sábado, 24 de julho de 2010

Náuseas de Estudante (cap. 5)

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- O “universalismo” está acima de “particularismos” outros, de raça, gênero, crença, classe social.. A Declaração dos Direitos do Homem inclui, por extensão, a Mulher, os negros, os crentes, os ateus, os pobres, os parias, sem uma constituição “particularista”, exclusivista portanto, para cada gênero, cada etnia, cada credo, cada condição social. Por que? por serem “seres humanos”.

Assim dizia o Professor na extasiante aula de Sociologia. Tendo numa mão, os frutos da Revolução Francesa, e em outra, os documentos da Internacional Comunista. Fazia questão de citar fontes e ser gentil, claro que coordenando todos os estudos dirigidos e cobrando bibliografias, mesmo quando encontrava os alunos nos corredores.

- Você já leu “A Dialética do Esclarecimento”, do Adorno & Horkheimer?

Ou, mais eclético, limpando os óculos na camisa-pólo. – Você já terminou a leitura de “Eros e Civilização”, do Marcuse?

Mas, sem oportunismos, HD aprecia a estilística do mestre. Pelo menos, ele, HD, podia soltar suas opiniões em sala. E de suas suspeita quanto aos “ismos”.

O suspeitar de todo “ismo”? sim, o limitar,o dogmatizar de todo “ismo”. Dogmatismos! Direitismos e esquerdismos! Essa de “liberalismo”, liberal para quem?, ou de “socialismo”, que resvala em “estatismo” e “totalitarismo”, enquanto contra o “comunismo” se levantam os “fascismos”, e todos cheios de boas-intenções, “bem-intencionismo”? Não, “intervencionismo” contra “protecionismo”, ou “militarismo” em tempos de “globalismo”, quando tudo não cai em “particularismos” e “etnocentrismos”, coisa de “tribalismos” os mais excêntricos, reunidos em volta de ídolos,modas, estilos e músicas, puro “individualismo” para o “consumismo”, que não passa de um “niilismo” de época excessivamente vazia – “anarquismo” e “solipsismo” !


HD seguia pelos corredores da Fafich, com aquele fardo de nomes, números e datas, depois da aula sobre os “intérpretes do Brasil”, segundo as palavras e a empolgação do professor, ali a distribuir uma cópia xerocada, a conter a bibliografia básica do curso, a começar com os “Mestres”, aqueles por ele aclamados como os “Três Grandes” (“e não estou falando de Potsdam ou Yalta!”) e nomeava : “estamos falando de Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre e Caio Prado Jr.” E quem corresse os olhos pela lista xerocada encontraria outros ícones da nossa Sociologia, a saber, Florestan Fernandes, José Carlos Reis, José Murilo de Carvalho, Raymundo Faoro, Nelson Werneck Sodré ( que HD carregava debaixo do braço, o volume de “Formação Histórica do Brasil”, com seu primeiro parágrafo categórico: “A História se preocupa com as transformações da sociedade, não dos indivíduos.”), Celso Furtado e seu “Análise do ‘modelo’ brasileiro, segundo consta, e ali o “Formação do Brasil Contemporâneo” do Prado Jr. E os regimes de produção e suas influencias sobre as vidas dos povos, com a distribuição das terras, bens e rendas e os antagonismos gerados, e a tese das ‘colônias de povoamento’ e as ‘colônias de exploração’, estando o Brasil incluído na condição desta última, como servidor do capitalismo europeu, ou seja, a economia brasileira voltada para as necessidades do capitalismo europeu, “O Brasil não era feudal, mas estava inserido no mercantilismo europeu”, como dizia o professor, e seguia a lembrar o pouco poder da Coroa sobre os “senhores rurais” em suas sesmarias, o que seria apontado como característica de “feudalismo”, mas que não nos enganemos, em quadro contextual, tal imagem “se desmancha no ar”, e “vejam como há até uma imagem poética em Marx, ‘Tudo o que é sólido se desmancha no ar’”, e o professor emendava citações do manifesto com imagens de um Brasil-Colônia que lembravam os romances históricos de uma Ana Miranda.

Mas HD pensava em que literatura (e não sociologia!) nasceria daqueles passeios pelos corredores da Fafich, deixando-se vaguear por salas vazias, iguais aquela, numa penumbra de abandono, onde figurava no quadro-negro, num esquema traçado à giz, o quadro político no Brasil Império, aliás, o Segundo Império, com um enorme “Poder Moderador” circulado m amarelo-ouro, e sitiado por nomes obscuros, onde só “Princesa Isabel” despertava lembranças. Sublinhado, embaixo, estava “Abolição da Escravatura”.

Alguém passou no corredor. Nada mais que uma sombra a ensombrear ainda mais o nada daquele vazio. E não era a sombra que ele esperava! Quem? Naína, a inquieta, sempre fazendo mil coisas ao mesmo tempo! Morna, moreninha, pele bronzeada, e lábios finos, longos cabelos lisos e negros, luzidios de escuros!, brasileira de corpo e alma, ah, a moreninha do Macedo...

De súbito, temeu a solidão, aquela solidão nascida do pensamento. “Preciso de pessoas, eu sou realmente ‘eu’ quando estou junto às pessoas, aqui sou uma sombra entre sombras.”, e assim HD desceu ao refeitório, com esperanças, talvez até encontrasse a Naína.



Abril/2000

Descompasso da economia global. Flutuações do Euro. Exuberância do Tio Sam é ameaça. Crescimento econômico interno dos EUA assusta. Europeus e japoneses precisam comprar mais, diz economista. Naomi Klein, autor de “No Logo”, “O mundo está sendo dominado pelas marcas.”

Então na reunião do Fundo Monetário, em plena capital americana (ou estadunidense), Washington, distrito de Columbia, jovens com suas rosas selagens entre dentes, e suas rubras cabeleiras arrepiadas, enfrentam os policiais em sus uniformes de corvo, acolchoados e blindados, e seus capacetes com viseiras na cegueira da névoa de lacrimogênios, onde policiais negros espancam, profissionalmente, ainda que sádicos, os brancos filhinhos-de-papai que se rebelaram em assumir as empresas da família. Que falta faz uma férrea disciplina! Esses filhos de yuppies assistem MTV demais e sabem todas as letras do Rage Against The Machine na ponta da língua.

