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Em cima do telhado, investigando o horizonte, o jogo de sombras das nuvens sobre os picos das serras, dilaceradas por desfiladeiros ? E a curiosidade não morria ali, na manhã seguinte eis que, a mochila nas costas, guarnecida de broa e água, segue as estradinhas de solo árido, engolindo o pó, quando dos cavalos fustigados por peões apressados na lida do dia.
Ele segue, mesmo arfando, pois quer saber, não importa se longe, Mas é um monte ou são duas colinas recortadas por um vale?
Anda o dia inteiro, a refugiar-se vez ou outra sob os arbustos retorcidos, a evocar lembranças e vultos de personagens de romances, a família de Fabiano e suas vidas secas, a sede de vingança de Augusto Matraga, esperando sua hora e vez, ou a tristeza agreste de Chico Bento nas andanças de “O Quinze”. E, ao crepúsculo, ele vê um verdejante vale, ou um véu de chuva ofuscando as plantações de cítricos junto ao Paraopeba. E já é hora de voltar!
Cercado por tendas, onde se confundem o tinir de panelas, o choro de crianças pedindo pão e atenção, o balir de cabras, cães que ladram aos seus passos, homens suarentos que trocam impressões sobre o solo e atmosfera, lua e semeaduras. Segue a estrada de terra, e surgem tendas, umas barracas de plástico escuro, meio as brumas vespertinas. Outros homens perambulam meio aos redemoinhos de poeira. As ruínas de uma casa preservam inscrições numa tabuleta. Fragmentos de vidro cobrem cadeiras quebradas. Uma sala de aula? Mas, onde o professor, onde os alunos? Sobraram apenas algarismos e sílabas.
Os homens caminham a passo moderado, não conversam, observam. Coçam as barbas, empunham armas, protegem os olhos com as abas dos bonés, encaram o além, pisam as pedras do aqui.
Um aroma de fumo quando se aproximam – uma saudação – uma baforada de cigarro rústico. Arrastam-se rumo as barracas que maculam a paisagem. Aquela da terra rachada, crestada ao sol, pouco adornada por arbustos débeis e pedregulhos rudes, mas no limiar do sertão há um açude.
Mulheres se abaixam sob o peso de fardos, ao recolherem roupas que passaram o dia estendidas nos galhos. Ou lavam panelas. Ou lavam os cabelos. Uma kombi velha, ano 79, coberta de lama ressequida, transporta galões de água para o acampamento. Outros camponeses (os camponeses sem terra) acompanham suas mulheres. Seus vultos, meio e poeira, somem numa curva da estrada, para estrada, para ressurgirem de súbito numa elevação do terreno, quase tocando a linha do céu.
A mancha do assentamento se estende aos limites da área rural, donde já se observam casas humildes com seus rebocos em tons de cinza. De pé na colina, na ausência de qualquer grandiosidade de árvores ou mesquinhez de arbustos, apóia a bota nas rugas do horizonte, o mar de morros. Homem das montanhas, em seus poemas não há qualquer referencia ao mar, que ele apenas conhece dos versos de Pablo Neruda.
Pode então sentar-se de encontro a pedra áspera, a descansar em tal ermo a muitas eras, maculada pelo excremento das aves, sob uns galhos tímidos, de arbustos resistentes como os campônios do vale. Povo à espera de terra, esta gente que olha temerosa os cercamentos dos latifúndios. Gritos se insinuam em seus pensamentos. Risos e lamentos de crianças. Muitas correm ao redor das barracas, perseguem os cães ruidosos. Mulheres atarefadas, destampando panelas, agitando tapetes, ajeitando suas misérias. Homens que chegam, sem carinhos, resmungam imprecações, narram o dia.
O fumo a subir das fogueiras esmaece os trilhos dos faróis que se aproximam e se afastam nos volteios das estradas. Nos limites da cidade, nas barracas dos assentamentos, na orla do vale, nos confins da penumbra, almas em desassossego temem um confronto. “A terra que querias ver dividida” é pouca para ocultar o sangue.
