmo, ou então o abraço jovem e fogoso de uma puta. Este homem joga fora o cigarro, ao perceber que seu ônibus se aproxima, e entra tranqüilo, após esperar que todos embarquem. Ninguém a incomodá-lo, a amarrotar sua roupa alinhada. Um homem não exatamente vaidoso, mas digno.

A bela jovem com o pacote de pipocas possivelmente embarcara, e a mulher ao telefone senta-se agora ao lado dos pedreiros. Um deles, o que terá folga amanhã, ousa puxar assunto, mas ela nem atenção, e uma loira surge ao lado de HD, preocupado com a demora do coletivo, assediado por outro vendedor (outro!) oferecendo amendoim torrado em pacotinhos cônicos enfiados numa lata cheia de brasas. Ninguém lhe dá atenção. “Olha o amendoim torrado!”

Novo ônibus, outros que embarcam, outros que descem, ali só a balconista com jeito de estudante. Aproxima-se um cego, com sua varinha diante de si. Ao lado de HD, alguém indaga, “Ei, amigo, vai em qual ônibus?” O cego responde digno, “Qualquer um que siga até a Pampulha.

Surge o ônibus que serve à Universidade Federal. Ajudam o cego a subir, acomodando-o junto a roleta. HD, semelhante ao poeta grisalho, deixa-se ser o último, entre sem empurrões. Ajudaram o cego por piedades, por solidariedade ou por temor de que algo assim poderia acontecer a eles?, este pensamento ocupa sua mente enquanto o lotação (que faz jus ao nome!) segue ruidoso.

Observa o cego. Saberá toda a miséria que o rodeia? Feliz aquele que é cego num mundo de lixões? Mas e todas as estrelas e olhares que ele não pode ver? Melhor poder ver e saber quando fechar os olhos.

Muitos cochilam ao balanço do lotação. Os olhos sempre pesam, e ele, mesmo em pé, sonolento, fecha os olhos para ver melhor. Pensando.





fim do capítulo 2 da Parte 1

LdeM

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