sábado, 21 de agosto de 2010

cap. 6 de Náuseas de Estudante [cont.]

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A família de Alex trocara o apartamento no Coração Eucarístico por um casarão no Eldorado. E Alex aparecera para visitar a mãe. E mandou avisar ao nosso HD.

Atravessando a avenida João César, a um quarteirão da casa do velho amigo, HD nota os vultos de um casal. Primeiro a mulher com uma criança de colo. Depois o homem, jovem, bem vestido, com um inconfundível livro preto debaixo do braço e uma sacola, com motivos infantis, sobre o ombro.

HD imagina-se diante de uma alucinação. Quando o casal passa sob a cascata de luz do poste, ele julga reconhecer o irmão mais velho de Alex, o transloucado Renato!

Mas deve ser engano! Renato, o beatnik, o on the road, o ‘espírito livre’, agora um convertido cristão?!


A mãe de Alex, educadíssima, num sorriso de boas-vindas. HD sem disfarçar certa timidez adentra a casa moderna e ampla com decoração discreta, digna de uma rica família católica.

É guiado até ao reservado quarto de Alex, onde o amigo está reclinado sobre uma mesa entulhada de livros. Ao lado, uma máquina de escrever, um abajur, uma Bíblia aberta. Imagem de um santo. Sob a janela, uma cama igualmente invadida por livros, roupas espalhadas, apesar do imponente guarda-roupa.

E eu que pensei que o meu quarto fosse o caos primordial!”

- Hector! Que bom que você veio!

- E eu perderia a oportunidade?

Afetuoso abraço e entusiasmo.

- Não incomodo o seu estudo?

- Ora, isso se deixa pra depois! Então como vai indo?

- Do mesmo jeito... Sufocado sob os livros. Milhares deles. Um Everest...!

Sentado na cama, HD acomoda-se, afastando os volumes de “Os Pensadores”, um dedicado aos “Pré-Socráticos”, outro, a “Nietzsche”. Sobre a almofada um denso volume de Teillard de Chardin, e ao lado, “Confissões” de Agostinho. Também obras metafísicas de Aristóteles e muitos diálogos de Platão. Alex levava a sério o curso de Filosofia!

- Tentando conciliar Agostinho e Nietzsche? O que é isso? Lendo Chardin? Ah, e Freud também!

- Ora, escrevi um trabalho sobre Nietzsche e Freud, sobre a descrença e o mundo moderno, coisas assim.

- Quero ler isso.

Ausência de valores, descrença, identidades fluídas, terapias para u mundo sem-sentido. Refutando preconceitos da psicanálise quanto às religiões.

- Veja, Hector, o mundo anda tão louco que precisaram inventar a psicoterapia, a psicanálise, a terapia de grupo, e outros consolos. Isso o padre já fazia, não?

Para deixar HD ainda mais extasiado, Alex resolve desvelar a biblioteca legada por seu pai, um psicólogo de orientação lacaniana. Acervo conservado, ainda que sem qualquer sistema, ali ao final do corredor.

Realmente desorganizada (Alex alegou falta de tempo) mas sem ocultar certa imponência. Até por algumas raridades. Toda a coleção “Os Pensadores”, toda a Brittannica, tomos completos das obras de Balzac e Chateaubriand, obras de Freud, Jung e Lacan, Ortega y Gasset e Erich Fromm, além de romances brasileiros (e alguns lusitanos) do século 19.
HD em olhares curiosos, dedos ansiosos a percorrerem os títulos, ou a folhearem volumes editados nos anos 40 e 50. até alguns da década de 30! Primeiras edições dos poetas modernistas. Os dois Andrades paulistas, o Bandeira, o Drummond, o Quitana.

A mãe de Alex aparece com um lanche. Sanduíches frios e limonada. Mastigam comentando o conceito de identidade, se a identidade enquanto consciência sobreviveria à morte do corpo.

- Se a identidade se forma o contato com o mundo material externo, e como na passagem tal estado muda, pois “o espírito sopra onde quer”, então outra identidade teremos. Como poderão me invocar? Só virá à tona as memórias do estar vivo.

HD pensava nas palavras de Alex, num esforço para sair da superfície do senso comum. Autores espiritualistas, psicólogos transcendentalistas, pesquisadores da consciência extra-sensorial.

Na sala de estar procuram algum programa interessante, zapeando nos canais da TV, mas haverá vida inteligente na mídia? E nisso o irmão de Alex, o Renato (ele mesmo1) aparece com a noiva a filhinha, enquanto arrastam a mãe, em conversas, até a varanda.

- Precisamos nos divertir, Hector, nessa metrópole. O telefone de alguma amiguinha aí?

Trocam sorrisos maliciosos. HD sabe que Alex não é um santo, mas também nenhum devasso. Que HD saiba, Alex só tivera um grande amor, e algum interesse por Sandra, mas que a pronta intervenção de HD...

- Alex, meu caro, a última vez em que me diverti foi aquela vez no clube, lá na lagoa...


E HD via-se diante de Celso, ambos apenas de calção, num duelo diante da sinuca, bola treze na segunda caçapa, e HD perdendo.

- Veja, você, Celso. O próprio nome diz, “distração”, “entretenimento”. As pessoas dizem que vão ‘distrair a cabeça’. Isso como se tivessem antes o tempo todo concentradas, raciocinando, contextualizando suas vidas e atividades. – e errou a tacada. – Mas não é o que ocorre, saiba. (O outro sabia)

- Estão constantemente distraídas, impossibilitadas de contextualizar. – HD continuava, manejando a pedra de giz na ponta do taco. – Alienadas em suas atividades, hábitos e rotinas. A diversão é a legitimação da alienação, do ópio. Não nego que o ócio seja necessário, como uma pausa, mas a diversão é distrair as mentes do pensamento, da realidade da exploração, dos antagonismos de interesses. É o que eu digo.

E Celso deu a tacada final. E ganhou.



Indagado sobre os seus projetos, HD fala em literatura. – Ler, reler, escrever. Invadir os saraus, declamar em praça pública, respirar e digerir literatura. É o que me resta.

Reclinado no sofá, com toda a preguiça do hemisfério ocidental, Alex comenta suas leituras do século 19, sua vasta cultura sobre os franceses e portugueses que vivia escrevendo obras sobre devassidões entre clérigos. E, cansado da TV, levantou-se para ligar o som, selecionando uma trilha sonora mais introspectiva, sem deixar de ser o bom e velho rock’n’roll, que HD identificou logo como Joy Division (afinal como poderia ignorar Ian Curtis?) Ah, sim, os clérigos! Em obras como as de Baudelaire, o mais católico dos profanos, e outros poetas malditos. E Chateaubriand. Evictor-Hugo. E “O Crime do Padre Amaro”, do Queirós, ou “O Seminarista”, do Bernardo Guimarães, e – contraponto a todos os anticlericais – todos os intelectuais católicos: Chardin, Gide, Bernanos, Pellegrino, Boff, Frei Beto e muitos outros, em vasta galeria que HD jamais percorreria.

Mas você acha que os burgueses tentando destronar os cristãos junto com os monarquistas e não conseguindo (vide a Restauração) não passaram a, digamos, instrumentalizar a religião para apaziguar as lutas de classes, servindo consolo às massas populares?

Conversavam nesse nível, e HD pensando no espectro de Renato agora fiel evangélico. (Transmutação que Alex não comentava, visto que católico o irmão jamais fora, e baderneiro ninguém mais suportava, mas agora um ‘crente’ na família...)

- O que sobrou para os pobres ? – HD adotava um tom mais soturno, de acordo com a melodia – O que sobrou além da religião, de uma esperança de um mundo outro e melhor, já que neste só sabem sofrer... Sobrevivem sem esse conforto psíquico para os despossuídos até de um sentido, um propósito para a vida? Os ricos pelos menos têm que lutar por algo: manter, resguardar suas propriedades, seu poderio.

Alex limitou-se a citar outro trecho de seu artigo sua tese. A Esperança: virtude ou consolo? Posse material ou progresso espiritual enquanto sentido para viver?

- O que nós mais me espanta é perceber em nossa mente de um quarto de século todo o conhecimento acumulado ao longo de três mil anos!

Alex concordava. – É, somos uma mente de três milênios que observa um corpo finito, pleno em desejos, ainda nem marcado pelas rugas do tempo.

- Mas esse distanciar existe? Afinal, não tenho um corpo. Sou o corpo. E sendo a partir dele.

- Nada antes nada depois? – Alex num olhar cortante. – Hector, você já pensou na Eternidade? Você não gostaria de viver eternamente?

- Sou o corpo. E o corpo morre.

E silenciam, evitando olhares, sob o peso da melodia.

“Here are the Young men, the weight on their shouders,
Here are the young men, well where have they been?”

Na angustiada concordância na voz de Curtis, encaram, os dois jovens, a mortalidade.




(do diário de HD)


março/2001


Andando na Praça, sábado à tarde, observo os garotos de skate. Indiferentes ao medo, na ousadia das manobras arriscadas, nada de hesitação, só aquela vontade de provar para si mesmos (e para os outros) que pode fazer: tornar-se um-com-o-risco. Salto, giro duplo. O skate é um membro de seus corpos magros e acrobáticos, artistas do circo das ruas.

Contagiado pela coragem e ousadia deles, levantei-me e desci a avenida Brasil. Sol e sombra se alternam, céu nublado. E a boca seca. Casas fechadas, janelas cerradas. Cidadãos se abrigam, temerosos da insegurança cotidiana. Atrás de alarmes, correntes, cães bravos, cercas eletrificadas, portões eletrônicos. Condomínios com seguranças particulares, cabines e câmeras. Circuito interno de TV, o velho olho-mágico, a tranca dupla, tripla, acionada à cartão-magnético, e de novo o cão bravo.

Os muros e as grades nos protegem de nosso próprio mal.” (Engenheiros)

os assassinos estão livres, nós não estamos.” (Legião)

O medo no olhar, na voz hesitante (apreensiva!) ao interfone, “Quem é?”, “Sou eu, querida. Apenas eu.” Mas o que sou eu? Devo me apresentar, “Aqui o meu cartão, madame” Pois não. Meu olhar lhe agrada? Meu sorriso lhe enternece?

