domingo, 21 de fevereiro de 2010

Cap. 1 de "Náuseas de Estudante"

... ...

Quinta dose e náusea.

Só percebeu quando as vísceras se contraíam em vômito.

Sinceramente, nem suspeitara do que bebera. Ali entre as árvores do jardim talvez se sentisse melhor.


Pouco antes, o banho frio fora até uma benção. Aquele amplo banheiro de hospital, com ramagens se chocando contra as vidraças.

Saiu logo, pois Darío praticamente quase já batia à porta. Acordes de viola vieram alcança-lo. Darío apontou as figuras todas seguindo para o fim do corredor principal. A festa se estendia pelo jardim, mas o som brotava do amplo cômodo onde antes funcionara a cozinha.

Pelo corredor, de bermudão, se enxugando, notava um movimento espasmódico na ala principal. Ora um casal aos agarros, ou um jovem de vestes soturnas, em olhares pouco amistosos.

Quanto a HD, uma camiseta limpa, gentileza de Darío, e uma camisa de flanela fazia o visual.

Ainda no corredor, ainda deslocado, percebe quando estendem copos plásticos com bebidas suspeitas. Bebericando a poção, adentrou a tal cozinha em climas festivos, e até em cima das pias (de outrora) tinha gente empoleirada.

Deixou-se ficar ao limiar da porta e vez ou outra alguém lhe sorria e um novo copo chegava em suas mãos, com outra exótica beberagem. Um gosto de vodka nisso, mas algo de rum também. Ali o cidadão não sabe se bebe ou dedilha, ali onde. Outro sujeito de vestes sombrias surge ao seu lado, acompanha o outro mais carrancudo. Um caveira exibe um sorriso. Um negro alto, ébrio, golpeia os tantãs. O jovem da caveira parece ser um daqueles da porta do Shopping. Aquelas sombras de faces pálidas. Bem que Darío dissera.

O jovem da caveira entrou com manhas felinas e surrupiou um copo sobre a mesa. O dedilhado era certeiro, mas o cara da percussão estava 'para lá de Marrakesh'. Uma garota fazia o segundo vocal, pois o vozeirão era coisa do maestro ao violão. Que bebera das inspiradas cucas da onda tropicalista, “Um índio descerá / de uma estrela colorida brilhante”, enquanto HD via estrelas no olhar de cantora, “e pousará no coração do hemisfério sul na américa...” e sílabas hispânicas permitem identificar o vulto ao pé da escada, “Virá que eu vi”, Cadê o índio que virá?" Sobrou algum?

Um casal debatia junto a mureta, ele, Música popular brasileira? Do que se trata? Música made in Ipanema, Copacabana? O “azul do mar” ? “o barquinho a deslizar” ? Ora! Ou música psicodélica baiana? Tenho tanto interesse em Tom Jobim e João Gilberto quanto em Caetano e Gil, e em Frank Sinatra e Elvis: nenhum. É música elitista carioca, é tropicalismo, é chanson d’amour, é rock’n’roll, eis aí; ela, quem há de cantar as montanhas, as estátuas dos profetas ao crepúsculo, as rachaduras dos casarios?; ele, Se algo eu conheço de música, é de viola, é de melodias áridas, é de caipira, é da alma do sertão, é mineira. Não me venha com essa de quem não é de samba é doente da cabeça e do pé!, ela, Mas eu ia falar do Clube da Esquina....

Surge então a bela peruana, que estava lá embaixo com o chileno, o Castillo. Vinha, seguindo-lhe o vulto, a sombra do pegajoso Mafra, vulgo Aranha. Sim, os traços incas é que lhe realçavam a beleza híbrida.

Virá que eu vi”, a voz enternecida, onde jazia a esperança?

Mafra sempre tentando agradar. – Verdade que eu não sei o que é isso! Mas eu não sou seu provedor-mor? Se eu não cair duro...

E bebia a mistureba como se experimentasse uma taça na mesa de Vossa majestade. Estava aprovado e então ela bebia sorrindo. Um grude, esse Mafra. Mas é até gentil, se não.

- Ó Hector, ‘cê ta bêbado?

Darío surge ao lado de Rosália, a madame dos saraus.

- Não ainda é o segundo. O que é isso?

Rosália riu. – Ora, meu bem, e quem sabe?

Darío, exemplo de discrição, não podia ocultar um brilho de inveja ao olhar para o fotógrafo envolto pela atmosfera perfumada da deidade incaica.

Rosália é quem vai agarrar a peruana. Saem as duas. O Mafra então agarra uma lata de cerveja e desce para o jardim.

- O doido aqui é que a gente bebe. – o cara ali ao lado, oscilando, não ousava se afastar. Talvez caísse.

Mandei plantar, folhas de Sonho no jardim do solar...”

Uma conhecida melodia dos Mutantes invadiu o borbulhar das vozes.
- Eles só pensam em nascer e morrer.