Cerca de mil manifestantes foram presos.

Eles se aproximam das famílias / com os bolsos cheios de munições”, um forte refrão para esquentar a manifestação!

Bulls on parade !”

Ao primeiro convite de Naína, HD desconversou. Depois, ele a acompanhou,ela tornando-se sanguessuga em seus braços, arrastando-o para dentro. Ele ainda resistiu.

Mas havia aquele trabalho de Estatística. “Existem mentiras, mentiras e estatísticas”, ele citava, irônico.

- O gráfico de setores lembra muito uma pizza...

- E se a gente pedisse uma? – ela sugere.

E pediram.

Estudava na sala de estar, num apartamento de segundo andar, no Gutierrez. Com direito a vista par uma pracinha, onde babás levavam, carregavam a e suportavam criancinhas travessas e mimadas.

- Taxa percentual em vertical no gráfico de colunas.

- E horizontal no gráfico em barras.

- A distribuição agrupada de freqüências no exercício seis é...

- Peraí! Este eu ainda não terminei.

E não terminava mesmo! Estava distraído. Havia um par de pernas morenas no caminho.

Naína talvez nem percebesse, mas aquelas pernas longas findando em pés claros de unhas luzentes, era o motivo da lentidão mental do rapaz. É que estudavam numa mesa de vidro, redonda, translúcida, coberta por um forro de crochê que, descontínuo em floreios, deixava bem visível dois pares de pernas. Uma par com calças jeans e tênis, outro, nu, lindamente nu. Pés desnudos, enroscados.

- Terminou a média aritmética do exercício oito?

- Ei! Alto lá! Mais calma, sim? Estou no cinco, refazendo a segunda mediana...

E ele já vira situação semelhante. Sim, muitas vezes! Sandra e suas coxas fabulosas, e entre eles uma tabela periódica dos elementos químicos, além de uma dezena de exercícios sobre estequiometria.

- Determine a moda no conjunto de dados...

E ela nem oferecia um refresco, ele que esperasse o refri que é brinde da pizza. E ela monopolizando a calculadora, e ela toda frienta, em arrepios, mas com os pés desnudos no piso gélido. E ela nem percebia que arrastava o forro, e que as unhas luziam num tom róseo.

- Confere aí pra mim o primeiro polígono de freqüências.

E ela sempre terminava antes. Como consegue se concentrar?

E ele confere três vezes o exercício oito, mas nada! Os resultados ao conferem. Ele suspira, ela cruza as pernas. Pés morenos. Unhas esmaltadas luzentes. A borracha desliza pelo chão. Sob a mesa. Eu pego!

Mas o que há sob a mesa? Por que se demora? A borracha se perdeu? O que há?

A borracha não sei. Mas encontro bronzeadas pernas esculturais e um cheiro de mulher.

Ela percebeu a demora no segundo minuto, mas aí sentiu um bicho cheio de dedos e tentáculos subir até suas coxas indefesas.

Ele, ajoelhado, abraçando os quadris da garota, aspira um perfume abrigado sob uma lingerie branca. Calcinha rendada e branca.

Afasta a saia já curta, descobre o formato das coxas, risca a cintura com as unhas, ocupa o território em seus promontórios e vales na infantaria avançada dos dedos na pele lisa das nádegas.

Ouve um suspiro?

Ela se afasta da mesa, num repente. A cabeça dele à mostra. Ela acaricia os cabelos fartos. Mordisca a ponta da orelha.

Ele puxa a saia minúscula par cima e a renda alva e perfumada para baixo. Colinas se destacam. A cavalgada alucinada de uma língua ansiosa. Gemidos que você ouviu? Nonada.

No golpe, o forro vai abaixo. Calculadora. Cadernos. Uma caneta preta. Duas canetas azuis. Esferográficas. Abaixo.

Abaixo da mesa, sob a transparecia do vidro, ela vê o rapaz todo vestido, mas a desnudá-la. Está deveras ocupado entre as suas pernas. Outro gemido? Impressão sua!

Mas o avanço continua. Dois batalhões percorrem a colina, agora três. Há uma gruta a ser sondada.

Não há dúvidas. São gemidos. E contínuos.

Exposta. Reclinada na cadeira. Beliscando os mamilos sob a malha da blusa, pela permite a invasão. Toda a vanguarda cruel do prazer.

Ferozmente. Tropas cruéis. Bombardeiam sem piedade. Batalhões hesitantes, que percorrem toda as extensão e voltam, sem sinais de cansaço. Mesmo que inundados.

Ele vai. Ei! Ouviu? Uma campainha? Shit!

- Ai, Hector! É o cara da pizza!





Maio/2000

Enquanto a Argentina se convulsiona em crises econômicas, jovens enfrentam os policiais fortemente armados com suas viseiras de plástico e convicções, totalmente cegados pela disciplina. Mascarados ousam levantar barricadas e golpear o símbolo do fast-food, em suas lojas clonadas mundo afora, vendendo comida manufaturada, já denunciada por camponeses do sul da França com seus bigodes celtas e cachimbos.

Trafalgar Square? Quatro mil manifestantes? Setenta e sete presos e dezesseis feridos?

Enquanto em Barcelona, os descontentes vestem máscaras e fantasias, enquanto em Jacarta, Belgrado, Moscou, Sófia, Calcutá, Chicago, São Paulo, outros subversivos incomodam a ordem social, com seus ásperos gritos e nome da dignidade.

Em São Paulo, sindicalistas fazem ato público e sorteiam carros e casas. Os operários, eufóricos, erguem bandeiras e frases feitas.




Adentrava, cauteloso, numa favela, um aglomerado ao pé da Serra, levando uns discos de vinil, debaixo do braço, para presentear a um amigo.