Somente os skatistas em ousadia. No mais, medo e ruas vazias. Ou madames levando os poodles para um saudável passeio. Mas deixando as jóias no cofre, claro. Este senhor, na parada do ônibus, leva a mão a testa, úmida em suor nervoso, num alívio quando não o abordo, Quem ele pensa que eu sou? Mas não importa, há apenas o medo de viver. Eu invejo a ousadia dos skatistas. Em manobras impossíveis, ainda que o resultado seja aquela horrenda casca de gesso, coberta por centenas de assinaturas. Em constante risco, sem hesitar, nem que isso custe aquela cicatriz profunda e explícita!

Cheguei à Lagoinha num entardecer cinzento, de nuvens baixas que são até opressivas. Uma hesitante promessa de chuva.

A polícia só funciona quando assassinam delegado...”

A voz se eleva diante de uma banca de revistas e jornais, debaixo da passarela. Um senhor, no respeito que exige seus cabelos brancos, é ouvido por um interlocutor que poderia ser seu neto. O jovem está mais preocupado é com as modelos das capas obscenas.

Sigo, ferido pela arquitetura em ruínas da Lagoinha, bairro que Naína dizia ser o “mais feio que ela já conheceu”. Tudo aí abandonado, essas fachadas com adornos que mais parecem arabescos (alguma tradição ibérica?), que, imaginemos, lá anos 20, 30, eram a jóia da capital.

Na Antônio Carlos, avenida estreita para tanto tráfego, os ônibus passam com os torcedores ensandecidos que descem da farra do Mineirão, em pleno carnaval sobre rodas!, num entardecer úmido de sábado, beijando a camisa com o símbolo do time do coração, seja alvinegra ou azul celeste, ou mesmo, vermelha e branca, o time do coração, nem sempre o campeão, todos adeptos do pão e circo do futebol.

E então percebo um vulto que solicita um trocado, a incomodar-me, com sua roupa suja, sua fala sem nexo, seus fonemas embolados. Estendo negativas, mantenho a distância, minha frieza o intimida, e ele desaparece nas ruas estreitas.

Inútil esperar policiamento.

Lembro de outras tardes de sábado, quando voltava do Campus e ainda saía na noite, ao lado de Darío, ou de Naína, deixando o cansaço na brisa noturna. E vou pisando em poças d’água e alma. A chuva vai se animando. Mas tudo bem, um bom banho quente vai aliviar o cansaço do corpo (e quiçá da alma).

Estava aqui a escrever, quando apareceu o Flávio. Ele e o tabuleiro de xadrez. Insiste em ensinar-me o mais cerebral dos jogos. Anoto que comecei com um peão e depois o peão da rainha. Ele move o peão do cavalo do rei e depois o bispo do rei. Flávio está agitado. Trabalho, faculdade, família. O namoro com Stella. Que ela é um doce de garota, mas às vezes falta empolgação. Mas amor é assim, uma chama que vai se apagando. Para ele tudo é um peso, tudo pesa e o esmaga. Enquanto eu vivo na leveza, a insustentável. Ele sob o peso (as muitas toneladas) da vida social, das convenções. Eu às voltas com minha liberdade, áspera, de tempo livre, vivendo de Bolsa estudantil, de aulas particulares. O Flávio ainda sufocado na prisão acolchoada.

O que aflige o Flávio é o seguinte: “o saber e não poder mudar”, ou “saber não causa mudança, a menos que todos saibam”, ou ainda, “Ou a mudança é social, ou não há mudanças; se você propõe mudança e não há alcance social, você está sozinho. É declarado subversivo, e será isolado, quando não eliminado.” E o Flávio move o peão do bispo da rainha DELE.

“Ora”, eu disse, “o cara precisa saber a quem tal conjectura de ‘desordem e regresso’ é lucrativa. Mas quando descobre, logo se alia aos ‘manda-chuvas’, pois é assim que se recheia o cofre. Afinal, você vai remar contra a maré? Você, pobre pulga, vai desafiar o elefante?”, e ele, “Pois é, o cara sozinho nada significa. Fica louco, ou dizem que ele é louco. Ou mete uma bala na cabeça. Seria mais individualismo, e o que importa é a mobilização social.”


Eu, meio que recriminando, “E você que continua a andar com esse Augusto! O indivíduo perfeito, enquanto consumista! Individualismo, quando? Só vejo a ‘massa de manobra’. Antes indivíduos íntegros, plenos de si mesmos, e não seres fragmentados, incompletos, que precisam consumir para se satisfazer. E jamais serão satisfeitos! E também o problema não é o materialismo, como aí pregam os religiosos...”, e eu movia o cavalo do rei.

Ele, “Sei o que você vai dizer. Que espiritualismo é regresso, que é esperar o mundo-do-além, num resignar-se agora. E o materialismo? O que o Everton dizia? O materialismo é o trabalho, a transformação, o progresso. Que nunca se produziu tanto, mas também nunca se concentrou tanta riqueza para alguns.”

Eu, de olho no bispo da rainha DELE, “O bolo cresce, mas na hora de dividir, alguém carrega cobertura e recheio.”

Ele, prevendo minha jogada, “E aqueles sujeitos, lá na faculdade, todos cheios de si, prontos para apontar o dedo, filhos da burguesia, ou sociólogos de classe média arruinada, enquanto sociologia burguesa legitima a desigualdade.”

Eu, “Você criticaria a estrutura que favorece a sua classe? Se o jogo favorece os seus interesses, então mascaram a falta de oportunidades. Imagine os tantos Einsteins que podem surgir caso houvessem bons livros, cursos e professores! O garoto nasce com um cérebro calibrado, mas jamais vai abrir um livro de álgebra! Entende? Os homens são desiguais pois desiguais são as oportunidades e suas posições na sociedade, esse imenso tabuleiro de xadrez!”

Ele, de olho na rainha, “Mas as pessoas não são iguais. Algumas são mais simpáticas, até carismáticas! Gênios! Outras são apagadas, ‘sem sal’. Comuns. Uns mais líderes e ambiciosos que outros. As pessoas não são iguais. Os serviços prestados também não. Digamos que os meus restaurantes têm um melhor atendimento ou um melhor tempero ou um menu mais exótico... ou uma atendente mais jeitosa.... Isso fará com que o restaurante lucre, afinal será mais bem freqüentado do que outros. Eu ficarei rico e os concorrentes em apuros. O que o Estado social poderá fazer para impedir a desigualdade?”, e moveu a rainha, “Pois nesse Estado, de ideal marxista, não há lugar para os ‘golpes de mestre’, onde não encontraríamos um Henri Ford, por exemplo. Um sujeito para pensar além do seu tempo e criar algo novo, um empreendedor! Pois se o Estado fornece tudo e acomoda todos...”

Eu, preocupado com a rainha DELE, “Olhe, Flávio, muito cerebral esse seu argumento. Coisa fina. Mas você está muito preocupado com o Estado! Como se o Estado fosse o ‘grande Pai’, sei lá. O Estado só coordenaria, apaziguaria... Nada daquele Estado totalitário. Agora, se o tempero do seu restaurante é melhor do que o da esquina, então merece ser mais bem freqüentado. O Estado interviria se você quisesse comprar o restaurante da esquina e começasse a monopolizar o mercado de refeições, ao formar um cartel, algo assim...”

E eu percebo que há um bispo ameaçador. E que tenho o rei em maus lençóis. É sempre assim! Eu m empolgo com a discussão, e descuido da defesa, “não se deixe corromper por quem ‘puxa os cordões’”. Ele prepara o grand finale, “E fique longe da banda podre.” Preciso aceitar o xeque-mate.

Abril/2001


Medidas de segurança em Quebec. Cúpula das Américas. Chefes de Estado, e diplomatas, e funcionários, e delegados, e jornalistas, e muitas outras sempre ocupadas autoridades, entre miríades de documentos e propostas aguardando assinaturas.

Os manifestantes parecem que saíram daqueles filmes dos aos 70, naquela paranóia do Vietnam, com sua juventude de brados heróicos, em roupas coloridas, cabelos revoltos, em pregação por valores ditos alternativos, em vontade de deitar no verdejante relvado da natureza e declarar o entranhado ódio a todas as máquinas.

E enquanto estimam a multidão (ou multidões!) de quinze mil manifestantes, as autoridades movem as peças do tabuleiro e deslocam a infantaria de oito mil policiais para a área de segurança.

A-20. Lojistas protegem as vitrinas com medo de quebra-quebra. Quebec se transforma numa cidade sitiada. Governantes prometem ouvir representantes de ONGs, numa esperada Cúpula do Povo. Coitado do povo, não podemos deixá-lo sempre excluído! Mas os ativistas não querem migalhas e denunciam que o tal tratado de livre comércio visa a estabilidade apenas das empresas, que seriam garantidas contra ações sociais e medidas governamentais de seguridade social. Ou seja, nada pode limitar os negócios, nada pode barrar os lucros!

Mais multidões com macacões de operário, óculos de natação, capacetes de pedreiro, máscaras contra gás e botas militares.

Mas para quê, meus caros, se a própria cúpula reconhece não ser relevante, para quê? Gostam tanto assim de balas de borracha? Ou das lágrimas lacrimogêneas? Ou das carícias das forças policiais?


[...]


LdeM

sábado, 14 de agosto de 2010

Capítulo 6 de Náuseas de Estudante (início)


Capítulo 6

Quando o Sr. Carlo Pimenta, célebre poeta beatnik e membro honorário da sociedade dos orquidófilos, alcançou o cruzamento da Afonso Pena com Bahia, atento ao movimento de fim de tarde, ali no mercado das flores, foi (riscado) então abordado por indivíduos (riscado) elementos suspeitos foi quase atingido por um veículo de placa fria em alta velocidade que, desrespeitando afrontosamente o sinal vermelho, avançou faixa de pedestre adentro. No entanto é digno de nota que o prezado Sr. Pimenta tenha se safado desta, ainda que tenha perdido seu guarda-chuva de estimação esmagado (riscado) agora destrambelhado no asfalto.

Assim é o primeiro parágrafo do conto que HD rabisca frenético durante a aula de Metodologia, indiferente ao mal-humor da professora ou à curiosidade do rapaz de cabelos espetados na carteira ao lado.

Isso quando não mergulhava em leituras labirínticas, também a procura do Castelo, junto com os acólitos de Kafka, ou em suspeitas diante de Capitu, cúmplice do Dom Casmurro no enigma do Machado.

