domingo, 7 de março de 2010

Náuseas de Estudante - c1 da p1

.
..
...


- Não. Você não vai gostar.

Darío aprontava-se para sair. Mafra o esperava à porta do quarto.

- A gente vai descer aí por umas boates...

Isso para evitar que HD esboçasse qualquer intenção de acompanhá-los. E faltou advertir que “era hora de menino estar na cama”. Mas HD perdoou o amigo, ao notar seus esgares ébrios.

De fato, e sem detida averiguação, nada sobrara da caipirinha. E da cerveja, só meia dúzia de latinhas.

No problems!”, jogou um colchão junto a parede e adormeceu. Diluída embriaguez sem sonhos.

Um rangido. Um ruído seco. Um duelo de vozes. Na escuridão, um brilho de mínima chama flutuando, intrusos!, um cheiro de fumo. Devia ser alta madrugada. Quanto tempo dormira? O galo não cantou ?

A voz agastada de Darío e a voz solícita, implorante de Mafra. Esquecidos de sua presença, certamente. Deixam-se cair nas camas, do jeito que chegaram. As molas em estalos. O brilho do cigarro parou junto a parede, HD percebeu o par de botas que caiu ao seu lado. Mafra se acomodava ainda atormentando Darío, que jazia calado.

HD ainda ouviu alguns resmungos, mas o sono pesava e.




Foi um longo suspiro. Um profundo resfolegar de um touro bravio.

Então bruscamente arrancado do sono, aconchegou-se, desejando posição mais cômoda – mas somente conseguiu bater com a cabeça. Que espécie de cama era aquela? Onde estava afinal?

Próximo a testa dolorida, pessoas passam. Seguem a carregar pequenos embrulhos, bolsas, sacolas plásticas multicoloridas. Sussurram, abafam risinhos. Luzes se acendem: um estreito corredor! Ei, onde estou? Ele ali engavetado numa poltrona dupla, corpo encolhido, adormecido num ônibus de viagem.

Olhos atentos numa face pálida examinam. Deve ser o motorista. Ele observa o rapaz abraçado a uma almofada.

- Parada final, companheiro.

Ei, dormi a viagem inteira? As outras tantas paradas mergulhado no sono? Atravessando a província todo sonâmbulo? Vagas lembranças: o radinho, a chiar em precária sintonia, o som sumindo, e voltando, em oscilações. O locutor a exaltar um drible perfeito, lance direto numa marcação cerrada, a voz esvaindo-se, fundindo-se ao sonho. Ou a melodia amargurada de um Pink Floyd em sua punhalada final, enquanto solos de guitarra melancolicamente rasgam a noite. E, diante do olhar sonâmbulo, a longa estrada até as estrelas, meio apagadas, assim através das janelas, nas frestas das cortinas. Outra estação: uma canção dos anos setenta, uma sensação nostálgica: ouvira a melodia in utero ? , e o afastamento, uma inquietação, uma saudade de abraço de mãe.

Sim, adormecido. Estrada e noite adentro. Entregue às pálpebras pesadas do motorista, e sua pupila irritada entre os faróis. Desperto somente agora meio a relincho tão irado: o escandaloso freio em expirações derradeiras. Mas quantas vezes não terá rasgado a noite – parada após parada! É imensa, a província! E ele ali aconchegado como um feto, a abraçar uma almofada, a ouvir uma sintonia que é só chiado!

Sim, um sonâmbulo é quem deve ter descido nas outras paradas. Ido aos sanitários, bebido uma água mineral, mastigado uma rosquinha açucarada.

Mas era hora de saltar fora. Foi o que fez, meio alheio, a esfregar as olheiras, a sentir câimbras nas pernas. Agarra a mochila, desliga o chiado dos fones, sobe o zíper da jaqueta. E desce na plataforma – essa névoa, exalações de óleo diesel, esse aroma de café, solícitas vozes meio aos estrondos do freio a ar, essa agitação de malas soturnas, essas promessas de novidade.
É um arrastar-se ali pelo saguão, com exagerada bagagem – a mala de roupas e calçados, a valise de mão com livros e rascunhos, a mochila – a procurar um guarda-volumes. Logo á direita os sanitários: rosto lavado, um pente no cabelo, dentes lixados. Aí então foi experimentar o café da rodoviária – café com leite – e uma rosca açucarada.

