domingo, 14 de março de 2010

Náuseas de Estudante - final do C1

(...)


A ressaca lhe dificultava e orientação meio a claridade derramada. Piscando, Pôde divisar, através das lágrimas, alguns madrugadores (às nove horas, numa manhã de domingo!) entre as árvores. Alguém corria atrás de um gato. A mão esfarelando um bocado de pão.

Havia movimento no corredor. Um grupo montava ali alguns equipamentos, dos quais escorriam miríades de fios que serpenteavam pelo chão. HD julgou distinguir uma câmera de vídeo.

No sanitário, porta cerrada, ouvia exclamações em linguagem que diria técnica. Enquadramento, cena tal e tal, plano médio e depois o close-up. Uma voz mais sonitroante incensava Glauber Rocha e lembrava Nélson dos Santos. “Glauber Rocha e Deus e o Diabo no Sertão de Canudos”. Uma insinuação feminina esclarece que esquecem ali os créditos ao Duarte.

Outras duas jovens vozes masculinas se alternavam junto à amurada.

- Quem foi (e ainda é) o maior inimigo de Hitler?

- O maior deles, você quer dizer, dentre tantos! Churchill, Truman, Stálin, sei lá...

- Não, você não entendeu. Estou me referindo a Charlie Chaplin!

- Ah, entendo! O cômico contra o espírito de gravidade, o risível contra a dramaticidade trágica!

Carlitos, “de bengalinha e chapéu-coco, sapatos compridos, olhos melancólicos”, perambulando sem eira nem beira, com um cão raquítico, um menino maltrapilho de olhares carentes, atravessando faminto a existência entre mercadorias. Faminto, “e sabes a arte sutil de transformar em macarrão / o humilde cordão de teus sapatos”, patinando nas lojas de departamentos, à beira dos precipícios do consumo, para um mercado, para uma máquina, na qual o ser humano não passa de uma engrenagem, nunca senhor do progresso, mas escravo. Ovelhas num aprisco ou operários numa fábrica, qual a diferença? Moído nas imensas engrenagens da indústria, ou esbravejando discursos irados, movendo o gado humano das fábricas e dos exércitos, um pobre barbeiro judeu a ser confundido com um ditador histérico,mas um pobre barbeiro judeu que diante dos microfones não hesita em lembrar “vocês não são máquinas, vocês são seres humanos”, ó Chaplin, “ó Carlito, meu e nosso amigo, teus sapatos e teu bigode caminham numa estrada de pó e esperança”, Canto ao homem do povo Charlie Chaplin.

O diálogo ( e o devaneio) é cortado por uma voz – seca, pausada, obviamente masculina – lendo fragmentos de um possível roteiro, algum volume que segue folheando entre os atores. É ouvido atentamente até que a voz feminina – aquela insinuante, de outrora – faz um delicado aparte. Ressalta uma fala, deixa claro o tom flâneur do diálogo.

- Ela está emocionada, mas não demonstra. – HD se ouve, falando sozinho, na solidão da privada.

Outra voz anuncia que tudo pronto para o ensaio. Movimentação. Alguém entra no banheiro. Água escorrendo na pia. Chiado de cigarro afogado.Fumo se espalha no ar. Num pigarrear, é um homem. Passos e hesitação. Aproxima-se da porta. Desiste. Afasta-se. Silêncio.

Quando HD saiu pôde notar um casal com trajes ao estilo anos sessenta ( pelo menos é o que parecia). Casal a conversar, num idílio plácido, ao longo do corredor, e seguidos pela lente da câmera.

HD avançou, meio constrangido, junto a parede, para não incomodar as filmagens. Cuidados em vão, pois o casal desfez a pose, e num esboço de sorriso, voltou a posição inicial. Logo incorporavam as personagens.


No quarto, somente o ressonar dos adormecidos. Antro abafado, aquele. Suprido de luz, mas não o suficiente. E se abrisse as janelas? Não, logo apareceria alguém para incomodar. Olhou ao redor. Fotos, cabides, aparelho de som, revistas, pilhas de livros, roupas. Sobre uma das cadeiras, uma brochura. O que será?

Folheando o livro, encontrou. “Todos os problemas são insolúveis”, e outra, “ a solução é a conduta católica”! Alguém replicava, pois isto é “supressão da vida”...

A prosa de botequim logo o interessou e, em pouco, HD se divertia ao lado do amanuense em pleno carnaval de l935, imaginando como seria a fascinante donzela Arabela.

- Mas o homem espia o homem, inexoravelmente.

Ao pé da página alguém anotara à lápis, lisez les classiques, lisez Proust. Certamente um conselho de Henri.

Mas HD insistia em continuar na leitura do presente volume. O tímido amanuense descobria uma pista – descobrira onde morava a sua amada. Mas havia ali qualquer coisa de mentalidade entreguerras que HD não entendia. Algo a que o filósofo (o Castillo) se referira no dia anterior – “uma necessidade de tomar partido”. Esquerda e Direita. Comunistas versus fascistas. A queda da Bolsa, o desemprego, a fragilidade das democracias liberais. A guerra civil espanhola. A diplomacia de Chamberlain. A intentona comunista na Era Vargas. Intervenção do Estado. Guerra Fria. Hoje somos neo-liberais ou não. Ou podemos mesmo escolher? Querem dizer que social-democracia não faz sentido? Conciliação que nem tentamos: vinte anos de ditadura direitista...

Na repartição, o amanuense arquivando mágoas, registrando as vidas frustradas dos colegas, as ilusões perdidas. E um amigo às voltas com o mito faústico – sim, era uma vergonha não saber alemão.