Leituras sem qualquer método e que se perdiam no caminho. Ficou uma semana contando para si mesmo o enredo de Ulisses, de James Joyce, aquele escritor irlandês, o mesmo que o poeta Ezra Pound considerava como a salvação da literatura.

O caso é que foi certeiro até o episódio do lanchinho no Barney’s, “sanduíche de queijo e um Borgonha”, depois na Biblioteca se perdeu entre os volumes de Platão e Aristóteles, esqueceu as peças de Shakespeare, as falas de Hamlet, ou Hamnet, figuras já confusas!, o pai que não é pai sem o filho que luta para consubstanciar-se com o pai... E aí, no labirinto das ruas de Dublin, trocou o nome das personagens, esqueceu quem era o padre e quem era o agente funerário, quem era o trapaceiro e o advogado. (“Quem era o homem com o impermeável – lá no cemitério?”) Meio ao desfile, a cavalgada alucinada do Earl (Duque?), HD quase foi pisoteado pelos cavalos! Na sala de concerto, meio aos comes-e-bebes de Bloom, num hotel decente, tanto era melodia que se tornou um ruído.

Aquela risada da Naína.


Sim, pois o que ele sentia pela colega? Naína não era o destino, mas uma ponte. Mas uma ponte para onde?



Andanças. HD empurra o corpo adiante ao pináculo do templo, digo, do alto do Shopping, onde Naína não estava, onde tocava Tears for Fears, “Advice to Young Hearts”, onde um casal se esfregava junto ao bebedouro.
Andanças, pois ele já não tinha paciência. Tênis e sensações à mostra. Um sorriso à suaves prestações. Compre hoje e pague na Copa de 2002. Promessas de virilidade encarnadas num blazer novo.

Uma linda morena estende os braços no stand de chocolates finos. Mas ela não é Naína. O que significa Naína? Ou antes, a ausência de Naína?

Naína e o carro que papai deu de presente. Mas o carro está na garagem. Ela não tem carteira. E ele nem sabe qual pedal é o acelerador. (Apesar de Flávio ter prometido algumas aulinhas de direção...)

Chocolates finos. Bombons com licor de cereja. Linda, a morena. Brincos discretos. Mas (ele insiste) não é Naína! “Come, chocolates, pequena...”, soam os versos de Pessoa.

Aí Naína tira a carteira e chega balançando as chaves. Ele morre de inveja! Afinal quem dirige é o homem! O namorado conduz a namorada em seu conversível. (Ah! o excesso de filmes ianques dos anos 80! Aqueles onde jovens se divertem a doidado, e matam as aulas para namorar no drive-in!)

Então (eu já disse) ele ficou com inveja e o caso foi para o limbo. Ela é quem dirige? Ela é quem oferece carona? Ela é quem mora no Gutierrez? Ela é que é filha de uma médica e de um advogado? E ele? Mora em pensão, vive de Bolsa estudantil, da pouca mesada do pai funcionário público, ou da mãe pedagoga, desempregado por ciúmes do gerente (que agarra a recepcionista!), jogado num curso de Ciências Sociais, numa cátedra de História, pensando em ser professor!

Mas ela agita a chave entre os dedos e oferece carona. E ele aceita? Não, limita-se a agradecer, mas é que precisa terminar o resumo sobre o Período Brasil-Império. E sábado à noite? Não, não vai dá, e o trabalho sobre a Revolução de 1930? Pó, ela é que toma a iniciativa e ele é que recusa!

O fato é que ele nunca entrou no carro da Naína (e tratava-se de um modelo nacional, estilo gota, uma fofura aquele vermelho claro!) e se afastou (ele se afastou!), em traumas, sem mentiras esfarrapadas, mesmo naquele dia em que ela foi de vestido vermelho (mais rubro que a tonalidade do carro!) parecendo a Marylin Monroe (uma Marylin não loira, mas com traços indígenas!) e ele ignorou (ignorou o fato explícito de que ela fora assim vestida para contra-atacar!) pois agora (que ela estava apaixonada) ele nada mais senti do que inveja.

E foi assim que HD perdeu a oportunidade de ascender socialmente! Escalar os degraus até a classe média belorizontina, através de um casamento tradicional (pois Naína era um mulher para casar!) com o futuro garantido e apartamento no Gutierrez!

Mas tudo isso porque a morena – ali a oferecer chocolates finos e bombons com recheio de licor de cereja – não é (e nunca seria!) a esperada Naína. Que ele sabia que não viria (ele sempre soube!), ela que, não exatamente por orgulho, ficara magoada. É que ela percebera a mesma distância, o mesmo fosso social...

“Aviso aos corações jovens
Um dia vocês estarão velhos...”

HD resolveu subir ao alto das antenas, de onde, no ondular das serra, poderia sentir a cidade de Belo Horizonte aos seus pés.

Por que lá encima, tendo a cidade aos seus pés? Ansiando por visões de totalidade? Ele que não hesitava diante de um abrigo no passado, como fizera aquela manhã, mergulhado nos livros, e suas imagens de outrora, ali no Museu Abílio Barreto, um oásis de memória num deserto de esquecimento.

Um lar para o historiador, cujo trabalho é manter viva a memória, e as mil interpretações, dos fatos que estão sepultos sob o asfalto e as escórias do dito progresso, onde uma fragmentação, descontinuidade obsessiva cria um vazio de identificação, onde novas gerações desconhecem os feitos e opiniões das gerações passadas. Que pesam sobre as mentes dos vivos...

Mapas, planos, projetos, croquis, escalas, ampliações, maquetes, fotos de daguerreótipo, imagens já amarelecidas que lembram o Capital brotando de um imenso canteiro de obras, onde homens grávidos de idéias pretendiam erguer a cidade planejada, e seu gigantesco tabuleiro de xadrez, a Cidade de Minas, antigo Curral Del-Rey, enfim Belo Horizonte, com a muralha protetora da Serra do Curral, com o cartão-postal da Estação Ferroviária, do prédio dos Correios, do Palácio da Liberdade, a sede do Governo Estadual; além dos jardins da Praça da Liberdade, ao estilo parisiense, e o Parque Municipal que, se não desmembrado, engolido pouco a pouco, seria o nosso Bois de Bologne; além dos retratos dos construtores e outras personalidades de Ouro Preto, antiga Vila Rica, e fotos de bondes, e da alameda que era a Afonso Pena, coberta por imponentes fícus – todos sacrificados! – e fotos de antigos bares, o Estrela, onde Carlos Drummond e Pedro Nava se encontraram, onde hoje é o imponente Hotel, outro cartão-postal, e também do coreto do Parque Municipal, e o Viaduto Santa Tereza, além de beldades, fotos do Acaiaca, fotos da Lagoinha, do Calafate, do Funcionários, fotos e fotos e todo um passado saudosamente degustado como um bom romance, mas com a vantagem de ser real. Mas, ele – ele! – só tinha vinte anos!

Ele, um belorizontino da gema, mas educado sob a fuligem da siderúrgica de nome alemão, ali, não exatamente atolado, mas num ‘barreiro’ periférico. Antes o Barreiro fosse independente (havia quem fizesse campanha para isso!) e ele estaria na elite. Ou pelo menos mais próxima dela. Mas o que era o Barreiro?

Ora, onde ele vivera! Atoleiro mais velho que o Curral, abençoado pelos braços abertos do Cristo pálido no alto dos Milionários, bairro ou cidade, recortado por ferrovias onde locomotivas histéricas rasgam a noite.

Mas onde a prometida estação do metrô? E a faculdade?

O problema da periferia era um só: ser periferia!

Mas lá de cima ele via Belo Horizonte, a cidade planejada, nascida de um papel e uma canetada, dama requintada, a seus pés! E um vento numa zombaria carregando seus risos de satisfação.



Janeiro/2001


Davos prepara-se para a batalha. A Suíça um país tão pacífico! Chefes de Estado, representantes de mega-corporações, delegados, secretários, investidores, publicitários, além de outros especialistas, preparam-se para a papelada do Fórum Econômico Mundial, que descubro hoje acontecer desde 1971, feito de números e promessas.

Mas aguardem a reação! Em Porto Alegre, no aclamado Fórum Social Mundial, ativistas preparam a imagem invertida no espelho. E já armam suas redes na sombra e aguardam ansiosos os esperados discursos das esquerdas.

E as autoridades já se preparam para expulsar um arruaceiro francês que sai pelo mundo devastando lavouras de transgênicos! Ei, mas não é o mesmo que andava detonando as famosas lanchonetes fast-foods?! Com aquele jeito de Asterix contra os romanos (“Esses romanos devem ser loucos!”) Ah, se o Henri estivesse aqui!

Isso enquanto o pouso suave da água norte-americana não será nada suave, e o dólar sobe, e a vaca louca enlouquece, e discute-se a tal “segurança alimentar”, os canadenses recusam a carne bovina brasileira, e a Argentina descarta negociação bilateral com os ianques, ansiosíssimos quanto a área de livre comércio. Mas quer maior livre comércio do que os colonizados, sempre de mercado aberto, à serviço dos colonizadores com seus mercados protecionistas?, já diria Flávio, todo empolgado, passando do espanhol para o inglês e arriscando ofensas em francês (os de Quebec bem que merecem!)

Anistia e ONGs criticam repressão em Davos. Forças policiais fecham as fronteiras, revistam e deportam manifestantes, aí a Anistia exige liberdade de expressão, e as ONGs denunciam que há um Estado policial”, e agricultores continuam em protestos contra as plantações de transgênicos, e o anti-Davos Fórum Social fala em uma “sociedade civil global”, e Eduardo Galeano lê trechos de seu livro “Patas Arriba”, pois tudo está mesmo ‘de cabeça para baixo’, aí eu vou até começar a ler este livro! Aquele amigo argentino do Flávio, o Alonso, Ruy Alonso, não teria um exemplar?






Foi Darío Sabine quem marcou o encontro. HD lembrou que passaria nas bibliotecas. Mas acabaram se encontrando no Bandejão da Faculdade de Direito. HD seguia pela Augusto de Lima e Darío Sabine descia a Álvares Cabral.

- “Quando do comida aos pobres me chamam de santo. E quanto pergunto por que não têm comida, me chama de comunista.”