Atravessa o labirinto traçado da vila sob os olhares hostis, mesmo ‘adequadamente’, isto é, discreto, camiseta, jeans desbotado e tênis esfolado, porém fora do style local, com suas calças baixas e soltas, blusão com estampas de time da NBA e boné idem. Em suma, o seu visual ainda era considerado muito ‘asfalto’, muito rocker para o local rapper.

Encontra dois rapazes na porta de um barraco, que conversam sobre bandas e letras de protesto. Mas, deslocado, ao entender os termos lingüísticos, gírias do dialeto, e desperta as suspeitas dos mesmos. O que pensam que sou? Esses olhares desconfiados...

Em esforços inúteis tenta reduzir sua linguagem a monossílabos, tal como faziam, ou dissolvia conceitos em imagens, como se falasse com crianças, para ser compreendido por aqueles jovens, se eu mostrar o que sei, aí minha cabeça está a prêmio!

O mito da Caverna ao vivo! Jamais aceitam que alguém esteja além daquela vidinha! Regurgitavam ressentimento nos olhares, discriminando, Você é do asfalto, Você é boyzinho da zona sul, em todo um racismo às avessas, incapazes de aprenderem com quem se dedique a trazer novas experiências.

Então é assim? Eu me esforço par entender e aí aparece um grupo e o chefe aparente, todo agressivo, quer saber o que estou carregando, e outro passa a mão em minha cintura, a conferir se estou armado, e jogam meus discos no chão, O que está acontecendo? Qual é o problema?

E ele ainda tenta contornar o mal-entendido, mas ao perceber o volume na cintura do chefe, de pronto, derruba o cara sobre os caixotes, e empurra o comparsa contra o barraco, que, ao bater a cabeça, cai desacordado.

Recolhe os discos e volta correndo por onde chegou, tropeçando nas vielas escuras e fétidas, sentindo os projéteis silvando ao seu redor.

Acordou, debatendo-se, banhado em suor.





Na terceira geração?, HD se perguntava, em pleno Viaduto do Santa Tereza, ao notar um grupo de crianças, cheirando cola ao lado de uma fogueira, lá embaixo, na Serraria. Fogueira de ripas de caixa de maçãs, que aquecia uns seis ou oito garotos, também duas meninas, e o mais velho não aparentava mais do que uns doze anos.

Pensa nos Pedro Bala, nos João Grande, e outros capitães não da areia, mas da selva de asfalto, a viverem nas ruas, amedrontando os pedestres, importunando os comerciantes, retalhando o rosto das madames co cacos de vidro, transando nos bancos de praças, morrendo nas chacinas encobertadas pelas sombras.

Lá encima, o Othon Palace Hotel, iluminado, figura imponente, em soberba e todo envaidecido. O cartão-postal ali tal um altar, ou um pódio a ser alcançado, o palco da glória.

Passar uma noite na suíte de ouro é o ápice da escalda social?

A poucos passos, na Praça da Estação, dois policiais abordam, com visível brutalidade, um jovem de uns dezessete ou dezoito anos, cabisbaixo sob o peso da mochila, revistando-o com manifesta grosseria. O rapaz não parece nada perigoso, os policiais, sim. Mornos, corpulentos, despejam olhares de escárnio. Vendo-os assim, parecem se vingar! Mas o que o rapaz terá feito? Qual a sua culpa? Não, não é isso! O rapaz está até bem trajado. Tênis de marca e etc. só aquela mochila custa um terço de salário mínimo!

Retiram o material da mochila, que o estudante segura, humilhado, ainda mais cabisbaixo, ali desamparado, diante da Lei!, uma vez que reclamar um pouco de dignidade é desacato à autoridade. (E o desacato ao cidadão?)

Depois de revistarem tudo, e nada terem encontrado, saem enraivecidos! Ora, por que? Aposto que nem precisariam ter encontrado pó ou baseado, mas se houvesse apenas o cheiro, eles teriam dado uns bons tapas no rapaz, que se afasta ofendido, quiçá jurando, para si mesmo, terrível vingança. Eles, os policiais, e HD, observam o vulto se afastar. Os policiais troca olhares. Vê-se que são pobres, e a ação anterior não passara de um leve ‘trote’ com o estudante filhinho-de-papai!



Nem duas semanas depois, HD num ônibus, na avenida dos Andradas ao largo do Santa Tereza, surpreendido por uma batida policial. Os homens são instruídos a descerem, com as mãos nas cabeças.

Meio batalhão, fortemente armado. Descem os pais de família, os estudantes, os operários carregando marmitas. E todos esperam.

Inicia-se uma revista policial um tanto rude, especialmente para três rapazes negros, de bonés com símbolos da NBA, que são agressivamente abordados e levados para um canto, sob pancadas e tapas nas orelhas.

HD tem a sua mochila revistada, e o policial, moreno, sorridente, com um ar malicioso, até cúmplice, exibe a capa da revista que encontra, “gostosa essa loira peituda, hein!”, e pisca, jogando a revista de volta à mochila. “E esse sujeito é pago para nos proteger!”

HD e os outros volta a bordo. Todos os outros passageiros (as mulheres, as crianças e os idosos) olham, com indisfarçado receio. “Mas medo de quê?”

Um dos policiais (daqueles que a pouco empurrara os ‘suspeitos’ para um canto à base de pancada) se apresenta junto à roleta, ao lado do cobrador, em alta voz, à todos os passageiros.

- Foi por pouco, hein, minha gente! Eles estavam prontos para ‘meter a parada’ aqui no lotação! Foi por pouco!

Comentários. Suspiros. HD entende que o policial quer dizer que um assalto a mão armada estava em gestação e que os passageiros foram salvos por um triz! “TRÊS vivas à polícia mineira!

Minutos antes, todos estavam recolhidos aos seus mundinhos, mas agora discutem detalhes, compartilham palpites, comentam a insegurança das metrópoles.

Fascinante o que o medo não faz! Tanto serve para afastar como para agrupar, tanto nos separa quanto nos aproxima!




Setembro/2000


Melbourne, Austrália. Manifestos contra o Fórum Econômico Mundial. Forças policiais (uns oitocentos profissionais) enfrentam mais de mil e quinhentos descontentes.

Mulher nua é algemada e conduzida paternalmente por policial.