HD pode imaginar o escrevente atrás de um balcão, a rabiscar uns versos, que prontamente oculta, ao notar o vulto do chefe. E é uma cena tão vívida! Ele fazia o mesmo! No balcão da papelaria, a ocultar seus rabiscos, os tantos livros.

Sim, lembra que o patrão até lia uns volumes lá no Caixa. Até livros em inglês. Não fora lá que lê descobrira James Joyce? Os contos sobre os cidadãos dublinenses e suas andanças e frustrações?

Já esquecera as tardes imensas nas trincheiras? Ou chafurdando nos charcos da guerra do Paraguai? Ou listando revoltas do obscuro Período Regencial? Ou indeciso a que lado defender na quase guerra civil que foi a revolta constitucionalista de 32 ?

Nos volteios do pensar, o livro quedava aberto sobre os joelhos, esperando atenção. O olhar de HD seguia as capas multicoloridas das revistas. Uma perna nua. Ou lábios sorridentes. Dois títulos em francês despertam certa atenção. Dois volumes caídos sobre os sapatos.

Inclinando-se, pescou os livros: “La Nausée”, Jean-Paul Sartre, o diário existencial de Antoine Roquetin, com páginas cheias de rabiscos e sublinhados, e “À l’ombre de las jeunes filles em fleur”, Marcel Proust, onde, na primeira página, o francês (o próprio Henri!) rabiscara: “Il dejá parlé: Lis-moi, pour apprendra à m’aimer” (de Baudelaire, HD descobriu depois. “leia-me,para aprenderes a me amar)

- Quem disse?

Como a responder, eis uma pancada na porta. Repetida, antes que esboçasse reação. “É alguém que bate à porta. Só isso e nada mais!”

Não era o corvo. Era o francês. Pô, só de pensar nele! Que nem o diabo que.

O caso é que ele queria saber se ainda sobrara cerveja. O que poderia dizer? Distribuiria a cerveja do Darío? Mas acordaria o amigo por causa disso? Por causa de um cara que cura uma ressaca com outra?

- O Darío tá dormindo, Henri. – e abriu um pouco mais a porta para o francês conferir tão vera desculpa.

- Je puis voir. Rien ne trouble le eternel repos. (Eu posso ver. Nada perturba o repouso eterno)

E foi entrando, se sentou e nada mais.

Observou, algo sonâmbulo, os livros que HD folheava, ali deixados sobre a cadeira. Reconhecendo-os, declamou com ar de enfado:

- "La chair est triste, hélas! Et j’ai lu tous les livres.”

Um corpo se virou estremecendo a cama de molas.

- Ótimo isso, acordar ouvindo versos de Mallarmé!

Darío sorria, olhos no teto, mãos sob a nuca.

- O que ele disse? – eis HD, todo curioso.

- Que já leu todos os livros. Ah, vã pretensão!

Darío se voltou para o lado, descobriu o relógio do Mafra e foi se levantando, Vers midi, mon ami!

Então HD descobre que passara três horas lendo!! Concentrado em dramas alheios, como um bom leitor-voyeur! E ainda mais surpreso ao ver Darío despertar de bom humor!

- Bem, é hora de notre dejeuner. – Jogou as cobertas para um canto e foi lavar o rosto – Mas almoçaremos aqui mesmo.

E diante do olhar interrogativo de Henri:

- Ó Bordeaux, esqueceu que o bandejão hoje é lá na Direito? – voltando-se para HD – Sabia que aqui temos o bandejão itinerante? Cada domingo num canto diferente! E eu não vou atravessar a cidade para buscar comida! É só cozinhar um macarrão aí.

Mas HD percebia que o amigo estava animado sim, e muito. O que teria acontecido noite adentro?

O Mafra só levantou quando o cheiro de batata cozida invadiu o quarto. Darío planejara uma maionese, e o Mafra, claro, ajudaria – a comer. HD notou que ambos andavam um tanto reticentes, não falavam o mesmo idioma. Darío conversava em francês com o Henri, e o Mafra xingava em espanhol, !Y uma mierda! !Que sé yo?!

E HD ajudava, silente, lavando pratos e talheres.

Depois do banquete dominical – maionese, arroz à grega e macarronada – com os quatro à mesa (Henri se sentara à beirada da cama) regado à caipirinha (leves doses, claro) e muitos ?Qué hay? ? Que pasa?, HD se apresenta voluntário para lavar a pilha de vasilhas.

Foi nesse momento de dona-de-casa, tendo os titulares do quarto se ausentado – sem qualquer justificativa – que surgem Rosália e a irmã, dadas à sussurros junto à porta. “eles arrumaram um serviçal?”, ria a madame dos saraus.

Claro que HD disfarça o incomodo, e exagera o sabão nas panelas. Solícito por cordialidade? Algum desconforto por causar despesas? Estaria incomodando?

E as mulheres até se sentaram na cama. “E o Aranha, hein, rapaz?”

- Saíram por aí, nada me disseram. (Estaria soando muito antipático?)

No entanto, os estudantes logo retornam. Trocam lisonjas e anedotas. E saem (o quarteto) parolando pelo corredor e logo as vozes somem. HD agora pode terminar a lavação e até varrer o quarto. Uma ordem a surgir no caos primordial. Mas, Une bière, mon ami!, Henri surgia à janela, pedindo uma latinha. E aproveita e mendiga um cigarro.

- Pobre do Darío com esses amigos que ele arranjou. – resmungava um incomodado HD, a ordenar os livros na estante.

Ousou ligar o rádio, um rock’n’roll na rádio comunitária do Santa Teresa, “People are strange...”, mas o vizinho do quarto ao lado deu o grito. O porteiro chegou à janela:

- Quem está perturbando a ordem?



(fim do Capítulo 1)

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