Essa HD não entendera, tão embolada estava a voz. Era o pêndulo-humano ali ao seu lado. Logo aparece o francês com um inusitado “Énivrez-vous!”. E continua, elevando o copo, “Il faut être toujours ivre!”, aquilo mais parecia um elogio à embriaguez. Mas o francês insistia, “Mais de quoi? Han De vin, de poèsie, ou de vertu, à votre guise”. Sim, a meu gosto. De vinho, ele disse. Mas por acaso isso aqui é vinho? Mas o outro ainda gritava:

- “Mais enivrez-vous!”

Não sabia se o espaço era mais restrito, algo confinatório, que explicasse aquela sensação claustrofóbica. O som era bom, as pessoas ‘tudo gente boa’, uns tiravam as máscaras, outros colocavam novas, uns de bermudão, outros de chinelas havaianas, mulheres com longas saias neo-hippies, e sandálias modestas. Havia até um cidadão de pijamas.

- Eu sabia que o Henri estaria aqui te aporrinhando com versos do Baudelaire. – Darío surgiu arrastando o chileno.

- "Mas as pessoas na sala de jantar
São ocupadas em nascer e morrer
.”

- Nada tenho contra o Tio Sam. – Darío certamente respondia a algum comentário de Castillo. – Farta literatura...

- Nem contra a United Fruit Co. ?

- Já sei onde queres chegar, meu caro. Ao imperialismo e tal. Eu sou mais culturalista, convenhamos...

- Eu chorei quando assisti Forrest Gump.

Darío até olhou assustado, não acreditava que era HD quem dizia tamanha inconveniência. – Sei, sei. O idiota que é filho de um trabalhador do porto, tragicamente esmagado por uma cacho de bananas. A continuação além-porto de “Viento Fuerte”, do Astúrias. – E como Castillo aprovasse – Quero dizer que eu não reconheço nos Estados Unidos, hoje, a terra de Thomas Jefferson, Benjamim Constant, Lincoln, Walt Whitman. Lembro que o Lorca já não reconhecia, o poeta perdido em Nova York.

- La questión és: por que la Republica torna-se Império?

- Precisa-se de um Império, dizem. Um dia o padrão-ouro ia cair, e se não fosse o padrão-dólar teríamos o quê ?

- O padrão-euro.

Darío olhou novamente para HD, com surpresa. – Ora, a Europa! Pois esperemos! Maastrich e outros etcs. Talvez esta águia voe quando a outra águia pousar.

- Fidel, cuarenta años tocando rumba!

- É por essas e outras que louvam a democracia liberal. Antes uma dissimulada liberdade do que uma explícita não-liberdade.

- Por que el general no libera lãs urnas? Que pueblo en san consciência rejeitaria um regime comprometido com justicia social, reforma agraria ?

- E os inimigos-de-classe, os reacionários, a quinta-coluna?

- É el trauma da Nicarágua? El general teme el fenômeno chamorro ?

- Mas e o Estado forte para assegurar que ninguém queira se apropriar de algo, tendo assim “propriedade privada” ?

E Darío olhou HD como que acordando de um sonho. – Hector, eu confesso, às vezes você me assusta. Eu nem vou aqui começar com aquela de criticar os ‘grandes saltos’, as ‘ditaduras do proletariado’, as ditaduras sobre o proletariado, certamente, ou a barbárie estalinista. Você ainda vai ler Rosa Luxemburgo, Hannah Arendt, ou Gramsci. Mas você sabe, em nenhum outro lugar do mundo se perseguiu tanto sindicalista e comunista quanto na Rússia dita ‘comunista’. Na verdade, imperialista. Foi o maior “queima-filme” da História. Por isso, os nossos piedosos cristãos apóiam um sistema mercenário, pois, segundo eles, pelo menos não se queimam os ícones.

- Los russos nunca tiveram experiência democrática, colega!

E Castillo replicava, olhando somente para Darío, como se somente este fosse digno de um diálogo profundo. Pois que acadêmico. (HD já percebera o desprezo do filósofo, mas não fazia muita questão. Na verdade, pouco entendia do que o outro falava.)

No entanto, o Mafra voltou e ficou deslocado meio ao ‘papo-cabeça’. E cutucava o Castillo. – Esse aqui também tem o poema predileto para essas horas. E o Carranza, hein, compadrito?

Castillo não se fez de rogado (não desta vez) e enxugou os lábios com as costas da mão peluda, e ousou um tom declamatório:

- “Yo soy el olvidado. Quiero um ramo de água” – e olhava ao redor, atento às garotas, meio alto, parecia errar as estrofes. – “Nadie podrá quitar-me um beso, uma mirada”.

Mafra ria, sem neuras. – pra você ver. Ele vive esquecido. Principalmente em festins cheios de mujeres.

Isso apenas para ouvir Castillo soltar do fundo do peito um bolero (alguém esclarecera ser o trecho inicial de “Una Mujer”) – “La mujer que el amor no se asoma / No merece llamar se mujer...

Bastava outra beldade aparecer que Castillo lançava o seu olhar enviesado e lembrava outros bolero, “Sabia, que el mundo no cabia Toda la humilde alegria De mi pobre corázon.”

(...)


LdeM

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