domingo, 14 de fevereiro de 2010

NÁUSEAS DE ESTUDANTE - Cap. 1

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Era culpa de HD se as imagens de Sandra e Sônia se embaralhavam em sua mente inquieta? Na verdade, Darío só conhecia um lado da moeda. Sabia, por exemplo, que HD andava de braços dados com Sandra, pelos corredores do colégio, mas não que tudo se resumia a aulas particulares de química e bilhetinhos com respostas nas provas de física. Claro, que Sandra era um sonho para qualquer rapaz de quinze anos. Seios salientes e um sorriso insinuante. Vez ou outra sua voz ressoava aos ouvidos de HD, mas a indagar sobre os ácidos nucléicos ou a terceira lei de Newton.

Talvez Darío se lembrasse das cenas da festa de dezesseis anos da garota, quando HD descobriu que ela namorava um estudante de Direito, dez anos mais velho. Saiu batendo a cabeça pelas paredes. Literalmente. Mas isso não vem ao caso agora.

O outro lado era Sônia Regina, que Darío nunca conhecera. (Darío conhecia Sandra até muito bem, pois ela adorava fazer ciúmes em HD saindo abraçada com Sabine pelos corredores...) Bem, Regina (a Rainha) era uma colega das antigas. Não do colégio, mas das aulinhas de catecismo. Tinha treze anos na época e começava a experimentar os saltos altos, em tentativas que HD vivia ironizando. Mas gostava dela. E gostou mais ainda quando ela sumiu. Sim, pois fora morar com os tios em Juiz de Fora.

HD lembra que ela voltou dois anos depois – e ele mostrou a amiga (agora amada) as cartas que escrevera ao longo deste tempo e nunca enviara (até porque nunca soubera o endereço). Cartas que valem pelo pitoresco. E pelas paródias de versos de Manuel Bandeira e crônicas de Rubem Braga. Cartas que ela passou a guardar numa caixinha sob o travesseiro. Assim ela se derreteu e começaram um flerte. Às vésperas da tão aguardada festa de quinze anos.
- Não, não deu certo. – HD dizia, desolado. – Sandra era a tentação, mas conversar o quê? E Sônia pensava demais. Esse era o problema dela. Pensar demais.

De forma que Darío não sabia se HD preenchia a ausência de Sônia com a sensualidade de Sandra, ou se curava os desejos que Sandra despertava, indo se abrigar nos braços de Sônia (que sabia sobre a Sandra, mas sem vice-versa).

- Lembro que a beijei poucos dias antes do Natal.

- A Sandra?

- Não, a Sandra era difícil. Toda aquela sedução era uma farsa. Ai de mim se ela não tirasse dez na prova de física! Aqueles olhares eram uma forma de ter um professor cativo, nada mais. No mais, ela me ironizava. “Duvido que você está lendo”, ela dizia, sorrindo, percebendo que eu mais olhava para o seu decote do que para o texto de História da Reforma Protestante...

Sandra morava numa chácara, onde, num poço, nadavam marrecos. Ou gansos, sabe-se lá. Estudavam na varanda, montavam um mostruário com folhas e pétalas para a aula de Biologia. Ele mais atento as curvas da colega do que à classificação morfológica das angiospermas.

Depois descobriram que haviam feito tudo errado, pois as folhas não ficaram totalmente secas, as pastas encheram-se de bolor, tudo se perdeu. Ambos levaram nota zero. E a amizade colorida mofou também. Em breve, infelizmente para ambos, ele sem o cheiro da amiga, ela sem o cérebro do colega, todo o contato se extinguiu, ficando até uma certa hostilidade, que nem a boa diplomacia da Darío apaziguou. (Realmente nada disso era novidade para Darío, que ficara curioso quanto a Sônia, até agora apenas um nome)

- E aquela longa história, Hector? Que papo era aquele?

Destilado o rancor, quase aos engasgos, Darío, apaziguado, ficara em silêncio, agora quebrado pela dúvida. Bebiam as últimas latinhas geladas. O restante ainda precisaria do congelador. Sob as ramagens volteavam morcegos, ou deslizavam vultos de felinos, langorosos e desconfiados.

