sábado, 20 de março de 2010

Capítulo 2 de NÁUSEAS DE ESTUDANTE


Capítulo 2


Nos sábados à tarde, após dormir toda a manhã, HD cultiva o hábito de estudar,ouvindo música. Se não era Mozart, eram outras psicodelias. “Shine on you crazy diamond”, eis o que ele ouvia, quando ecoam vozes próximas. A senhoria subindo, ruidosamente, as escadas, a trocar argumentos com algum possível novo inquilino.

- Sim, essa época das provas. Muitos estudantes. (uma pausa) Alguns já reservados. Mas este quarto só...

E a porta do quarto se abre. A mão da senhoria na maçaneta e uma face sorridente de rapaz, o que se lança quarto adentro.

HD, que tentava se com concentrar, é obrigado a ser cortês com os intrusos (ela nem sequer bateu na porta!) e abaixar o volume do som. O recém-chegado passeava olhares pelo quarto. HD também observando. Via-se que o rapaz, ao menos era sociável. De estilo alternativo. Roupa simples, quase um hippie, com sua sacola de lã, sandálias, cabelo curto mas despenteado, falando sorridente, “Já gostei aqui do meu colega”, e sorri (sempre sorridente!) como se fossem velhos amigos.

Em seguida, desceu seguindo a senhoria, para acertar pagamento, conseguir uma almofada entre outros detalhes.


Além de Pink Floyd, Aldo (como prontamente se apresentou) era fascinado com Sagrado Coração, e Secos e Molhados. Carregava na mochila umas fitas-cassete com gravações de Led Zeppelin e The Doors. Gostava também de viola caipira. Desconhecia música clássica.

Não somente gostos musicais uniam os companheiros de quarto. Aldo viajara muito e HD adorava os relatos das andanças.



Outro interessante dado biográfico do recém-chegado: ele viera de Itabira. “Noventa por cento de ferro nas calçadas. Oitenta por cento de ferro nas almas.”

Na manhã seguinte, HD desceu para lavar roupa. Alguém sugeriu uma contribuição coletiva para um tropeiro ( que esperava-se também coletivo). Pensionistas diante de um TV recheada de banalidades. Resolvem ratear as despesas para fazerem uma “vaca atolada” (prato composto por costeleta e mandioca), e HD solta umas moedas. Aldo, já enturmado, sustenta conversas paralelas. O Bug do Milênio, isso e aquilo. O coronel do massacre do Carandiru, julgado? Condenado?

O almoço até que foi de acordo. O filme na TV é que era péssimo.

O quarto de HD não é imundo e abafado, como aquele de Raskólnikov, muito menos frio, como aquele de Charles Bovary, e passa longe daquela espelunca do protagonista-narrador de “Fome”. Duas camas, uma estante, um guarda-roupa, uma mesa. O banheiro é no fim do corredor, e coletivo. De manhã é aquela fila. Um monte de marmanjos alegando pressa e prioridades para passar na frente. É a lei do mais forte.

Aquela manhã, um tanto cinzenta, HD acordou cedo, pois pretendia procurar emprego. Compra um jornal numa banca da esquina da Bias Fortes e vai ler ali na praça Raul Soares, de costas para o famoso Edifício JK, e mesmerizado diante dos arbustos em forma de esferas. Glóbulos verdes. Também mendigos compõem a paisagem urbana. A fonte da praça está morta, somente resta uma água parada, fétida. Os jardins não recebem muitos cuidados, e um odor de urina é onipresente.

Oferta de empregos. Vagas sem exigências de experiência. HD anota os endereços e telefones, marca pontos num mapa (que comprara recentemente), traça roteiros mentalmente. Aí chega um cidadão, com um saco de aniagem nas costas, num chocalhar de latas e garrafas descartáveis. Sob a sombra da árvore à direita, começa a amassar – uma por uma – com a bota. A estridência rasga o dia. Registra-se um fato.

Um catador de latas na praça.

Outro fato: a paciência de HD, que continua no mesmo banco, a observar o cidadão.

O sujeito fazendo o que considera o seu trabalho.




As andanças de Aldo. Assim as narrativas que o rapaz alongava noite adentro, enquanto ouviam “Stairway to Heaven”. HD meio sonolento e Aldo empolgado, olhar fixo no teto, mãos sob a nuca.