Praga (e São Paulo)

Enquanto em Praga, os ativistas tiram o sossego das autoridades, em São Paulo (afinal não podemos ficar para trás!) outros descontentes sofrem a repressão das forças de segurança (de quem?), em manifestos diante da Bolsa de Valores, em passeatas de ecologistas, sindicalistas, anarquistas, aposentados, membros do movimento dos sem-teto, mendigos, articulistas, ativistas de ongs internéticas, além de hackers anti-globalistas que traficam informações on-line.

Claro que a polícia ia reprimir! É a subversão! Depois é só jogar a culpa nos punks!



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LdeM


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domingo, 18 de julho de 2010

Cap. 5 de 'Náuseas de Estudante'

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- Grande figura, o Alex! Tenho até saudades. Tardes parlamentares aquelas!

- Ainda bem que ninguém inventava leis.

- E eu me lembro do Celso. (Se lembra do el compadrito?) pois é, com aquela conversa, a la Churchill, de que o problema do capitalismo é a “distribuição desigual das bênçãos”, e que o socialismo cuida da “distribuição igual das misérias”.

- Se for para abrir a temporada de citações, não esqueça aquela do Gassett, Ortega Y Gasset, digo, de que bolchevismo e fascismo são “duas falsas auroras” pois trazem um “dia arcaico”.

- O “dia arcaico” ? o que ? o mercantilismo estatal? Só se for!

- Ah, se o Brasil tivesse dado cria a um Colbert!

- Mas o que levamos foi uma porrada do Marquês de Pombal!

- A gente só leva porrada mesmo!

- Que isso? Onde está seu ufanismo, seu nacionalismo neopositivista?
- Nem vou comentar. Vou sair de cena com uma citação do Gilberto Amada: “Um país novo povoado de ruínas. Feita em saltos, a nossa história desconcerta o investigador. É regime da inconseqüência.”

- Ainda bem que você não faz História.

- Prefiro a Sociologia do cotidiano... Do que está rindo?

- Do Alex te acusando de “intelectual de gabinete” !





Terra tupiniquim. Coincidência ou não, duas semanas depois, HD está no paraíso de Santa Cruz, Terra Brasilis, a sentir-se um Caramuru, cercado de indígenas, com seus corpos heróicos de sobreviventes e suas pinturas faciais de guerreiros. Em pleno bandejão do Campus!

Krenaks, Caiapós, Maxacalis, Xavantes, e outros povos, com seus dialetos, suas mulheres belas e robustas, suas crianças agitadas e de olhares curiosos, a sentirem-se estrangeiros na própria casa.

Mas é HD quem se sente estrangeiro! Afinal a terra foi conquistada dos povos nativos (ilha deserta isso aqui nunca foi!) numa sangrenta e contínua invasão, com aqueles navios despejando a pálida e raquítica imigração européia. – e vou comemorar os 500 anos? Como digerir a culpa social por ser branco europeu?

Sim, os índios altivos, suas mulheres belas, seus filhos saudáveis, e ali o filho de europeu, deslocado, sofrendo com o clima tropical.

- Ah, eu confesso, que saudade de Lisboa!



A aula de Estatística, com suas médias e medianas, esgotou o que lhe sobrara de paciência. Assim, HD resolveu dar o fora, o mais discreto possível. Claro que o professor não notará sua falta, e muito menos que o aluno vai repetir a disciplina. Isso realmente não importa.

O importante é que estamos longe de casa e existe um preço a se pagar por isso. Contas precisam ser pagas, compromissos devem ser cumpridos. O que se pode fazer? Pagar, claro. Mas o dinheiro vem gotejar da mesada. E, se tudo der certo, da Bolsa Estudantil. Após uma peregrinação por gabinetes, funcionários e “muito obrigado”, ao apertar a mão do gerente. Uma conta bancária, como todo cidadão decente.

Mas há que se preocupar com as notas (a oscilarem entre A e C, exceto o D e metodologia e o E em estatística) que são o espelho do bom aluno, aquele atento as grades de disciplinas e caprichos dos mestres, que sopram apenas para morder depois.
E sobrava tempo para alguma coisa? Não. Não deixa tempo para convidar a aluna da segunda carteira à esquerda, aquela morena com olhares nebulosos, sempre aérea, atrasada, com freqüência, para a primeira aula e reprovada em Antropologia, “Nem sei porque a gente estuda isso! Se vocês acham que vieram do macaco, o problema é de vocês!”, não que ela fosse criacionista, longe disso, mas por vaidade mesmo, “Ora, filha de maca é a mãe!” e daí ninguém levar a aluna à sério.

Por outro lado, não se sabe se HD está interessado na aluna ou a novidade. Pois tudo aquilo é novidade. Essas garotas a brotarem junto com os seus seios, com olhares úmidos e desejos que vazam e ninguém (ninguém?) dá conta, “É a idade, é a iniciação”, diziam os alunos que se aproveitavam. Mas as alunas diziam o mesmo, quando arrastavam (elas arrastavam!) os alunos (assim não se sabia quem jogava com quem, ou quem se aproveitava de quem, quiçá todos joguem e aproveitem!) e é tudo isso que deixa HD ocupado. Exceto quando está sem grana.

E hoje HD está sem um tostão. O dinheiro ainda não caiu na conta. Precisa buscar um cheque na própria Fundação. Lá no edifício com as carrancas dos índios. E pergunta-se: como?

Não encontrou Darío (hoje, quinta, ele freqüentava as disciplinas da tarde), e os demais onde estão? (por exemplo, o Flávio, que nunca negava uma carona) pois a solução é justamente esta: uma carona. Daí HD estar agora na portaria da Avenida Antônio Carlos, de olho nos carros que vão saindo.

O Campus encontra-se no seio de um bosque á caminho da Pampulha, zona norte, distante portanto do hipercentro, o que mantém a universidade afastada do povo mais do que já está. Espera-se que um aluno mais abastado e generoso ofereça uma carona ao estudante pobre, e em apuros, ali de dedão estendido.