- De quem é essa?

Estavam na fila do Bandeja. Darío de olho nas saladas, e HD atento aos bolinhos de carne. Obviamente, Sabine continua vegetariano convicto, natureba clássico, mas sem entrar para o Partido Verde.

- Do Helder Câmara. “La caridad consuela, pero no cuestiona”, Eduardo Galeano.

- Certo, certo. – HD se apossando dos bolinhos – Pois a caridade é vertical, de cima para baixo, mas a solidariedade é horizontal, de igual para igual.

Darío Sabine concentrava-se na salada. HD ocupava-se em estranhas cirurgias nos bolinhos, mas sem deixar de falar. – Mas ele era mesmo comunista? Digo, no sentido de comunismo enquanto ideal cristão, que os ateístas se apropriaram, etc. Entende? A aproximação é fraternidade, a solidariedade cristã. O Boff, você sabe, sempre defendeu. Mas fragiliza a moral laica. Apenas sou solidário se aguardo a recompensa no Paraíso? E deixo o inferno aqui na Terra?

Como da outra vez (vocês certamente se lembram) o prato de Darío cede espaço ao vazio e o de HD continua cheio. Darío então começa a falar para que HD possa então dedicar-se aos bolinhos.

- O problema é que o socialismo resvalou em estatismo. Lembra do Everton? Chamava o Stalinismo de Fascismo de Esquerda, Totalitarismo de Esquerda, esses rótulos. E o Cristianismo (você leu isso em Weber!) com sua ética protestante deu impulso ao espírito do Capitalismo.

- Falta de coerências, é isso? Tipo: fascismo com apoio das massas e democracias com despolitização graças à mídia de massa? Mas e o cristianismo enquanto pelego da competição egocêntrica capitalista? Uma espécie de amortecedor pseudo-ético, “Meu Reino não é deste mundo” ?

E HD esquecia-se de comer.

Mas ambos se lembravam de Celso, anti-democrata, anti-iluminista, fundamentalista-cristão, pretenso poeta, futuro padre. Alex tentava se fazer entender. O mesmo Alex que sumira, mas que, quando a saudade atingisse o ápice, voltaria. (Até mais rápido do que imaginavam!)

Alex, concluindo um raciocínio: - E considerando-se o formalismo russo...
Celso já cortava. – De formalismo a poesia está farta! E de russos já me basta os comunistas. Coisa de ateus. O próprio Dostoiévski, que os desprezava, dizia, “Se Deus está morto tudo é permitido”. Se Deus está morto, então que exista Stálin! Alguém precisar representar a autoridade. O povo precisa de autoridade! De um líder, alguém, ou algo, ao qual obedecer, tal um rebanho precisa de um pastor. Comunismo? Nem o dos doze apóstolos! Afinal alguém – e logo o traidor! – não tomava conta da bolsa?

E começava a narrar um caso hipotético (ainda bem que hipotético!) onde apresentava uma dona-de-casa, mãe amargurada e ressentida, que cansou-se de servir ao marido na mesa e na cama, a tornar-se altamente repressora, governando os filhos com punhos de ferro, controlando seus gestos e preferências sexuais. E a dona-de-casa defende que os bandidos devem ser colocados em campos de concentração, os assassinos merecem a pena de morte, os estupradores devem ser castrados, os ladrões sofrerem com as mãos cortadas, os desempregados levarem surra para ‘tomarem vergonha na cara’. Diz tudo como se os desempregados fossem os culpados e não as vítimas. E proclamaria, se subisse ao poder, que o melhor programa cultural é a novela das seis. E que um dever (por excelência) a freqüência às missas, a doação de esmolas e o beija-mãos, do padre, principalmente.

E continuava a hipótese (ainda bem que apenas uma hipótese!) onde a tal dona-de-casa sobe ao poder, sei lá, vira senadora vitalícia que nem o general, ou presidenta, ou primeira-ministra, dama-de-ferro que nem a Tatcher, uma ditadura fazendo o figurino Hitler de saias! E então veremos a mulher, antes oprimida, tornar-se opressora, numa pavorosa alquimia, transmutando ressentimento em dominação, tão zelosa quanto antes quando limpava a poeira dos móveis. Estabelecerá horários, toques de recolher, proibirá casas de show, instituirá o catolicismo como religião única, perseguirá os ateus e outros hereges, eliminara os bandidos e os preguiçosos, os vagabundos e os filósofos! E as novelas seriam reescritas e transformadas e meio de educação, programação única na TV, pois telejornais e debates são chatices. E os galãs e as mocinhas distribuirão, junto com os seus sorrisos, pérolas da sabedoria e da moral!

- Pesadelo!

- O Celso é um carola louco!

- E o Alex?

- Ah, daqui a pouco ele aparece. Hum! Esse bolinho está ótimo!

“Pacato cidadão, te chamei a atenção
Não foi à toa, não”

Alguém cantarolava, acompanhando ao violão, lá fora, junto às escadas. Um reggae do Skank.

HD percebia a atenção de Sabine, e comentava. – Mas não é que o louco do Celso tem razão! O povo prefere a autoridade. Só funciona à base de pancada. A ordem estabelecida torna-se norma. O povo aceita o que aí está, não luta para mudar, para atingir o que devia ser!

- E nem precisa de muita repressão. A coerção é internalizada. O medo é mais forte. Sufoca até os querem lutar.

“C’est fini la utopia, mas a guerra todo dia
dia a dia não”

- Eu quero o meu, logo defendo a propriedade. Mesmo sabendo que a distribuição da mesma é assustadoramente desigual.

- O pior é que o cidadão não se reconhece como sujeito social. – Sabine precisava falar senão HD não esvaziava o prato. – Não se percebem enquanto agentes e criadores da realidade na qual vivem. E o cidadão não pode nem imaginar em ficar indiferente numa democracia, onde se requer participação!

- Sei, sei. Só os sistemas autoritários, fascistas, ofertam aquele pseudo-sossego de resolver os negócios dos cidadãos, aliviando-os do terrível fardo de precisarem decidir por si mesmos!

- O proletário não percebe que é ele quem cria a riqueza social, ele é o produtor. E as chamadas ‘classes produtoras’ são meras investidoras, detentoras do capital...

E assim didáticos, enquanto ao redor os futuros advogados cantarolam o “pacato cidadão”, ou piscavam olhares à colega da classe de Direito Civil ou de Metodologia Científica.


[...]


LdeM

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

final do cap. 5 de Náuseas de Estudante

(...)


Darío acomodou-se na segunda cadeira, enquanto Alex folheava um opúsculo sobre o teatro inglês da época de Shakespeare.

- Esses literatos! Veja só o Borges! O argentino bibliófilo! Anos 40, desbravando a cena européia com conferencias sobre autores norte-americanos, Edgar Allan Poe, Emerson, cultura anglo-saxã, Beowulf, Sagas nórdicas, além de Keats, Lovecraft e Kipling! Hoje o que vemos? O especialista! O estudioso das entrelinhas de Proust, os experts nos diálogos de Hemingway, o erudito nos construtos lingüísticos de Joyce...

- Ou expert no capítulo 2 de “À Sombra das Jovens Em Flor”, ou especialista no capítulo 12, na Parte Dois do “Ulysses”!

E Alex sorria, desistindo da leitura, olhando ora para um ora para outro.



Razão e racionalismo. De onde vem a Razão? Quem, ou o que, a legitima? É ela deusa-soberana? Coerência. Lógica. Pois bem. GESTALT, a necessidade de Boa Forma. Quadrado quadrado, círculo circular, nuca redondo o suficiente. Formas Ideais, platônicas. Idéias são lembranças. GESTALT inscrita em bases fisiológicas? Ora, estou parecendo o Kant! Cheio de idéias na cabeça! Só falta a câmera na mão! Mas aí já é o Glauber!

(esboço para um ensaio)



- Sabe, Darío, a gente morre de medo. A gente lê Nietzsche, a "vontade de potência”, lê auto-ajuda, levanta com o pé direito, sentindo-se audacioso, aí um cidadão te pára na esquina. É um ladrão? Não. O sujeito até ironiza sua desconfiança. Explica a situação, que está desempregado, que está voltando pra casa, precisa de dinheiro para ir de ônibus, e a nossa caridade enfia a mão no bolso e distribui três moedas. Ele agradece e se vai. Ufa! Que alívio! Aí, dois quarteirões depois, diante de um ruidoso templo, um crente com suas inconveniências, oferecendo jornais fundamentalistas com a maior ‘cara-de-pau’, a perguntar se conheço Jesus. Claro! Quem não conhece? Não estamos na ‘civilização cristã ocidental’? e sigo andando, ele ainda me acompanha, dois, três passos. Estendendo a mão (espero que em bênçãos), ele então desiste.



- Assim como o estoicismo resvala em ascetismo, o epicurismo em hedonismo, a teologia resvala em demonismo.

- Daí o estudo sobre as descrições do Inferno em “O Retrato do Artista Quando Jovem”? Do Joyce...

- E também em “A Peste”, do Camus, e em “O Nome da Rosa” e “A Ilha do Dia Anterior”, obras do Eco.



A religião enquanto “cimento social”. Argamassa simbólica. Será que Deus está realmente morto? Inércia Social ou Busca do Sentido? Existo, logo acredito.

A família reunida. Aqueles almoços de domingo. Alguém comenta a missa e o blábláblá do padre. Pede sua humilde opinião, ele pergunta sobre o tempero do assado.

Titia, muito católica, distribui porções. Com aquele olhar. “Inquisição – queime comigo!” Coitado do meu sobrinho descrente. Vai sofrer tanto na vida. Um olhar de piedade. Até cristã. Oh, como toleram o jovem infiel! Que Deus tenha piedade. Oremos!



Todos têm fé. Não exatamente fé em Deus. Mas se não fé em si mesmos – pelo menos fé na superação de si mesmos.

(folha solta no diário)



O esfacelamento pós-moderno das ideologias universais

Habermas. A Busca do Sentido. O Sentido é consumir? Consumismo é a minha fé. Tudo à venda. Habermas, Adorno, Walter Benjamin. Comprar todos os livros.

Socialismo: Utopia? Estatismo nacionalista: barbárie? Teoria Crítica. Ação Comunicativa. Diferença e Tolerância.
Os tolerantes precisam tolerar até os não-tolerantes? Os multiculturalistas devem aceitar até os não-multiculturalistas, os fundamentalistas?