- Fui convidado para a festa de quinze anos, claro. Cheguei até antes. No galpão onde seria a festa. Ela comia uma barra de chocolate, Quer, ela pergunta, e eu aceito. Claro. Para minha surpresa, recebo a minha parte em seus lábios. – HD saboreia o momento na lembrança – Mas havia cerimônia na igreja. Minha irmã participou também. Eu fiz o par com uma priminha dela, da Sônia. Que estava linda, a aniversariante. E eu disse isso quando ela passou. Lembro que ela não pode conter um sorriso. Eu estava falling in love. Era isso. E em que aflição eu fiquei. A cada olhar de admiração que ela recebia. Uma aflição quando algum primo se aproximava, ou aquele cara da rua de cima. Tudo era suspeito. Mas voltemos à festa. Eu queria ficar com a menina de todo jeito. Ela cortava o bolo. Distribuía, todos aplaudiam. Eu com mais empolgação. A tia comentando que eu queria me mostrar. Indiferente aos comentários, pedi a prima (aquela que fora meu par na valsa) para que dissesse a Sônia que eu queria um minuto de sua atenção. E não é que ela aparece?! De elogios suaves a carícias, ela foi e me beijou. Mas precisava ir. Outros requisitavam sua atenção.




Darío abria outra latinha (a penúltima) e ficou esperando. Reclinando a cabeça no tronco musguento, HD continuou:

- Na mesma semana ela me procurou. Entregara o vestido do baile e parou lá em casa para prosear. Eu que acabava de chegar da junta de alistamento militar. Ela já me esperava no sofá, ocupada com a broa que a minha mãe oferecia. Sônia muito gentil. Do jeito dela. Perguntou o que eu andava fazendo. Escrevendo. Li para ela a primeira parte daquele romance que eu escrevia sobre a construção da nave que transportaria astronautas para uma portentosa base lunar. Lembra-se daquela pesquisa sobre Jatopropulsão e aqueles textos em alemão que você traduziu? Tudo para o livro, algo de ficção científica, dosando os dois lados...

- Certo, certo. E daí?

- Percebia que ela não estava bem. Não achava graça nas minhas tiradas irônicas. Revelou que estava triste porque mudaria de colégio, e mais – de bairro. A família mudaria para o Santa Tereza, depois de morar tanto tempo no Barreiro, onde ela crescera. É que o pai ganhara uma promoção de cargo, essas coisas. E a família cada vez mais esnobe. E ela dizia sofrer uma fase de insônias. Só pensando em mim, revirando-se na cama. (eu assustado com aquelas olheiras, em sua face pálida, realçada pelos cabelos negros.) desde o baile viviam perseguindo a coitada. Que a mãe tinha seqüestrado a minha foto. (Ironizei: Espero que não seja para macumba) Mas ela toda deprê. Inútil qualquer bom-humor. (Eu até encontrei aquele volume de piadinhas infames, que você me emprestou, mas ela acabou foi me desprezando ainda mais) Ela estava péssima mesmo. Quase não almoçou e quis ir embora. Eu acompanhei. Nada mais de gracejos. Era um respeito diante da mágoa dela?

O espocar de uma latinha sendo aberta. Uma pausa. HD virou um gole e continuou:

- Ela disse que ia embora, direto pra casa. Mas ela hesitava, passos lentos. As ladeiras para o Barreiro de Baixo. Um apito subia da ferrovia, quando uma locomotiva manobrava. O maquinista em gestos para um vulto na plataforma. Viramos a esquina, à dois quarteirões da casa da Sonia, aí ela cismou de irmos visitar sua colega.

Depois de um gole. - Não víamos mais a estação, só os conjunto residenciais antes do córrego. – outro gole. – mas a amiga não estava. Ficamos no jardim esperando. Eu em conversas sobre o meu romance e sobre viagens no tempo. Como consertar erros perdidos? Ela então quis me beijar e foi isso o que fizemos. Beijos e beijos até perdermos a hora, e esquecermos da amiga. Não queria mais ir para casa – mais de meia-noite! – ela transpirava medo. As ameaças do padrasto – que era um tipo violento. A mãe não a defendia – dera a tal festa por pura vaidade. ( O importante era aparecer nas colunas sociais...)

Os vultos dos gatos aqui e ali, meio as folhas rasteiras, e Darío abria a sua última latinha, esperando HD continuar.