Não eram ainda seis horas, e do alvorecer apenas um esboço. Ali sentado, aquecido pela jaqueta, estômago saciado, a dissipar-se a sonolência, as pernas esticadas perdem o torpor. Fones nos ouvidos: um rock’n’roll, um refrão: não pegue esta garrafa, “don’t take this bottle!” Estamos em tempos abstêmios. Lembrai-vos de Al Capone! Mas a atenção passeia através do saguão: chegam outros ônibus – ouve os relinchos lá embaixo, nova maré de malas e valises. Faces sonolentas invadem tudo, disputam cadeiras, conferem bagagens, acorrem aos telefones. E passa um momento – e novo grunhido dos freios, agitações de bolsas coloridas, de mão e mão, senhoras arrumam seus lenços, crianças seguem a cochilar, rapazes apalpam os bolsos, senhores fecham os casacos, alguns reconhecimentos, seguem-se abraços, sorrisos. O sono continua.

As rodoviárias se fundem. Um espreguiçar em mil cidades. O bocejo em todos os lugares. Onde despertara e outros onde jamais estivera. Saguão morno, um casal sem crianças, um vendedor de amendoim torrado. O pai leva a mala, ele compra a passagem, sintoniza uma rádio – e ouve junto aos conselhos uma cantata de viola.

Súbito, ele vê uma cidade adormecida, nas brumas, um café expresso, a aurora vindoura, as curvas das montanhas, o mar de morros! E vê um ser imenso com tentáculos de concreto e eriçados pêlos de metal. E algum lugar o sol surge nas colinas, na névoa, na pupila cansada. O asfalto cobre a relva, os arbustos definham no cimento. Um novo mecanismo!

Uma lenta olhadela ao saguão, e lembrou-se da bagagem. Cabeça baixa, procura na mochila um cupom. Seguiu um raio de luz derramado no ladrilho. Foi aí que realmente esqueceu onde estava.





Uma pancada na porta. HD sentiu-se. Enrolado. Um feto na tepidez das cobertas. A boca seca, um peso na nuca. Outra pancada. Abriu os olhos: sim, agora era mesmo dia. O sol rastejava na parede oposta. Derramava-se pelo cabide, pelo chão. Já flutuava alto, invadia o quarto pela vidraça acima da porta.

Como as pancadas se repetissem, as molas se agitaram. Darío se levantou, ao mesmo tempo que Mafra, escorado à parede. Dário, mais próximo, abriu a porta, os olhos lacrimejantes ao sol.

- Bom dia, colega. Esqueceu o nosso convite?

Darío engolia um bocejo, esfregando as pálpebras já irritadas.

- Pô, Alex, cedo assim! Nem domingo vocês me liberam!



- Ora, Darío, pois domingo mesmo. Dia separado para pensarmos além dos afazeres materiais.

HD, dobrando as cobertas, enrolando o colchão, percebeu do que se tratava. Darío faltara à missa ?

O Mafra já blasfemava: - Ah, vamos dormir, Darío. Despacha esses carolas. Incomodar deus pra quê?

E se enrolou nas cobertas.

Darío não ocultava certa irritação, mas via-se seu constrangimento. Olhava agora para HD, que enxertava o colchão debaixo da cama, onde o fotógrafo novamente ressonava. HD intuiu que Darío pedia uma ajuda para se livrar de um compromisso do qual já se arrependia. E espocaram imagens de um Darío fiel colaborador das comunidades de base, freqüentador da biblioteca paroquial.

- O que é que você andou prometendo, Darío? Você, ovelha desgarrada...

Confabulando, no corredor, com os prosélitos, percebendo que o caso ele mesmo é que devia resolver, Darío logo os despediu.

HD lavava o rosto, na pia minúscula, quando Darío retornou.

- Prometi aparecer no outro domingo.

- Por que tanta atenção com essa gente?

Então, surpreendido, HD sentiu em si a hostilidade vazada nas palavras. Lembrava então o furor sectarista da família de Sônia, oprimindo a menina com uma devoção neurótica.

- Ah, não é grupo entusiasta! Nada de aeróbica do Senhor! O Alex é cuidadoso leitor do Boff.

- Se refere a esquerda católica?

- É. Para atrair o Alex para os nossos estudos marxistas, deixe-me ser atraído para as suas reuniões sócio-devocionais.

Darío preparava o café amargo – pelo visto sua especialidade gastronômica do momento – bocejando, lançando olhadelas às cobertas desfeitas. – Você não liga se eu.

- À vontade. Essas olheiras dão medo. Vou ficar lendo ali no canto.

HD resolvera ir antes ao banheiro – e logo.

(...)

LdeM

Nenhum comentário:

Postar um comentário