Stálin cometeu o mesmo erro de Robespierre: o terror. Voltar-se contra todos, inclusive os aliados. Paranóia e suicídio. Os comunistas-soviéticos repetiram o terror jacobino e assim fortaleceram a contra-revolução?

(notas para um ensaio)




- Sabe, meu caro Sabine, o mito é mais fascinante que o personagem histórico. Vide os revisionistas, desde o David Strauss, aquele teólogo que submeteu os Evangelhos à uma crítica histórica.

Darío concordava, em silêncio, na escuridão.

- O que Jesus pregava era um espécie de “desobediência civil”. Você já leu Thoreau? – continuava HD com lentidão, como se num imenso esforço. – Algo semelhante o Gandhi ousou em nosso século que agora finda. Aquele lance da “segunda milha”. Se te obrigarem a andar uma milha, ande também a segunda milha. Andar por vontade o que crêem estar te obrigando. Isso é mais do que desarmar o inimigo, é constrangê-lo!

Pausa.

- Imagine o sorriso superior do romano, julgando te humilhar, e diante de teu oferecimento para seguir a segunda milha, o desconforto, o inusitado da coisa! Não és servo, és um voluntário, a andar duas milhas! Agora a obrigação tornou-se a tua missão, a tua realização pessoal.



Concentração de Renda no Brasil. 15 % do PIB para os 1% mais ricos, 12% do PIB para os 50% mais pobres, 73% do PIB para os restantes 49%.

(anotação no caderno de Economia, em folha semi-rasgada.)



A democracia só é possível com a igualdade social. Um socialismo autoritário (Estado forte na mão de poucos) levaria à um igualitarismo econômico, à um Welfare State mais amplo, mas não a uma democracia socialista.

O Estado, dito liberal, não é imparcial como julgam alguns. É sustentado e regido pelos proprietários e privilegiados.
Para legitimar uma Revolução é necessário deslegitimar o Estado e derruba-lo, a fim de criar um outro menos piramidal.

A democracia no século 20 sofre uma crise de legitimidade devido a crescente influência do poder econômico nos tramites políticos. Vide os lobbys, os subornos, os monopólios.

Mudanças estruturais, não mudanças de gerentes num jogo de poder, eis o que somente uma Revolução pode desencadear. Mas quem vai fazer a Revolução?




- E se pensarmos a independência política do Brasil não em setembro de 1822, mas em 2 de julho de 1823.

- Está vendo? O mito, o símbolo é mais forte. Lá está o príncipe em seu cavalo branco, com a espada em riste, gritando a plenos pulmões, em nome da Liberdade!




(No caderno de História. Segunda folha. Rabiscado à caneta vermelha.)

Gibbons, “A Queda do Império Romano”; Toynbee, “Estruturas Históricas”; Hegel, “O Espírito Absoluto movimenta a História”; Marx, “A luta de classes é o motor da História”; Tocqueville e a análise social; Spencer e o evolucionismo histórico. E o Pareto?

Dilthey, Croce, Vico. Ortega y Gasset.

Leopold von Ranke e a história factual. Culturalismo germânico. Wildeband Cassirer, Max Scheler, Alfred Weber.

Comte e o Positivismo. Estado Teológico, Estado Metafísico e Estado Positivo.
Cientificismo: análise social à luz da Ciência. Sucessão de fatos históricos:
Cadeia histórica: contexto: a História explica a História.

Escola de Annales. L. Febvre, Marc Bloch, Jacques Le Goff.

Estruturalismo. Levi-Strauss.

Braudel. Foucault. Norbert Elias e a história das mentalidades.

Sérgio Buarque de Holanda. Peter Burke. Eric Hobsbawn. Hélio Jaguaribe.

Francis Fukuyama. O Fim.



O Estado de Bem-Estar Social (Welfare State) pretede ser um capitalismo reformado, um capitalismo com preocupações sociais. Com apoio social-democrata foi bem-sucedido na Europa nórdica e renana.

Procura um certo acordo entre as esferas produtiva e social.

O Estado propõe ser o mediador dos descompassos/conflitos surgidos entre o capital e o trabalhador. Seu lema é o desenvolvimento com paz social, em sua exploração
soft, apaziguando a classe operária sindicalizada.

(trecho de ensaio – manuscrito)



- Aquele que não joga o “jogo social” ( você já leu “Homo Ludens”? ) é governado e humilhado por aqueles que jogam. – diz a voz no escuro. – E veja: o jogo em si-mesmo é indigno e mesquinho.



Neoliberalismo: a onda neo-liberal vem atuar na privatização dos dispositivos da seguridade social, que ampara o trabalhador diante do desemprego estrutural.

Sem seguridade social, aumenta sensivelmente a insegurança e a criminalidade.

Mas o capitalismo não se mantém sem o Estado, pois quem lucra é o capitalismo, e quem paga o prejuízo é o Estado.

(trecho do ensaio “O Capitalismo sobrevive sem o Estado?”)




(Ainda no caderno de História. Na contra-capa)

Guerra do Paraguai. Militarismo de Canudos. Comunismo Cubano. Holocausto. Operação Condor. Ditadura Chilena. Neoliberalismo. Questão Palestina. Eleições Norte-Americanas. Eleições Francesas.

Cômico. (Se não fosse trágico.)



O Neoliberalismo se ergueu depois da derrocada da Social-Democracia e seu Welfare State, onde o Estado regulamenta o Mercado.

Os neo-liberais ‘soltaram’ o Mercado, que, livre, auto se regula, no sentido do lucro e da expansão (mundialização/globalização)

Não é o mercado para servir os povos, e sim os povos meros escravos do mercado.


(trecho do ensaio “O Capitalismo sobrevive sem o Estado?")




- O Brasil é o inferno dos negros, o purgatório dos brancos e o paraíso dos mulatos e mulatas.”

- Você e as citações! E de quem desta vez?

- Li no Vianna, mas deve ser do Antonil.


Neoliberalismo: preservação da Coerção sutil para continuarem a ajustar os acordos – somente liberdade para se integrar e consumir. Opressão policial e flexibilidade comercial.

(trecho do ensaio “O Capitalismo sobrevive sem o Estado?”)



(Livros empilhados sobre a mesa)

Guerra e Literatura. “Nada de Novo no Front”, “Adeus às Armas”, “Os Quatro Cavaleiros do Apocalipse”, “Por que os sinos dobram?”, “Com a Morte na Alma”, "Kaputt", “A Pele”, “A Guerra em Surdina”.




- Você já leu o Gabeira?

- “O que é isso, Companheiro?”

- É. Sobre a militância. Mas depois de Malraux, temos Régis Debray.

- Sei.
- O Malraux do “A Condição Humana” e o Debray de “ A Neve Queima”. Mas diga-me, Sabine, qual militância sobrou pra gente?



Egoísmo. Individualismo. Hedonismo. Capitalismo.
Altruísmo. Coletivismo. Ascetismo. Comunismo.



HD - História: tem um sentido? Ei, Darío, o que te apavora mais? Que a História seja um imenso Acaso, cai e levanta e cai, um sem-sentido, OU que a História tenha um Propósito, uma Providência, um Demiurgo, uma Conspiração? Tantos essencialismos, nominalismos, historicismos! que o digam o livre Rousseau e o digníssimo Sir Karl Popper!

Darío - Uns louvam o passado mítico, outros são progressistas. Platão e o “admirável mundo novo”? Mussolini é o “Grande Irmão”?

HD - Platão e a Forma Ideal e a Decadência: aristocracia, oligarquia, democracia, tirania. Marx e “luta de classes é o motor da história": comunismo primitivo, escravidão, feudalismo, aristocracia, capitalismo, ditadura do proletariado, comunismo, fim da História.

Darío - E o Vico? Giambattista Vico? O Joyce que era fã...

HD - Vico? O da História ‘circular’? Idade dos deuses, idade dos heróis, idade dos homens; isto é, era teocrática, era aristocrática, era democrática, e então uma era do caos, e tudo de novo! As espirais do “curso e recurso”...

Darío - O Vico não veio depois do Descartes? O Descartes que não acreditava na História, puro “conto da carochinha”... Mas, pense, Vico nem cartesiano, nem renascentista, nem barroco, nem iluminista.

HD - Certo. Li algo do Vico. Que o distintivo dos seres humanos são a criação de três fundamentos, na fundação da cultura, a saber, religião, o casamento, e o sepultamento dos mortos. Que os grupos humanos desejam primeiro o que é necessário; depois,o cômodo, proveitoso, e em seguida, o luxo, o excedente. “Scienza Nuova”, três edições, a obra de uma vida...



O intelectual sério, racional. O intelectual como reação ao intelectual sério. Já permitem anedotas no início das palestras.”

(anotação deslocada no caderno de Sociologia)


HD - E o Pareto engavetado. O Parto da “luta de elites”. O que foi acusado de “fascismo”, é o verdadeiro contraponto de Marx, e sua “luta de classes”...

Darío - E o Honneth e a “luta por reconhecimento” ?

HD - Não complica. O aluno do Habermas, o da “razão comunicativa”? Mas e o Pareto? Aquela de que os homens têm sempre a própria interpretação dos fatos sociais, e que atrás de tudo existem os “elementos a-racionais”, impulsos de “ordem emotiva” na conduta social...

Darío - Impressão minha, ou tem algo de Freud nessa? Isso de irracional, de impulsos emotivos... O inconsciente? O subconsciente?

HD - Lembra mesmo! Essa de que somos “racionalizadores”, que logo armamos uma aparência “lógica e sensata” para as ações e reações puramente não-racionais...

Darío - Sei. As irracionalidades de Napoleão, de Luís 14, de Bismarck, de Pedro I, de Vargas, de Hitler, de Churchill, de Stálin...

HD - Hitler obcecado por Stalingrado...

Darío - Poderia alegar o petróleo do Cáucaso...

HD - Não que somente os grande vultos sejam loucos...

Darío - Mas as suas loucuras são as mais contagiantes.





Marx, Engels, Manifesto. Lidos. Bernstein, Kausty, Rosa Luxembrugo. Catalogados. Bukharin, Trotsky, Lênin. Arquivados. Adorno, Benjamin, Arendt, Lukács. Copiados. Marcuse, C. Hill, Hobsbaw, Gramsci. Retocados.