Na noite aberta, tal um espesso manto, a deixar entrever estrelas como furos no tecido, ele pode sentir as dívidas históricas, as ocupações violentas, os capangas e seus crimes, todas as dores de parto e os prantos de luto, das mulheres, desamparadas e violadas, junto as crianças inocentes, degoladas e desfiguradas, dos pais amargurados ao enterrarem seus filhos, as bandeiras ambicionando o ouro nas lavras, todo o erigir de altares sobre os crânios dos escravos.
Sob o sol pouco piedoso, ele busca refúgio sob uma palhoça, à beira da estradinha de terra. É uma espécie de quiosque, onde o teto quase desaba, sem proteger um cocho luzente de sal, ali destinado ao gado andarilho. É que ao teto faltam tábuas e a sombra vai se fazendo minguada.
Descansa, bebericando uma água já morna, quando surgem vultos à cavalo. Aquele que vem a frente, figura autoritária, chapéu altaneiro, olhar tão ressequido quanto a terra batida.
- Ei, ocê, aí, moço! – e resvala um olhar pelo teto esburacado. – Taí derriado, por quê? Ta de vigia? De tocaia? – e olha para os capangas, visivelmente armados, um de cada lado – Sabe quem ta levando minhas telhas, minha ripas ?
HD, calado, em prudente mudez, não pretende se envolver em mal-entendidos,. Mas não é bom ficar alai alheio e mudo :
- Só estou de passagem, senhor. Aproveitando a sombra.
- Que vai sumindo, né? – e aponta a palhoça, com o cabo do chicote – Vem dia que levam tudo embora. De telha em telha, de tábua em tábua.
- Não sei de nada disso, senhor.
- Pois é. Mas se pego quem vai ladroando minhas coisas vai orvalha chumbo.
E voltou pela estrada, acompanhado pelos capangas, sem olhar para trás.
Uma garrafa de vinho (a marca mais barata que imaginar) circulava de boca em boca. Enquanto a banda deixa uma pausa, alguém ousava um RAP, enquanto outro alguém fazia estranhos estalidos com a língua. Dois atores de teatro procuravam a madame Rosália. Um calouro de medicina já estava bêbado nas escadarias. Outro casal desceu para as sombras do jardim.
Outro copo veio parar em sua mão. Era algo forte, ele sabia. Pelo Olimpo! Onde estaria a ambrosia dos deuses? E eu posso com isso? É beber e cair.
A voz de Darío vinha de longe. – Tem uns caras que não toleram opiniões contrárias. Se você discordar de Marx, ele dirá que você é um alienado, se criticar Nietzsche, ele dirá que você é ressentido, se interpelar Freud, ele dirá que você mostra resistência, se criticar Hitler, o Führer esbravejará que você é um fraco, se ousar interpelar Pinochet, ele te chamará de comunista!
É ali que está, prostrado junto a um tronco úmido, Tomara não terem mijado aqui, é o que me faltava, beber essas porcarias e quase. Não caiu,mas o mundo girava, girava. É preciso auto-controle, algo em falta no mercado. Meu deus, o que foi que jogaram nessa batida?
Viu o tanque, junto aos lençóis esvoaçantes, uns espectros, e foi averiguar. Pelo menos a água fresca da torneira e assim apagar o incêndio,pois subia fogo de fornalha. Aproveitou e molhou a cabeça.
Onde está a caipirinha? A cerveja gelada? Nem teria mais estômago para o prato principal, a coisa realmente não ia nada bem.
Sentado na escadaria, vultos passavam ao seu lado, ficar ali é arriscar-se a ser pedra de tropeço. “no meio do caminho tinha uma pedra, uma pedra, no meio do caminho, nunca me esquecerei...”
E realmente tropeçaram nele – e justamente a Rosália.
- Ei, cuidado. Tá passando mal?
- É o pouco costume. Ei, o Darío ‘tava te procurando...
- É mesmo? Então quem saiu arrastando a Antonieta ?
- Antonieta? (de súbito, entendeu que falavam da irmã da interlocutora) Ora, o filósofo...
- Filósofo pras negas dele! É um inflado, isso sim.
Aí HD foi se levantar e desabou a sentar.
- É, você está bêbado, nem tem conversa. O que é que bebeu?
Uma voz espectral é que respondeu:
- Limonada é que não foi. – surgiu um agitado Darío – você está bêbado, hein, Hector? – e agarrando o braço da Rosália – O chileno sumiu com a sua irmã!