Foi o segundo carro em dois minutos. Parou como se miragem. Um sujeito moreno, de óculos, abaixou o vidro e “se vai descer, pode subir”, foi o que disse o estudante, e riu. Na verdade, seria: “se vai descer para o centro, pode subir no carro”, e ainda bem que HD entendeu.

Um futuro psicólogo. Eis o que se podia dizer do generoso estudante. Morava no Sion, zona sul, e portanto atravessaria o hipercentro. Ótimo. Poderia deixar HD diante da igreja São José, e bastaria atravessar a Avenida. Melhor, impossível. E comentavam o estresse do transito. Ou o inchaço das cidades. Sem qualquer profundidade, apenas para se livrarem do vazio.

- Há um projeto para a duplicação da avenida...

- Li algo sobre isso. Nos jornais. Mas é que m sobra pouco tempo para ler... preciso terminar uma monografia sobre Doenças Psicossomáticas, essas coisas. Só consigo folhar o jornal na hora do almoço...

- É . Também pouco leio os jornais. Aliás, a minha preocupação é mais o passado do que o futuro...

- Deixe-me adivinhar. Estuda História?
- É. Por isso o lance do passado...

- Que sempre precisa ser reescrito. Reavaliado, em nova narrativa. Tipo um trauma. Sempre fragmentado, sempre narrado novamente e de outra forma...

- Vejo que você gosta do que estuda...

- Sim, gosto muito. E você? Não?

- Gosto, gosto. Mas é que às vezes me dá desespero. Acho que deveria estudar artes, literatura, sociologia, sei lá. Coisas atuais. No entanto vou me especializar em Governo Vargas.

- Entendo. O passado oprime a mente dos, digamos, sobreviventes...

- Marx dizia que “o peso das gerações passadas sobrecarrega as atuais gerações”. Algo assim. Até concordo. Mas lembro o tempo todo do James Joyce...

- Quem? – volta-se o futuro psicólogo, agora atento a mudança de sinal.

- James Joyce. Um escritor. É uma fala de um personagem dele, a que não sai da cabeça. “A História é um pesadelo do qual eu quero acordar”. Algo assim.

- E isso te angustia. Sei. Acho por acaso que eu também não me angustio? Faço análise. Toda semana. Amanhã à tarde, já sei, vou estar deitado naquele divã diante do doutor Ribas, contando pela enésima vez a história do primeiro ‘fora’ que levei, ou daquela discussão ridícula com a minha mãe na festa de aniversário da minha tia... Sabe? E o doutor lá, me ouvindo, e é a mesma coisa, somente vou narrar diferente, com outros detalhes e outros enfoques. Mas nunca vou me livrar disso.

E HD começava a perceber um leve desconforto no estudante, até porque não pretendiam que a conversa tomasse um rumo tão pessoal. De início comentava o trânsito e o inchaço das metrópoles. Assunto de domínio público. E agora o sujeito – um psicólogo! – a falar de suas sessões de análise e seus ‘foras’ e suas patéticas brigas de família?

Mas, por sorte (e Providência?), logo estão no complexo de viadutos da Lagoinha e eis o brilho das vidraças da Rodoviária e eis o prédio imponente da Seguradora na vanguarda das tropas de edifícios da metrópole que vai crescendo para cima, etc.

- Mas são coisas da gente, não? – dizia o estudante. Seus óculos agora devolviam um brilho solar – A gente estuda porque se identifica, não? Eu faço minha análise. Você se preocupa com o passado. – deu uma pausa, atento ao sinal da Praça Sete – Já parou para pensar porque o Vargas te interessa?

Não, HD nunca parara para pensar nisso. E não seria agora. Suas preocupações agora se resumem em “preciso subir e pegar o cheque”. Por isso resmunga um “é mesmo...”, assim que avista as carrancas indígenas, e agradece sincero ao estudante, do qual aceita um cartão, “Plínio D. Santiago – Comércio Digital”, em despedidas diante da igreja.
- É que trabalho com internet, enquanto não me formar. – e estendeu a mão – boa sorte com o seu curso. Até mais ver.

Então HD desceu, e nem pensava se era sério este “até mais ver” que soava tão pessoal como aquelas saudações em cartas francesas. Mas o sujeito era educado, via-se logo! Classe média estressada. Conta as a pagar e passado a sepultar. Tudo em círculos. Hoje, ele. Amanhã, eu. Se tudo é permanente sobe-e-desce, e a roda da fortuna, mas devia ser um.

- Qual andar, senhor?



Cheque em mãos, após suspirar em sua epopéia pelos tramites burocráticos e sorriso cordiais, HD precisa passar na agência bancária mais próxima e descontar o valor do cheque. Volta até a Praça Sete, onde sindicalistas erguem bandeiras e regurgitam discursos, e sobe a Rio de Janeiro. Camelôs nas calçadas entopem as artérias. Nada flui. Tropeços e encontrões. E se ousares a rua, serás imediatamente atropelado! Mas a agência está logo ali. Fácil de ser localizada pela presença de uma fila e pelas mãos estendidas dos mendigos.

- Uma ajuda pelamordedeus.

E que o Todo-Poderoso tenha mesmo alguma piedade. Pois o sistema econômico de trocas de mercadorias não tem. E todos sabem. Não precisa se refugiar nos porões, em leituras do Manifesto Comunista, nem berrar prometendo votos ao candidato proletário (ou que já foi proletário...), pois todos sabem. ( E então presenciar, em plena fila do metrô, um sujeito, visivelmente embriagado, a desafiar os transeuntes, com altos brados, “Vocês são uns covardes, todos vocês, uns covardes!”, e alguém o ironizou, “E aí, maluco!”, e o bêbado se voltou, “Até você aí, fulano! Até você” e foi sorte que disso não surgisse um tumulto ou coisa mais trágica...) e as filas de banco atraem os mendigos igual doce atrai abelhas famélicas, com suas faces de súplicas e feridas expostas, “compadeçam emnomededeus”, e ninguém se importa.