Democracia Socialista Multiculturalista. Totalitarismo de Esquerda. Centralismo Burocrático. Centralismo Democrático. Autoritarismo tupiniquim.

Capitalismo liberal. Capitalismo de Estado. Estado de Bem-Estar Social. Democracia Representativa.

Multiculturalismo. Particularismos. Etnocentrsimo.

Racismo. Anti-racismo. Ku-Klux-Klan, Neo-nazis. White-Power. Black-Power. Gangster-Rappers.



HD - O tempo linear e progressivo dos caríssimos iluministas? Hegel e evolução do “Espírito” humano e histórico? O “eterno retorno do mesmo” nas visões de Nietzsche? E nem vou falar nas profecias bíblicas e muito menos nas de Nostradamus! Mas, pense aí, Darío, e se tudo não passar de “ação e reação”, “causa e efeito”, nascido de caprichos de um Faraó, da cota de produção do maná, da dor de cabeça de um Sultão, da dor de dente de um César, da vaidade de um Luís 14, da dor de estômago de um Napoleão, da impetuosidade de um Lênin?

Darío - Você quer dizer: a importância dos padrões OU a interferência personalíssima dos “Grandes Homens”? E se ambos...

HD - Exemplos, exemplos! O Holocausto! O Holocausto foi um fato histórico, isto é, dentro da dinâmica da história, ou trata-se de uma ‘singularidade’, isto é, um desvio dos padrões, uma queda e retrocesso, deslocada e descolada dos demais “eventos históricos”? como fazer uma leitura “marxista” do fenômeno? Como transcender a “prerrogativa documental” para manter sempre viva a memória da “vergonha coletiva” ? O Holocausto foge à “narrativa histórica”? É um “evento-limite” como quer o Habermas? Como classificar esta “tragédia histórica”? este genocídio planejado e executado em “escala industrial”? como evitar sua “monumentalização” como temia primo Levi? E a “culpa coletiva”? Escute, Darío, você sente alguma “culpa” pela matança dos índios? Alguma “culpa” pela escravidão dos negros?


É proibido morrer!
Oh! Não, meu Deus, queremos viver,
não queremos ver mais alguém faltando entre os!
O mundo é nosso e nós o queremos melhorar.
Queremos fazer alguma coisa.
É proibido morrer
!”

(EVA PICHOVÁ, 12 anos, Praha, em 1939
no LAGER (Campo de Concentração) de crianças judias)



- Darío, te incomoda o escuro?

- Não, mas a luz dos crematório. A fornalha.



Sendo um povo nômade recém-assentado, os judeus temiam as grandes aglomerações, assim como temiam o mar, sendo habitantes dos desertos. Grandes cidades são dignas de horror. Vide Sodoma, Nínive, Babilônia, onde vicejavam todo tipo de perversões, possíveis no anonimato das multidões. Daí todo o provincianismo, tal um caipira numa metrópole. Eu sou o puro, enquanto aqueles das cidades são ímpios.”
(folha solta na apostila de História Antiga)



... quando criança eu me extasiava com aqueles filmes do Star Wars, ou “Guerra nas Estrelas”, como queira. Você sabe. Aquelas cenas de ação! Acrobacias e faíscas nos ares, e aqueles heróis com um brilho no olhar, aquela luta pela liberdade, tudo o que eu julgava ainda no futuro. Mas então descubro que tudo isso já aconteceu! Quantos heróis mortos nas belonaves! Sepultados nos fundos dos mares! Quantos jovens em chamas com seus aviões! Quantos guerreiros morreram agarrados aos seus fuzis, na defesa do que julgavam a liberdade! Daí a minha obsessão com a guerra, com a Segunda Grande Guerra, a chaga de Hitler, que foi a mais grotesca, a mais exagerada...

- A guerra total e final? O Armaggedon?



O que é pior (ou mais desesperador): que a história seja ordenada (por uma Inteligência Superior, Deus, um grupo de Senhores, os ditos ETs), e assim somos fantoches, OU que seja uma repetição de fatos ao acaso, e assim agimos no fatalismo?

Um controle na História? Do que? De quem? Ou se sem controle, uma fatalidade? A Liberdade nasce da Anomia?

Os grupos humanos fazem a História.” Que grupos humanos? Em cooperação ou em luta de classes? Luta nascida da escassez ou da abundancia apropriada por uns poucos? Onde a responsabilidade humana?

(anotado numa folha do diário)




FHC e a Teoria da Dependência.

Burocratas. Burguesia do Estado. Autoritarismo Tecnocrático.

Expansioismo Estatal. Estamentos Burocráticos.

Interesses Monopolistas.

O Estado Varguista Corporativista é desmontado sob o bordão: volta ao liberalismo.

Como entrar na globalização um país sem esfera produtiva competitiva como o Brasil?”


(plano de possível monografia)


Pensadores não-marxistas, com seu liberalismo com preocupações sociais, influenciados por Nietzsche ou por Freud, ou por ambos. Julgam-se liberais esclarecidos, tais os franceses Raymond Aron e Régis Debray. Ampliação do sistema capitalista para integrar os pobres ao mercado. Lembro os historiadores com visões anti-marxistas, negando a “luta de classes”, tais o brasileiro Hélio Jaguaribe, e o nipo-americano Francis Fukuyama.

No Brasil, além de Roberto Campos e Giannotti, temos José Guilherme Merquior, pensador e crítico literário, que deslegitimava tanto Marx quanto Freud. Este por causa do “irracionalismo”, e aquele por causa do “determinismo econômico”.

(trecho para nota de ensaio)




- E se eu abrisse as cortinas?

- Saudades do oceano de luzes? Os tentáculos da cidade. Postes até aonde a vista alcança. Luz néon. Vapor de mercúrio. Lembra-se do reveillon de 95, quando subimos até a pedreira?

- Lembro. A cidade aos nossos pés.

- Pelo menos uma vez na vida! Em total escuridão, mas iluminados por esperanças.







final do Capítulo 5





LdeM
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domingo, 1 de agosto de 2010

Cap. 5 de Náuseas de Estudante [cont]

[...]


Estava com sorte, pois foi logo informado de que Flávio se encontrava no escritório. Segundo andar, corredor, segunda porta à direita.

Diante da porta, palavras hispânicas. “Ya está bien! No te enrolles!” bateu. Flávio abriu. HD nem cumprimentou:

- Aula de espanhol?

- Sín, muchacho! Este aqui é Ruy. Del Plata.

Troca de saudações. Flávio estende um pires com uvas passas. Quieres? Sobre a mesa um jornal, as manchetes à vista. Crise na Argentina, Revolta na Palestina, Repressão na China.

- La verdad es que si yo fuera tú...

O fato é que Ruy tenta aconselhar Flávio quanto a um investimento, após discutirem as exportações brasileiras, as privatizações, como era exemplo a Companhia do Vale do Rio Doce, sob as pressões do FMI, diante das crises econômicas mundo afora.

E Ruy lembrava un poquito el señior Castillo, mas era só impressão, pois Ruy estuda Administração e nada demonstrava de esquerdismo.

Flávio é que se dava bem em apoiar os trabalhistas na Prefeitura, em alianças que muitos,logo de início, desaprovaram. Mas há sempre aqueles que manipulam a opinião dita ‘pública’ e alimentam as farsas políticas. Mas Flávio sempre tivera bons informantes (pois bons amigos é fato raro) e mantinha-se longe dos ‘abutres’ que cercam os arruinados politicamente.

O que HD imaginava, após tanta conversas sobre os bastidores da política, era uma obsessiva cena de um jovem parlamentar, cheio de ‘boas intenções’, sendo recebido por um parlamentar mais velho, mais experiente, que olha de cima, todo paternal, “Ora, meu filho, eu estou aqui desde que você foi desmamado, e você chega aqui falando em reformas? Ora, deixe disso! Esqueçamos essas utopias. Venha, vou mostrar as maravilhas de nosso honrado cargo. Aceita um drink?”

A cena ficara ainda mais colorida (ou mais sombria, depende...) quando HD ouviu uma certa discussão entre Flávio e seu cunhado Augusto, quando de uma visita anterior.

HD chegara à procura de Flávio e o aguardava na sala de estar, quando ouviu vozes exaltadas. Reconheceu a voz de Flávio num tom a la Sermão da Montanha, e outra num tom de aberto sarcasmo, a do Augusto. Debruçou-se na varanda, sobre o parapeito lateral, e descobriu junto a porta da cozinha o perfil dos dois debatedores, cada um com sua taça de vinho.

- Mas se todos pensarem iguais a você, Augusto, só haveria competição! Cada um por si e Deus contra todos! Além de cinismo é blasfêmia! Acha mesmo que Deus deseja o mundo assim?

- E você é o enviado do Senhor para restaurar Seu Reino? Ora! E se você disser que Deus não deseja, eu digo que não Lhe interessa, pouco Lhe importa. Que os imbecis continuem a incensarem, a doarem esmolas, a suplicarem a mínima atenção. Espere o maná cair, espere. Não vá semear a terra antes para você ver!

- É, mas para você trata-se de antes conquistar a terra, se apropriar e cerca-la tão logo seja possível. Quem chegar primeiro é que leva o ouro, é assim que você pensa. Onde vamos parar? Em que selva?

- Como imagina que tudo isso aqui foi desbravado, conquistado? Na boa vontade, na caridade? Digo que com espada e fogo! E escravidão! – e degustava obscenamente o vinho.

- Alto lá, Augusto! Do jeito que você fala até parece que defende que a coisa deve continuar assim! O tubarão engolindo os peixinhos! Eu não aceito. E muito menos que você o defenda, o justifique! Eu não sou capitalista!

O outro quase se engasgou com a risada.

- Ah, não? O que é então? Vai agora abrir a sua bolsa aos pobres ? O que é isso? – aponta a mansão – tudo isso ao seu redor? – o gesto se estende até a garagem, aos carros. – não é o lucro que mantém? Ou você quer implodir o prédio mesmo ocupando a suíte presidencial?

E Augusto se satisfazia, orgulhoso, como se o sistema capitalista fosse criação sua. O maior desejo de HD era encontrar-se diante do empresário e perguntar, não sem certo sarcasmo, se ele tinha quinhentos anos de idade. “ora, por que?”, o outro sem entender, e HD, superior, “Pois parece que foi você quem inventou essa merda toda!”