- Aquele tipo!
- E eu que dei a volta ao prédio. Nem perfume...
- Então sumiram mesmo. Se tivesse por perto notava. Antonieta a gastar uma fortuna com perfumes...
Empurraram HD escadaria acima. Vão me deixar assim? Sim, pois logo ele se sentou, tomaram eles o rumo do corredor. Pelo menos o Castillo não era de fazer castelos no ar.
Alguém ofereceu um drink de vodka. Um vulto delicado. Uma voz mansa, leve mesmo. Não algo forçado, ou tom ameno. Tão somente uma renúncia a impor-se, um deixar-se à mercê, sem resignação, apenas ausência de vontade, de combate. Nas garotas ainda um rancor, como a suportar o serem passivas, como que se pudessem seriam homens rudes. Elas suportavam a feminilidade, como um fardo, com resignação. Eis ali um corpo viril que desistia do jogo masculino.
- Experimenta isso aqui.
HD deu um gole e esperou. Não queimou tanto assim. – Eu já não agüento mais mistureba.
- Eles não bebem. Se matam.
Aquela voz mansa. Com sutil autoridade. O jovem a sua frente tinha um olhar atento. Sentia-se superior aos demais. Cabelos negros cobrindo a nuca, vestido com fineza, unhas um tanto salientes. Jeito de poeta.
O músico do tantã já caíra desacordado, e um negro de tranças complicadas assumia os minúsculos tambores. Um som com ares jamaicanos invadia os tímpanos e chocalhava os ossos.
- “ Bem que eu me lembro a gente sentado ali
na grama do aterro sob o sol.”
Oscilando com a melodia os corpos jovens simulavam uma onda.
- “Amigos presos, amigos sumindo assim, pra nunca mais.
Nas recordações, retratos do mal em si, melhor é deixar
pra trás
Não, não chores mais...”
Com o volatizar da canção, HD sentiu que era imperativo falar. A muito tempo que o rapaz, ali ao seu lado, guardava silêncio.
- Você espera alguém? _ HD perguntou.
- Sempre esperamos alguém, não é ?
- Os outros disfarçam.
- É, eles gracejam. Escondem.
A moça que assumia novamente os vocais, com uma voz de carícias, inicia uma triste canção.
- “Quando você foi embora
Fez-se noite em meu viver - ”
Ela mal se equilibrava nos saltos altos, naquela véspera de Natal. Andaram ainda dois quarteirões, temendo as despedidas. Ele a enlaçou pela cintura, afagou os cabelos perfumados e ousou roubar um beijo. Ela consentiu. Mas foi uma carícia breve. Ela se soltou e afastou-se, passos pesados. Parecia fugir.
- “Solto a voz nas estradas
Já não quero parar
Meu caminho é de pedra
Como posso sonhar?”
A imagem de uma Sônia tão frágil veio ferir-lhe o que restara de controle. Não eram lágrimas que subiam aos olhos, eram lembranças. Um rodopio de dança, uma canção dos anos oitenta, um filme com o Travolta, Sônia saindo do banho com os cabelos molhados.
- “Sonho feito de brisa
Vento vem terminar
Vou fechar o meu pranto
Vou querer me matar ”
Só havia a emoção da melodia ali, os versos de Fernando Brant e a música de Milton Nascimento, que todos enfim respeitavam. A voz, a irradiação emotiva.
HD sentia que já passara a euforia, a festa, a embriaguez. O que flutuava agora era uma melancolia, um afterglow.
Pesou o silêncio, a melodia findou. Quem sobrou, os sonâmbulos, começavam a sair. O poeta, ao lado de HD, despediu-se com um inclinar de cabeça. (Um poeta, realmente ? HD sentia que sim, mas lembrava-se agora de não haver indagado sequer o nome do vulto.)
O corredor escuro. Passos na fragilidade. Junto a escadaria, para as masmorras, como diziam, alguém fumava. Um ruído na escada.
- “Que barulho é este na escada?”
HD reconheceu a voz do chamado Veneza, naquele que fumava. Lá embaixo, também na escuridão, um casal tropeçava, ébrios possivelmente, nos últimos degraus. – “ Na curva desta escada nos amamos.”