Suas andanças. De como caminhava para chegar ao colégio. Quase uma hora para ir, uma hora para voltar. Demorava mais para voltar, pois tinha fome e o sol não estava manso.

Nem concluíra o ensino médio, precisando trabalhar ao lado do pai, um marceneiro. Igualmente nada de curso técnico, e assim nem operário Aldo conseguira ser.

Ajudara uns parentes numa colheita de milho, pros lados de Monlevade, mas, muito sonhador, não se adaptara às rotinas rurais. Preferia as caronas nas estradas, almoçar numa churrascaria de estrada, ouvindo modinhas de viola ou folk-rocks ianques. (HD logo imaginava os passos adiante na atmosfera sonora de um Bob Dylan ou Neil Young) Gostava de seguir trilhas nas montanhas ( o que muito agradou a HD) e pescar noite adentro, “aquelas de lua bojuda que nem laranja”.

As pensões eram luxos de fases boas, quando conseguia um emprego de carregador ou ajudante. Freqüentava era albergues, ou deitava-se em bancos de praças (“menos agora, camarada, depois do que fizeram com aquele índio pataxó”)

Numa serraria, onde trabalhava pesado, até sábados, altas horas, “pros lados de Valadares”, ousara olhar para a filha do patrão, “linda mulata de cabelos fartos e lábios generosos”. Mas o romance durara pouco, alguém dera o alarme, ele se viu fugindo na noite para não apanhar dos colegas, muitos pagos pelo patrão, ou irados de inveja.

Então resolvera descer em BH, pegando o trem que vinha de Vitória. Bebendo num botequim da Lagoinha, encontra dois boêmios que lhe oferecem emprego. Carregar móveis. E eis que está ali, a narrar seus “causos”.

Enquanto a voz pausada e provinciana de Aldo é emoldurada pelos solos de guitarras de velhas bandas inglesas, HD vai pensando naquele Viramundo ali à sua frente, naquele Pedro Páramo em seu On the Road mineiro, vivendo nas estradas, contando com caronas, gozando amores esporádicos. Tudo muito sedutor, algo literário, mas HD sabe que, por mais que sinta-se tentado, jamais se arriscaria a uma vida assim.é filho de funcionário público, educado a prezar conceitos como segurança, conforto, postergação dos prazeres, preocupação com o futuro.

HD sentia-se uma formiga, curiosa, a ouvir as narrativas da cigarra.

HD sempre incentivado a ser o bom aluno. Lembra de sua infância. Sete da matina. Manhã fria. Terceiro ano na escola. Subindo a ladeira para alcançar a portaria ainda aberta. A mochila pesada e a portaria distante. Os passos incertos e o morro infindável. O portão quase inalcançável. Passos inúteis, a mochila quase escorrega ( o peso do globo nos ombros de Atlas, a rocha da punição de Sísifo). A imagem do portão se fechando, o fracasso, a volta para casa, cabisbaixo, a bronca e a surra, a saudade da escola, dos brilhos nos olhares das meninas, a merenda que poderia compartilhar com os colegas, agora mastigada e engolida entre lágrimas, sozinho no quarto, no canto da cama.



Um dia, certa manhã, HD foi tirar a segunda via da carteira de identidade, o famoso RG. Mais de uma hora na fila, juntamente com muitos jovens iguais a ele. Lembrava que da última vez fora a fila para o alistamento militar, e que toda mulher ou mocinha que passava era prontamente motivo de ironias e gracejos, a se propagar por toda a fila, como um rastilho de pólvora.

Depois de assinar (nervosamente) seu nome, espera para tirar as impressões digitais. Ali está. Hector Dias Guimarães de Almeida.

Um funcionário frio e ríspido, mecânico tal uma máquina, aparece, logo tratando-o tal um criança, a segurar suas mãos e, um a um, vai sujando os dedos com uma tinta negra. Sempre exigindo a passividade, o oficial carimba-lhe os dedos contra as folhas e o papel timbrado esverdeado, onde jaz uma foto sua.

Na hora de lavar os dedos, a estopa ainda mais suja. Mas oficial insiste que é ali que ele deve “limpá-los”. HD não percebe a inscrição na parede, onde é imperativo usar a pia após a estopa, e é novamente abordado pelo oficial.