- Que sé yo?! Hay que tener paciencia con el Argentina.


E Ruy lembrava que aquele confisco de dinheiro de contas bancárias, ocorrido no Brasil, no governo collorido, com posterior devolução no ‘cartão azul’, mas já desvalorizado, não foi invenção tupiniquim, mas já havia sido usado na Argentina, na década de oitenta, com o dinheiro confiscado, e devolvido como títulos públicos já desvalorizados.

- Imagino a bomba nas mãos do La Rúa.

Os olhares se voltavam para HD, que sentiu-se no direito de explicar as crises sistêmicas, com produção constante, mas baixos salários, então quem vai comprar? Quem produz nem pode comprar. Sobra mercadoria, co todo o lucro na mão dos patrões. Superprodução. Preços diminuem e não paga a produção. Cortes nos quadros de funcionários. Desemprego. Mercadorias, lavouras precisam ser destruídas. Então o Estado entra no jogo, a mão invisível do Mercado, e gera empregos nas obras públicas, com capital de depósitos bancários, além de comprar e estocar excedentes. Novas leis de proteção social até que a Bolsa de Valores possa reassumir o seu jogo irresponsável. E aí tudo se repete, o Estado é obrigado a intervir para limpar a sujeira do capital.

Após a longa exposição, a qual exigia incondicional atenção, o anfitrião Flávio volta-se para o argentino: “Te apetece comer algo?”, e estende o convite ao “amigo Hector”, o “camarada Hobsbawn”.

E descem até a cozinha, em lembranças de velhas discussões, com Darío Sabine marretando o “neo-colonialismo” da ALCA, “nenhum povo jamais dominou outro povo sem antes dominar a elite deste povo, e assim as elites tupiniquins se vestem com rótulos made in USA.”

Pão de queijo, torrada com geléia, suco de laranja. E HD lembrando as faces da ‘máquina’, na era medieval com face teocrática, “Assim é porque Deus o quer!”, nas convulsões burguesas com face democrática, “governo do povo e para o povo”, até as turbulências das Grandes Guerras, de onde a ‘máquina’ emerge com sua face tecnocrata, “É assim porque o Mercado exige!”

- Mas o marketing é ainda ser democrático! Lembra daquela ironia do Darío, “A Alemanha Oriental era chamada ‘República Democrática’. E o Muro? E a repressão? Democrático? Seria cômico se não fosse trágico! Vá você pular o Muro pra ver!”

E novamente HD conseguia acabar com a leveza do momento. Todos se entreolhavam. Não era somente o lanche que pesava.

- Seria cômico se não fosse trágico.



Setembro/2000

FMI é braço do Tesouro norte-americano”, diz professor de Cambridge, diante do Consenso de Washington. Polonês, naturalizado alemão, é o novo Diretor. Processos com mega-corporções de informática e contra empresas de fundo-de-quintal que distribuem músicas compactadas pela rede mundial de computadores.

Mas os Tchecos, após derrubarem as estátuas de Stálin, querem agora ser bons e prestativos capitalistas, mas percebem suas ruas invadidas por anti-globalistas, com suas palavras de ordem, em busca de câmeras e atenção midiática, enquanto os donos do nosso futuro discutem diante de uma planilha de números, pois até famoso mega-investidor já disse que o capitalismo já fugiu ai controle.

Cínicas, as mega-empresas anunciam suas boas-ações para manterem suas imagens de responsabilidade social (digno de aplauso, além de politicamente correto), diante dos descontentes, dos honrados trabalhadores, pois a ordem exige códigos de ética, senão será o caos (que muitos asseguram já estar por aí...), e vejam, vocês, que até o Banco Mundial tenta mostrar certa sensibilidade social, afinal as ONGs estão à porta, e pede perdão para os pobres, ou caso contrário, prometem parar a capital, tirar o sucesso milenar da pacata e enigmática Praga.

S-26. Cordões de isolamento. Uniformes brancos e óculos de natação, punhos erguidos e incendiando os carros, o soar das trombetas nas vozes dissonantes de mais dez mil incomodados.

Onze mil leões-de-chácara encaram a multidão que mantém os líderes, delegados, funcionários, tradutores, jornalistas, garçons, e outros reféns, presos no centro de convenção por mais de sete horas, enquanto ONGs fazem protesto (numa igreja protestante!), denunciando a política hipócrita dos economistas (mas o que faríamos sem eles?)





Naquele domingo, de sol alucinado, HD em andanças pela feira de artesanato em pleno asfalto da avenida Afonso Pena, ali empurrado pela multidão, abordado pela velha que vende churros, ou pelo velho a oferecer balões coloridos com formatos de poodles e zeppelins, quase jogado meio a roda de capoeira.

Roda de capoeira girando em torno. Sonido de berimbau, instrumento de corda e percussão. Pernas giram acima dos corpos. Alguém mastiga um acarajé. Não, não se trata do Pelourinho, apenas da Rua da Bahia. Flores no mercado das flores, artesanato na feira de artesanato. Manhã de domingo. Quente.

Sorrisos manchados com recheios de churros. Mãos que alisam tecidos. Olhares que se recusam. Barracas oferecem roupas com ares de brechó. Bijouteria, jóias pouco autênticas, brincos indiscretos, artigos sem qualquer credibilidade. CDs de bandas alternativas, produções independentes, música regional e folclórica, ou pop internacional com sotaque mineiro.

Acompanhados de quadros pintados ao vivo, retratos de transeuntes desconhecidos. Cheiro forte de perfume feminino, água de colônia, desodorante. Fragrância de roupa nova na cabide. Ou cheirinho bom de pamonha, mingau de milho verde ou doce de pé-de-moleque, feitos na hora. Diante de crianças que gritam e esperneiam em exigências. Doce de leite, bolo de chocolate, maçã-do-amor. Pipocas saltitantes. Mas a namorada ali quer uma bolsa nova. Pode ser daquelas com couro-imitação-de-crocodilo. Este aqui a oferecer copinhos plásticos para telefones celulares. Aquele estende bilhetes lotéricos. Na barraca à direita, a loira, meio aos animais de pelúcia, grandes, ciclópicos, gradaúdos, morde avidamente um picolé de chocolate branco. E sorri quando percebe o olhar dele. Mas dura apenas um instante. É empurrado e está diante da liquidação de calças jeans desbotadas, cintos de fivela de pseudo-marfim, botas de cowboy, chapéus de cowboy, e outros artefatos de cowboy !

Uma menininha exige um balão colorido com formato de cãozinho poodle. O pai pinça notas verdes na carteira. Ela paga com um sorriso. O berimbau é estridente. O cheiro de milho cozido é todo envolvente. Flores todas expostas. Pernas giram acima dos corpos. O recheio do churro mela os dedos.

Cansado das multidões, HD busca refúgio na escadaria diante do Viaduto do Santa Tereza, diante do trânsito, paralelo aos vultos das famílias nas alamedas do Parque.

Sentado ali, a mastigar um churro, em pleno descanso, e recebe a amável saudação de um casal de jovens, um pouco mais novos do que ele, na euforia de seus vinte anos. Oferecem um jornal, e ele agradece, até estendendo o churro, mas alega não ter dinheiro. Eles despejam sorrisos, dizem que é de graça.

- Como é? Não vão cobrar?

Queremos convidá-lo para uma palestra. – diz o rapaz, muito amável, e bem trajado.

Palavras de força! Lá em nosso templo. – completa a moça, muito gentil, e igualmente elegante.

E HD ali a imaginar que eles o observam como se ele fosse um pobre coitado, um mendigo, e assim nem cobram o jornal. – É de graça? Sério? – e vai abrindo o jornal. – Achei que estivessem vendendo. – e olhando o casal – Vocês não trabalham vendendo isso?

O rapaz, amabilíssimo. – Não, só desejamos convidá-lo...

- Alto lá! Nem relógio trabalha de graça! Um domingão desses e vocês andando por aí, sem ganhar nada?

- Somos voluntários. E ganhamos sim. Almas para Deus.

A moça, didática. – Poderíamos ficar em casa, cuidando de nossas vidas, não é? Ficar cochilando, ou assistindo TV. Mas é necessário sair ao campo, semear a Palavra, terminar a obra. Vem chegando o tempo do fim...

- Ah, sim. Tem uns mil anos que já vem chegando...

- Mas, amigo!, temos a promessa de Cristo! E Ele não falha. Abandonamos interesses egoístas e saímos em busca das almas desgarradas.

Nisso ambos já se acomodaram ao seu lado, Ali na escadaria.

- É de se espantar! Sacrificam o fim-de-semana para saírem por aí pescando as pessoas!
O rapaz, todo bondoso. – Não é sacrifício. É importante para nós. Cristo nos tem chamado para isso.

- Cristo vem chamar os seus filhos.

- Então o nosso domingo é dedicado a lembrar às pessoas que cristo tem operado em nossas vidas.

- Deus tem feito maravilhas na minha vida. – a moça, emocionada. – Eu abandonei o vício do fumo. Não preciso mais de drogas.

- É isso que nos motiva a falar, a proclamar a Boa-Nova. Não é algo de que ouvimos dizer, ou que tenha acontecido a alguém ao nosso lado. Mas algo que presenciamos em nossas próprias vidas!

- Queremos compartilhar essas bênçãos com você, queremos abraçar você como a um irmão.

E HD só poderia ficar a ouvir o casal, surpreso e constrangido, afagado por tanta atenção amável.

- É hoje à noite, você vai lá? – convidava a moça, quase um convite amoroso.

- Lá você encontrará pessoas felizes, que se encontram, diante de Deus.

Aí HD não pode evitar um olhar de ceticismo. – Pessoas felizes? Hoje em dia?! Você é feliz:

- Sim, sou feliz. – o rapaz, com firmeza, sustentando o olhar cético. – E já fui muito infeliz, andava muito abatido, perturbado. Era humilhado, desprezado. Mas eu me revoltei contra isso! Hoje sou feliz, pois “tudo posso naquele que me fortalece”.

Após a citação, em oratória de púlpito, a moça também animou-se a confessar. – Eu sofri muito com a minha família, e meus colegas todos drogados, e eu dormi na rua, mas pude encontrar Jesus e hoje estou liberta!