Mas aí Veneza (assim chamado em homenagem ao Recife) soltou essa, junto com a fumaça, “O que tu chamas tua paixão, É tão-somente curiosidade”
- “É o diabo postado em pé no negrume da escada.”
- “e os teus desejos ferventes vão
Batendo as asas na irrealidade ”
O casal – HD já desconfiava, ali o mundo não era tão vasto – nada mais era que Castillo e a bela Antonieta. Escalando os degraus vinham interromper o duelo entre Bandeira e Drummond.
- Qué tiene usted ? – vociferava o chileno, encarando o Veneza.
Mas o rapaz não deu atenção – talvez por desconhecer o idioma hispânico – e declamava, lançando um olhar para dentro do salão.
- “Onde estão os que há pouco
Dançavam / cantavam / e riam...”
E arrematava, notando que HD se voltara, “Estão todos dormindo... profundamente”
E foi o que HD tratou logo de fazer, não sem antes, “não me encontro com ninguém”, e notando a atenção do outro, “E roda a melancolia / seu interminável fuso”
- Drummond de novo ?
- Não. Cecília Meireles.
E nem disse boa-noite.
... .... ....
- “Quando você foi embora
Fez-se noite em meu viver - ”
Ela mal se equilibrava nos saltos altos, naquela véspera de Natal. Andaram ainda dois quarteirões, temendo as despedidas. Ele a enlaçou pela cintura, afagou os cabelos perfumados e ousou roubar um beijo. Ela consentiu. Mas foi uma carícia breve. Ela se soltou e afastou-se, passos pesados. Parecia fugir.
- “Solto a voz nas estradas
Já não quero parar
Meu caminho é de pedra
Como posso sonhar?”
A imagem de uma Sônia tão frágil veio ferir-lhe o que restara de controle. Não eram lágrimas que subiam aos olhos, eram lembranças. Um rodopio de dança, uma canção dos anos oitenta, um filme com o Travolta, Sônia saindo do banho com os cabelos molhados.
- “Sonho feito de brisa
Vento vem terminar
Vou fechar o meu pranto
Vou querer me matar ”
Só havia a emoção da melodia ali, os versos de Fernando Brant e a música de Milton Nascimento, que todos enfim respeitavam. A voz, a irradiação emotiva.
HD sentia que já passara a euforia, a festa, a embriaguez. O que flutuava agora era uma melancolia, um afterglow.
Pesou o silêncio, a melodia findou. Quem sobrou, os sonâmbulos, começavam a sair. O poeta, ao lado de HD, despediu-se com um inclinar de cabeça. (Um poeta, realmente ? HD sentia que sim, mas lembrava-se agora de não haver indagado sequer o nome do vulto.)
O corredor escuro. Passos na fragilidade. Junto a escadaria, para as masmorras, como diziam, alguém fumava. Um ruído na escada.
- “Que barulho é este na escada?”
HD reconheceu a voz do chamado Veneza, naquele que fumava. Lá embaixo, também na escuridão, um casal tropeçava, ébrios possivelmente, nos últimos degraus. – “ Na curva desta escada nos amamos.”
Mas aí Veneza (assim chamado em homenagem ao Recife) soltou essa, junto com a fumaça, “O que tu chamas tua paixão, É tão-somente curiosidade”
- “É o diabo postado em pé no negrume da escada.”
- “e os teus desejos ferventes vão
Batendo as asas na irrealidade ”
O casal – HD já desconfiava, ali o mundo não era tão vasto – nada mais era que Castillo e a bela Antonieta. Escalando os degraus vinham interromper o duelo entre Bandeira e Drummond.
- Qué tiene usted ? – vociferava o chileno, encarando o Veneza.
Mas o rapaz não deu atenção – talvez por desconhecer o idioma hispânico – e declamava, lançando um olhar para dentro do salão.
- “Onde estão os que há pouco
Dançavam / cantavam / e riam...”
E arrematava, notando que HD se voltara, “Estão todos dormindo... profundamente”
E foi o que HD tratou logo de fazer, não sem antes, “não me encontro com ninguém”, e notando a atenção do outro, “E roda a melancolia / seu interminável fuso”
- Drummond de novo ?
- Não. Cecília Meireles.
E nem disse boa-noite.
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LdeM
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