A mendiga ajeita um manta e lá se percebe a cabeça de uma criança. Uma menina, a julgar por um lacinho que parece rosado, não fosse o tecido tão desbotado. E as campanhas contra a miséria? Tudo propaganda? E o intelectual no poder? O nosso Sartre! Mas a mendiga nada sabe dessas políticas. Tem uma criancinha no colo e repete, “uma ajuda pelamordedeus”, e HD observa. É o que pode fazer. Talvez um dia escreva sobre isso num artigo para os jornais, ou em sua própria revista, como sonha em editar. Mas agora, nem ele tem dinheiro. Todo o dinheiro está ali dentro. E três seguranças, armados e perigosos, o separam do primeiro caixa. E mil câmeras têm os olhos voltados para ele, e mil imagens suas são armazenadas em fitas e mil imagens suas podem ser provas de um crime.

Nempensarnisso! Aceite as notas que a moça séria e de óculos agora estende, e agradeça. Cheque descontado, eis o que importa. Façamos a revolução amanhã, antes que os mendigos a façam, amanhã. “Ah, se eu morresse amanhã...”, sempre amanhã, e “assim caminha a humanidade”, vamos almoçar.
Almoço no refeitório da Faculdade de Direito, com nossos futuros advogados e juízes e desembargadores e corregedores e ministros e demais autoridades e apenas um comentário para a salada de alface e agrião. “Ah, e mamãe que torcia tanto para que eu fosse advogado!”, pensava HD, enquanto palitava os dentes.

A próxima missão é pagar a terceira prestação do computador. Logo, voltar até a Rio de Janeiro, a entrada mais estratégica do shopping. E nenhum conhecido no mar de faces da Augusto de Lima e nos restaurantes diante da Imprensa Oficial, os mesmos vultos engravatados.

- Podemos contar com o seu apoio ao Governador? Você sabe, aquela questão de Furnas...

- No que devemos evitar radicalismos...

- Mas é preciso mostrar o punho de Minas...

E os vultos engravatados erguiam os garfos como tridentes em indignação. Nisso uma mocinha folheia uma revista de moda diante da banca. Seu olhar salta da revista e atinge o de HD. No entanto, ele segue seu caminho.

Nas esquinas outros vultos, agora andrajosos, em trapos. Pensa na mendiga, aquela na porta do banco. Quem era ela? De onde viera? Do interior? De uma família em decadência? Qual seria a sua história? Perdera o rumo na vida? E a imagem se fazia em versos, que ele recordava das leituras de Baudelaire, o poeta andejo pelas penumbras de paris, a dedicar poema a uma pobre vendedora de caixas de fósforo, “uma mendiga ruiva”... mas, é de se pensar, quem é aquela que sofre?

Notas grandes na carteira. Deveras perigoso! Assaltos ameaçam nas penumbras da tarde. Após separar duas notas graúdas para pagar a prestação, na loja do segundo piso, HD entra no sanitário masculino. Por sorte (e Providência?) tinha ainda uma moedinha para a roleta. Forrou o vaso sanitário com papéis, para evitar o contato gélido da tampa, e ocupa-se com suas necessidades.

Depois teve o cuidado de tirar as demais notas graúdas e enfiar todas dentro das meias: duas notas em cada uma, cuidadosamente envoltas em papel. Sim, cautela mais do que necessária. Não pode correr o risco de ficar sem o seu único dinheirinho... que sofre as ameaças das vitrines! A última versão de um software, uma nova impressora a laser, uma famosa enciclopédia agora em compact disc, um manual de instrução para avançado editor de texto, novas promessas de programas para edição de fotografias, entre outros encantos. E HD nem se interessa tanto assim por informática! Imaginemos então o seu comportamento ao adentrar uma livraria! Por exemplo, aquela do terceiro piso. Contudo, o seu bom-senso o mantém afastado das sereias.

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LdeM
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sábado, 10 de julho de 2010

Náuseas de Estudante - Cap 5 / início


Capítulo 5



Ele sentiu os olhos se abrirem antes que o despertador ousasse qualquer escândalo. Os olhos seguiam os vestígios de luz invadindo as cortinas, caminhando pela parede, lambendo o alto do guarda-roupa, incidindo na estante, numa espécie de cascata dourada.

Mas o corpo não se movia.

Aí o despertador se manifestou – sintonizado numa rádio local que derramava clássicos rock’n’roll dos anos setenta. Ele estava sozinho no quarto, por isso ninguém protestou. A cama ali ao lado – ainda vazia.

Na verdade ele já começava a ter saudades do Fred Mutantes.



- Hector, garoto tão inteligente, mas tão sem paciência!

Uma acariciante voz às suas costas. É Selma, a loira de sorriso cativante, ainda que intimidante. Tem a mania de tratar HD num tom um tanto maternal, apesar de ser apenas um ano mais velha.

O caso é que Rosália, a amiga de Darío Sabine, e sua irmã Antonieta são um tanto parecidas, e HD julga reconhecer Rosália nua mesa de estudos na biblioteca, ao lado de uma estudante de olhar ansioso, com seus cabelos claros, quase loiros. “Olá, Rosália, o que está estudando, hein?”, mas descobre, pelo sorriso da outra, o seu engano, pois esta é a Antonieta! Mas ele não se intimida e continua a abordagem. Estão ocupadas com um trabalho sobre o Renascimento, assunto que ele domina bem. E é apresentado a Selma, que estuda História Européia, e um período avançada.

Antonieta não é tão, digamos, extrovertida quanto a irmã Rosália, a que promovia aquelas festinhas na moradia Borges da Costa. Aqui é a Selma quem alimenta o diálogo, que começou com Da Vinci, e segue com Montaigne e literatura francesa.

- Cansa muito a gente ficar se interrogando. Ah, acho que li isso na Simone de Beauvoir, “agarro-me à idéia de ser feliz”. E felicidade não é apenas uma palavra!

E assim se tornam bons amigos.

- Então, o que anda fazendo, Hector? O garoto tão sem paciência...
E ele está sob aquele conhecido olhar de “quero saber tudo, não esconda nada”.