- Então, são felizes? São outras pessoas hoje?

O rapaz, filosófico. – Aprendemos com os nossos erros...

A moça, boa samaritana. – Falamos para as pessoas que é possível sair do poço, desde que confiem...

O rapaz, conclusivo. – Que Alguém se preocupa conosco.

E com ele, Hector Dias Guimarães de Almeida, quem se preocupa? Sim, eis um apelo e tanto! “Deus lembrará de ti” E ele que sempre comungava, nas missas, junto aos pais, e que no casamento da prima, ouvindo o coro da igreja, até caíra em prantos de emoção!

- Sim, “Deus traz a alegria”. O padre dizia muito isso.

Mas o que pôde perceber é a surpresa no olhar dos jovens missionários.

- E hoje as pessoas estão sem Deus, só pensam no dinheiro, o padre dizia. E que ninguém dá bom-dia a ninguém, e que os justos são explorados. E que Deus não se agrada disso. Que é preciso mudar, dar terra e emprego ao povo. Que devem buscar a Deus e serem irmãos.

E HD fala muito quando se emociona. A infância exumada. O cadáver do passado. A criança em mim sepultada é que sabe mais!

O rapaz, todo compreensivo. – Sim, o padre tem razão. Como é mesmo o seu nome? Ah, Hector. Então, Hector, mas ele, o padre, compactua com tudo isso, pois ele está na Babilônia.

- Ele tem um bom coração, mas está no púlpito errado.

- E quem está no púlpito certo?

A moça, voltando ao tom didático. – Quem está com o Evangelho, com a Luz que ilumina o mundo.

- Pois saiba, Hector, as trevas pretendem abafar a luz, enganando as pessoas. O padres está cego.

- E fico pensando.Felicidade? Que promessa! Se algum dia encontrá-la, imagino que desejarei que todos a encontrem.

O rapaz, empolgado. – É isso! É isso o que sentimos!

A moça, maravilhada. – Sim, um mundo onde todos sejam felizes!

- E, por isso, num domingo desses, um solzão de cozinha asfalto, e vocês batendo pernas por aí?!

Junto as grades do Parque, desce outro casal. Mesma elegância e bíblias em mãos. Percebem o trio no topo da escadaria e se aproximam. O rapaz com gravata, seríssimo, e a moça em vestido claro até os tornozelos. Saudações trocadas, sorrisos, idem, olhares, idem, ibidem.

- Não é toda pessoa que nos dá tamanha atenção. – confessa a primeira moça. – Muitos agem como se fôssemos uns leprosos.

- É que dizemos certas verdades. – esclarece o rapaz de gravata.
- Cada um quer ser feliz consigo mesmo e para si mesmo, o nosso próximo não importa. – lamenta o primeiro rapaz.

- Foram criados assim, todos nós fomos. Preocupar-se com o outro é incomodá-lo, assim aprendemos. – explica o rapaz recém-chegado.

- Mas as pessoas só se preocupam com as outras se acreditarem e Deus? Precisam de Deus para se amarem?

Os quatro elegantes jovens se entreolham. Mas o rapaz de gravata logo responde: - Eu aceito o outro se o amo, e Deus é amor. Não se pode ignorar o outro, fingindo respeita-lo.

E o primeiro rapaz, em tom de púlpito. – Se os homens se amassem em Deus não viveriam se explorando. O problema é que o homem está afastado de Deus.

Amor ao próximo? Eu, o próximo? O que amam em mim é o “próximo”? o fato é que não me conhecem, logo o que amam em mim é um imperativo, “Ide e Pregai o Evangelho!” Sou mais um a ser salvo, para que a ordem do Universo ganhe outro servo feliz. Menos um no time contrário.

E assim, HD deixou de perturbar a fé dos jovens. E o rapaz de gravata, que mostra-se mais sério diante dos outros, é enfático, com a mão no ombro do pensativo HD. – Percebe, Hector, existe uma coisa chamada “livre-arbítrio”. Os homens precisam escolher! Deus não força ninguém a amar e a servir.

A moça de vestido, muito amável. – Deus não exige, ele convida.

- A primeira moça, amabilíssima. – o convite que fazemos agora.

E o jovem de gravata propõe que elevem suas vozes ao Senhor. E todos, de mãos dadas, HD entre a primeira moça e o primeiro rapaz, com todo o fervor dos corações jovens, e ansiosos. O que o futuro nos garante? E não importa se muitos transeuntes observam com indiferença ou ironia, pois agora resta-nos somente a fé num outro mundo para sobrevivermos ao sem-sentido deste !





Um fim de tarde com enxaqueca. Cortinas fechadas. Ignorando a existência do mundo. Horror à luz! Mas Darío Sabine, habitualmente em suas visitas de sábado, chegaria com mais inquietações.

- O mundo é o seguinte: uns idiotas que mandam, e outros estúpidos que obedecem.

E HD recebia assim a sua visita, num quarto escuro, sem notarem um do outro mais do que o vulto.
Mas Darío entende a náusea de HD, e seu desassossego. Rudi diante de Adrian, o Autodidata diante de Antoine?

- Você acha que Roquetin é um misantropo? Mas ele não deseja juntar-se ao Autodidata em sua crença na humanidade? O que ele quer é encontrar outros semelhantes a ele. O Sr. Achiles, por exemplo. Mas, este o ignora, e busca segurança junto ao burguês que o ironiza!

- O problema é que ele idealiza uma humanidade, e despreza a humanidade tal como ela é.



HD e os parentes vindos do interior. Comentários sobre a vida pacata e o susto diante do ‘inferno’ da cidade grande. Parentes devotos, cheirando à incenso.

- Um tanto estranhos os seus amigos, hein?

A tia estende aquele olhar de ministro do Santo Ofício aos recém-chegados. Um irônico Darío, e um pseudo-iconoclasta Alex.

HD em tom diplomático, todo cordial. – Sim, eu sei. Estranhos mesmo. Mas são gente boa. Esperemos que Deus possa, um dia, estender Sua Graça sobre eles.




Castillo, o filósofo chileno, exuma o golpe direitista de 73, acusando a ajuda da CIA ao carniceiro General, que agora alega ter conduzido o Chile a um nível de desenvolvimento econômico.

- A custa de muito sangue. – acrescenta Darío.

- E a América Latina não anda só a base de pancada? – contribui HD.

- “Three cheers for Doktor Kessinger! Três urras ao Doutor Kessinger! – Darío lembra o “Nobel da Paz”.

- Por livrarnos de la impiedad comunista !

- Não se preocupem! Somos todos anglo-saxões! – Darío, todo enigmático.

- Olhe, Sabine, neo-liberal é a p.q.p !

- E os nossos mexicanos, hein, Castillo? Imagine os milhares de Pedros Páramos atravessando a nado o Rio Grande. Dando as costas ao Eldorado.

- Sín, Eldorado saqueado! Para donde el oiro del astecas?
Darío nem dava tempo, com seus saltos – Quer outra ironia? O “fugere urbem” dos arcadistas. Veja só os nossos inconfidentes, os bons arcadistas. Pregando a vida bucólica, simples, em madrigais para as Musas, e bem debaixo das barbas deles, saindo de Vila Rica, todo aquele ouro! Para onde? Para Portugal? Ora, para os mercantilistas ingleses! Para nutrir a “Revolução Industrial”, e, por conseqüência, a vida atual, urbana e turbulenta!




Darío já se acostumava ao escuro. Discutiam o platonismo.

Darío - Platão diz que o Mal nunca diz ser mau, aparenta fazer o bem. E que ninguém escolhe o Mal, pois se escolhe algo, este é Bom para ele. O Mal é sempre o não-escolhido, o não-Eu. Quem divulga o seu amor pelo Mal?

Hector - E o Demônio se faz anjo de luz... Platão é um totalitário!

Darío - E Quem levantaria o estandarte das trevas?



Mal é o meu desejo. Deus, a Justiça. É a interdição do meu desejo. Mal é ir além. Diz a lei: “Não matarás!”, por que não: “Deixai viver” ? Porque ir além do ‘não matarás’ está claro o Mal: o matar. O Bem é o intra-muros, fora dos limites, o Mal. O próprio ato de “pular a cerca” já é maldade. Mas as cercas podem ser sempre colocadas mais adiante.
(anotação num início de diário)


Voltava da papelaria, andando por ruas escuras do Barreiro, ouvindo o apito da locomotiva, co o walkman ligado, ouvindo punk rock, irado, pregando “anarchy in UK”, com os jeans rasgados, mal suportando a classe de ensino médio, odiando a professora de gramática (ah, se ele dependesse dela para amar a literatura!), temendo o espectro do vestibular a rondar seu futuro nos próximos doze meses, sofrendo a humilhação da autoridade paterna, com “sua vida fechada em arquivos”, como dizia o Gullar.

Era algo em que pensava naqueles dias. Aceitar ser filho de funcionário público, esquecer esse sonho de faculdade, entrar para uma secretaria municipal, seguir carreira. Afinal, quem pagaria os seus cinco anos de ócio?

O sofrer da dúvida. Como expressar tal angústia literariamente? Será possível? Descrever a própria vida, vendo um eu-passado sob as ironias de um eu-presente? Que postura assumir diante das vidas descritas em “Guerra e Paz” ou “Crime e Castigo”? O que pensar sobre o Sr. Bloom em sua odisséia urbana? É voyeurismo acompanhar as vidas alheias, ainda que ficcionais? É sadismo ler sobre as vidas desgraçadas tecidas em tinta rubra sobre o papel?


Como o fraco domina o forte? Como o fraco submete o forte, para alcançar sobrevivência? Veja os bárbaros. Homens másculos. Violentos, beberrões, luxuriosos. Extrovertidos. Fortes fisicamente e plenos no instinto. Já os fracos tanto fisicamente como na aceitação dos instintos. Introvertidos. Violentos renegados, beberrões mergulhados em culpas, luxuriosos hipócritas. Homens e mulheres fracos e débeis. Tornam-se a casta dos sacerdotes. Dominam o sobrenatural, a comunicação com os mortos ou com os deuses, legislando através de dogmas, manipulando o medo no coração dos fortes.

O fraco criou a cultura erudita, intelectual?

(esboço para um ensaio)


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LdeM
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