A procura da eficiência, o oficial, o perfeito profissional. “Eu até poderia ser amigo dele. Ele aceitaria?” HD procura sua dignidade, meio às digitais, “O que ele terá pensado quando aconteceu com ele?” era como um ritual de passagem.

Deixar-se catalogar, assumir um número, acatar o registro dos serviços de inteligência, é isso tornar-se cidadão? E é a partir daí que se torna responsável?

Nas filas ( ele não pode evitar) sente-se como os judeus em filas diante dos oficiais nazistas, tal um rebanho sendo conduzido, uma absorção, uma despersonalização meio à multidão.

E estar ali para ser checado, analisado, rotulado, catalogado, numerado, classificado, encaixado, adaptado.

- Não sou um número, não sou um código em série, sou uma pessoa.

Tal uma personagem de Kafka, reduzido a humilhação de seu bizarro processo, triturado nas engrenagens da burocracia, HD percebe-se inserido num jogo do qual desconhece as regras. Um jogo no qual ele já nasceu perdedor. Ou não?





Informado sobre inscrições para emprego, numa repartição pública, HD para lá se encaminhou numa terça-feira de manhã indecisa.

É atendido por duas recepcionistas, que se confundem nas informações, mas prontamente auxiliadas pela secretária ( a loira junto ao computador), ao explicar com mais clareza. HD recebe os formulários para a inscrição, mas está mais atento ao movimentar das mulheres, todas na faixa dos vinte, vinte e cinco, e principalmente a morena que está junto a mesa, a folhear uns maços de folhas, fingindo trabalhar, ao que parece, não mais que uma estagiária.

Ela, a morena, com suas sandálias transparentes e as curvas dos delicados pés, lisos e claros, o fascinam, a ele que não sabe se se concentra nos dados a serem cuidadosamente preenchidos ou nas formas da moça. Vem brotando aquele entranhado sentimento de impotência, de estar diante de mulheres interessantíssimas e, infelizmente, para ele, inalcançáveis. Que homem conquistaria aquelas mulheres? Que rendas mensais devem possuir?

E ainda entra outra, cabelos curtos, e se propõe a ajudar a loira, ao computador, com pose de ser a responsável ali. E o caso é que elas não se aquietam, pois parece que, em suas complexas funções, precisam ficar saindo de salas e entrando em gabinetes, alisando os cabelos, ajeitando os vestidos, deixando uma mescla de perfumes no ar. Como pode um jovem rapaz se concentrar assim?

Finalmente, ele preenche a ficha, o que fez lentamente, degustando o vinho fino, a beleza viçosa daquelas mulheres. Que estão ali empregadas para conseguirem empregos para outros. E seus pais estão empregados? Quem sustenta os seus lares? Gastam seus salários com estudos ou embelezamentos?
Lembra dos comentários do pai, o velho funcionário público, quando sabia que outro pai de família esta desempregado, “Que é pra deixar vagas para as filhas dos bajuladores!” e que era uma verdadeira vergonha aquelas mulheres levando os cargos dos homens, que passavam, muitos, a ficar em casa, lavando a louça e passando roupa.

E aqueles homens a perambularem pelos pontos de ônibus, oferecendo CDs piratas, capas para celulares, isqueiros coloridos? Quem conseguiria um cargo para eles? Ou serão todos realmente supérfluos?

E quanto aos crimes cometidos por desempregados? Os índices alarmantes de violência, assaltos, golpes com cheques, distúrbios no lar, ressentimento e ódio contra as mulheres!




Um dia, desta vez manhã ensolarada, HD numa fila de emprego, no bolso a carteira de trabalho e previdência social, acomodado na portaria da agencia de recursos humanos, lendo atento e alheio ao redor, segurando firme o cartão com o número da senha para atendimento.

Aí, de súbito, uma voz curiosa:

- Você é comunista?

HD olha o outro, um tanto surpreendido. “Quem será esse aí?”

- Ainda estou estudando...

- Ah, bom. (diz com certo alívio) Então, estude bem. E tenha cuidado. É preciso atenção e bom senso.

“Quem ele pensa que é, para ficar dando conselho? O que ele considera “bom senso” ? E por que “cuidado” ? Até parece que estou lendo algo proibido!”

E, com dedo médio marcando a página da leitura, observa a capa, vermelha, do opúsculo. Em garrafais, “O Manifesto comunista”, Karl Marx e Friedrich Engels.

continua...

LdeM

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