- Olha, Selma, eu não tenho tempo, sabe? Eu curso nove disciplinas na faculdade, eu trabalho, me dedico às traduções, estou me envolvendo com a Naína (você sabe quem é, não), não tenho tempo nem pra responder emails! E sabe porque eu faço isso tudo? Para não me matar. Eu, estando tão ocupado, tão envolvido com mil coisas ao mesmo tempo, não me permito pensar na morte, na miséria, no ridículo disso tudo. Sou o contrário do Mathieu (daquele romance do Sartre, lembra?), pois preciso dos compromissos para viver, e sou livre não tendo tempo pra pensar!

Mas Selma anda meio deprimida. O trabalho sobre o maio de 68, “o ano que não findou”, é um tanto desgastante. Ela precisa desabafar. Sobem ao segundo andar da biblioteca, ocupado pelos periódicos, e ela dá livre vazão ao seu sentimento de perda, por não ter vivido toda uma época. HD lembra que há muita idealização, até porque a juventude de hoje é um punhado de tribos sem rumo.

- Mas o que me falta é a luta. Lutar por algo, entende?

Então ele a convida para a sua palestra sobre Malthus.



Quando HD vê a Naína, na parada do ônibus, com seu vestidinho branco, com motivos florais, várias imagens desfilam por sua mente ansiosa: a volúvel Sandra que o excita, a cada elemento químico da Tabela Periódica, mas depois o despreza, a melancólica Sonia Regina, com o seu ar triste de despedida, a esperta Vera, a recepcionista, que não hesita em sair com o gerente de recursos humanos. E pode incluir também aquela loirinha fascinante que ele encontra na floricultura, quando foi comprar flores para a sua mãe em maio.

- O professor de Sociologia, e a Sociologia nos incomoda tanto, que diante da montanha de sabedoria que ele é, só nos interessa apontar o seu “inreal”, ou “riquesa”, como uma forma de defesa frente a algo que é superior, daí sermos irônicos. É o mesmo que eu faço agora, apontando os seus erros.

É que ele é meio didático, e cínico, com Naína, mas ela sempre com aquele olhar de “fingirei que não entendi”.




- A superpopulação divide a riqueza e causa pobreza, além de provocar um extrativismo irresponsável que devasta o meio ambiente. Afinal, pra que tanta gente? Às vezes eu mesmo me pergunto o que faço aqui.

O professor e seu sorriso irônico, lembrando que se não mais se reproduzisse, ninguém daquela geração estaria ali, debatendo a reprodução!
HD aceita a interrupção (hábito comum do professor) e expõe a questão do descontrole – e do descompasso! –, o problema do desemprego estrutural, a reserva de mão-de-obra, os gastos do Estado para com os economicamente inativos.

- Ou então a esfera produtiva deve acompanhar o aumento populacional.

Atenta, Selma observa que Malthus aborda o problema da alimentação. HD concorda, mas amplia a visão de Malthus para toda a atividade econômica.

Malthus se preocupou com o descompasso entre o crescimento populacional e a produção agrícola necessária para alimentar o povo. Hoje a questão é o descompasso entre o crescimento populacional e o crescimento da esfera produtiva. Produção enquanto produção agrícola ou manufaturas. Percebe-se que o Capital não gira, não é investido na ampliação do setor produtivo, mas fica nos setores financeiros, rendendo juros, no cassino da especulação. Para que montar empresas e postos de trabalho se o dinheiro clona a si mesmo?

Meneando afirmativamente a cabeça, o professor mostra-se satisfeito com a exposição de seu aluno militante, aquele tipo que se empolga com as temáticas. Espera, atencioso, o grand finale.

- E como há um crescimento populacional e poucos postos de ocupação, ocorre hoje um nível de competição jamais visto. Conseqüentemente um aumento do estresse, do sofrimento psíquico, e as paranóias e neuroses.




- Leitura legal.

Tudo bem. Mas Naína se referia a obra “Vidas Secas”, de Graciliano Ramos.

- Legal? Você e essa gírias de MTV. Legal ler sobre a miséria alheia, hein? Antes aqueles retirantes na miséria do que eu, não é?

Ele sempre soubera que aquele romance com Naína não seria muito produtivo. Com toda uma mentalidade de classe média, ela reproduzia o que aprendera: uma total indiferença com o sofrimento alheio.

Os romances nordestinos sobre retirantes: da miséria de outros vamos criar arte. Hoje são os favelados que aprecem ‘legitimados’ em livros e filmes.

E Naína esforçava-se por entender, mas ele já empolgava.

- Existem até loucos que agradecem as secas do Nordeste, pois se não ocorressem, não haveria retirantes para inspirar essas obras de arte! O que seria do Graciliano, da Rachel, do Zé Lins, dos poemas-épicos do João Cabral com sua ‘vida-severina’?
E falando, ele sempre esquecia de comer. Ela, ao contrário, já engolia o sanduíche. Agora pedia um milk-shake.

- Então é legal? Ora, precisamos é parar com esse hedonismo de julgarmos as coisas pelo prazer! É preciso consciência, conscientizar-se. Pois o sujeito pensa: não vou ler Thomas Mann, que é muito cerebral, ‘chato de galochas’, vou ler romances de aventuras ou livretos-pornô-de-banca-de-revistas! Se ele busca prazer, encontrou. Mas aprendeu o quê? A leitura deve trazer aprendizagem! Se o estilo traz algum prazer, estético ou erótico, ou ambos, tudo bem! Mais importante é a conscientização!

E ele acabava pedindo um milk-shake também.




Ou encontrava Darío pelos corredores.

- O Brasil podia ser república desde 1817. Pernambuco sempre inquieto (desde os Mascates, lembre-se!) e não passa nem uma década e fuzilam o Frei Caneca.

É que Darío se empolgava com uma monografia sobre a Revolução Pernambucana, a proclamação de um regime republicano diante de uma dita monarquia constitucional, e a posterior proclamação da Confederação do Equador, exigindo uma constituição mais liberal.

- Naquele tempo ser liberal era ser de esquerda.

- Naquele tempo!

E notava o volume que HD conduzia. “O Diário de Getúlio Vargas! É sério, hein?” Isso porque a empolgação de HD era a década de 30.