- Ela estava diferente. Com um daqueles olhares de rasgar a gente por dentro. Ela não queria mesmo ir para casa. Sentamos na calçada. Eu ousava abraços, enquanto ela tremia de frio. Lembrei então do Heleno, velho camarada, e que sua mãe não estava em casa (não viajara para Cabo Frio?) e rumamos para lá. Ela numa frieza só, nem me deixou enlaça-la pela cintura, nem andarmos juntinhos de braços dados. Ela apenas deixava-se guiar. De braços cruzados. Distante.

Um gato pulou e derrubou uma das latas. Uma pequena poça, antes que Darío se mova. O bichano farejava o derramado.

(HD pensou em gracejar, Você embebedando os gatos, hein, Darío?, mas o humor afundou dento dele. Mas não queria deixar-se ver um tanto tocado.)

- “Ei, Heleno, não é um sonho, sou eu.” Sussurrei na janela do quarto do camarada, depois de certa dificuldade em pular o muro. Ele acordou, não escondia o assombro. “Duas da manhã, Hector! O que está fazendo aqui?”, “Fugindo de casa”, eu respondi. “E acompanhado”. Ele abriu o portão eletrônico e Sonia subiu. Fiz as apresentações e ele mostrou a segunda cama do quarto. Eu ia dormir num colchão que ele puxou de debaixo da cama. Tudo como se fosse uma conspiração. Heleno claramente não entendia, mas era gente boa. Ela muito pesarosa. Em sorrisos apagados. Talvez acabasse de perceber em que confusão a gente entrara, imaginando toda a família dela em ataques de nervos. Polícia, detetives, tudo sendo acionado pela mãe histérica. Afinal, Sônia saíra de manhã (para devolver o vestido, como eu já disse) e não dera mais notícias. Eu sentia era um friozinho na boca do estômago, numa ansiedade louca. Estávamos distantes, era isso. E cansados. Daí o sono que nos apagou.

- Fugir de casa? Era sério?



HD abriu a última latinha e deslizou a superfície gelada pela testa febril. Queria continuar a história, mas sentia que era como profaná-la. Rememorar todos aqueles momentos assim, com um distanciamento prosaico, onde encontrar espaço para o lírico? (Sentimos que só há uma alternativa. A experiência na perspectiva da própria Sônia Regina. Mas não adiantemos.)

- Olhe, Darío, sei que aconteceu no início do ano. Muitas coisas aconteceram, mas a gente não esfria tão fácil. Não trata-se de remorsos, mas de oportunidades perdidas.

- Abri os olhos, quem me observava? E com um sorriso? Foi um despertar e tanto, não? Heleno serviu um lanche (cara mais gente boa não há) e deixou-nos a sós. A casa à nossa disposição. Ela insinuou algo sobre a Sandra (creio que o Heleno comentara algo) e eu desconversei. Ela quis dançar. Aquelas baladas dos anos oitenta. Estava animada – mas para onde iríamos ?

- Por que me parece que você está dando grandes saltos, hein, Hector?

- Eu mesmo não entendo certas coisas. A gente faz, e nem entende. Ficamos pensando só depois. Aí já é inútil. Pois eu resolvi ir lá em casa – na parte alta, como se lembra – para buscar meus documentos (eu iria fugir sem documentos?) e acalmar o pessoal lê em casa. Pois não é que o tio da Sônia já passara por lá! Voltei correndo para a casa do Heleno e avisei a Sônia. A polícia tinha as nossas fotos. Adeus planos de fuga. Ficamos na rede, aos beijos, aproveitando, esperando para ver o grand finale.

- Alguém certamente me seguira. Pois logo (lembro que ela só tivera tempo de tomar um banho) apareceu os Montecchio e os Capuleto. – HD sorriu, quando Darío ironizou a referência, “Ah, o casal de pombinhos, Romeu e Julieta!” – Meu pai e o padrasto e mãe de Sônia. E, nem precisa dizer, todos muito estressados. Imagine. Dos insultos só faltaram passar ao linchamento.mas tudo acabou rápido. Só pude segui-la com o olhar. Meu pai, respeitado funcionário público, como você sabe, nunca me perdoaria.

Dito isso, Hector se levanta, deformando a latinha entre os dedos úmidos. Caiu um silêncio. Talvez porque ali alguém começasse a entender.


(...)

LdeM

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