- “O aparente prosaísmo da vida rural é bem mais interessante do que parece.” Vargas escreveu logo de início. Em três de outubro de 1930!

- O regime corporativista-trabalhista de Vargas foi um regime contra-revolucionário que dissolveu a revolução proletária, ou transcendia o fascismo num esboço de social-democracia?

Inevitavelmente desciam até a lanchonete da Letras, e Darío polemizava. – Vargas foi o nosso Perón ou o nosso Roosevelt?

- Falta agora você perguntar se o JK foi o nosso Kennedy!

- Chegou a existir capitalismo no Brasil?

- Pense, Sabine, meu velho!, se essa denúncia da Esquerda (essa de que o trabalhismo getulista é pelego ) não acaba ajudando aos triunfalistas neoliberais que proclamam o atraso da legislação trabalhista e pregam a flexibilização?
Pediam torta de frango, e HD nem esperava Darío responder.

- Os governos dos senhores Collor, Itamar e FHC-oito-anos são o total desmonte da Era Vargas? As privatizações, o fim da reserva de mercado, isso tudo é o golpe final?

- Mas quanto tempo o capital se agüenta sem o Estado? – não respondendo, mas revidando, Darío descobria outras questões – Não é o Estado que acaba pagando a conta das irresponsabilidades do capital? Por que esta onde de insultos como se o “Leviatã” não passasse de uma trava inoportuna?
O suco em latinha era bom, mas HD preferia uma laranjada. Darío não se importava 9até por que pedira um sanduba natureba.)

- Por que Vargas se matou? Por que Jânio renunciou? Quem matou o Jango? O acidente com o JK foi mesmo um acidente? Perguntas que não vão abafar!

- Certo, Sabine, você pode até perguntar, mas quem vai te responder?

- E quem matou Tancredo neves?

- O mesmo despotismos que detonou a bomba do Riocentro!

Ambos desconfiados das novas esquerdas (“que aplaudem Walesa!”), não podem deixar de lembrar as exaltações de Everton, naqueles saudosos sábados à tardinha.


- É igualzinho esses povos sob regime socialista – ou estatista, se preferem – que trocam a justiça social e o cooperativismo pela promessa de felicidade capitalista na compra de uma TV a cores ou no carro novo na garagem! O socialismo não objetiva trazer consumo, mas igualdade de oportunidades.

Ou quando comparava as trajetórias dos cristãos e dos comunistas, afinal (Alex dizia) são dois credos, dois sacerdócios.

- Os cristãos sofreram nas mãos dos romanos até serem legitimados pelo poder imperial, mas aceitaram colagens pagãs até atingirem a autoridade de nomearem reis e perseguirem hereges. Os comunistas fizeram a Revolução, detonando o czarismo russo, mas a guerra civil e os expurgos dos anos 30, expurgou a “velha guarda” dando lugar aos burocratas nacionalistas que deram prosseguimento ao imperialismo russo.

Na ocasião, HD ainda mais didático. – Com a precoce morte de Lênin, o Secretário Stálin dá um golpe dentro da Revolução e asfixia o socialismo com uma coletivização forçada, uma burocracia estatal e um unipartidarismo dogmático.

- É melhor uma ditadura socialista que uma democracia liberal? – Flávio perguntara, incomodado.

- Nada disso. A verdadeira democracia é a socialista.
E Darío complementava HD. – o que queremos dizer é que não houve ainda uma real sociedade socialista. A tentativa ainda é válida.

Não demorava e a discussão caía na disputa ‘moderados’ versus ‘radicais’, e Darío vê-se obrigado a esclarecer que se os bolcheviques, os radicais, venceram na Rússia em dezessete, na Alemanha, em dezoito, dezenove, acontecera o inverso, a derrota os espartaquistas e o assassinato de Rosa Luxemburgo.

Autora que, ao lado de Hannah Arendt, todos ali faziam questão de ler.

Mas nesse ponto Flávio narrava suas velhas discussões com seu cunhado Augusto (que todos ironizavam como o conflito entre Flavius e César Augustus), o que não deixava de ser interessante, pois Augustus, de origem periférica, casa-se com uma burguesa, e torna-se conservador, enquanto Flávio, de berço classe média, percebe a desigualdade social e defende as reformas.

Darío não perde a oportunidade de lembrar da Roma República decadente, com Catilina, soldado, de origem nobre, defendendo a igualdade social, às turras com Cícero, da província, mas que sendo arrivista, defende a propriedade, numa oratória conservadora.

- Portanto, minha gente, cuidado com os arrivistas!

Alex piscou o olho, sorrindo e cutucando o pobre HD.


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LdeM

sábado, 3 de julho de 2010

final do Capítulo 4 de Náuseas de Estudante

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Comentam – os outros rapazes, pálidos candidatos – os casos inusitados, que conhecem, que vivenciaram, onde os candidatos se dão mal... Assim, um deles que esperava numa sala de entrada a hora da entrevista e encontrou clipes metálicos numa mesinha ao lado e começou a brincar, a desdobrar e a amassar e a montar novas figuras com os pobres fiozinhos metálicos e até que deixou ali boa meia dúzia de figuras pouco geométricas... Nisso aparece uma atendente, “Olhe, agradecemos ao Sr., mas o Sr. não se encaixa em nossos quadros...”, e ele, boquiaberto, arrasado, quer saber o motivo, “Ora, se o Sr. nem é funcionário e já danifica material da empresa...!” e todos seguram os risos.

Um outro lembra a velha armadilha da apostila da Empresa a disposição numa mesinha – e também um monte de revistas ou a TV ligada com banalidades e tal. Então o candidato é interpelado sobre a Empresa, mas ficara embasbacado diante da TV ou a folhear revistas de moda feminina de celebridades, fofocas, sabe-se lá mais o quê! E a mina de ouro ali do lado... “Caso o Sr. tivesse o cuidado de se informar sobre a nossa Empresa...” e adiós vaga querida!

Agora o tempo passa veloz e soam quinze horas. Na sala principal, lotada, jovens trocam apreensões, e HD somente reconhece aqueles dois jovens (um dos quais foi aquele que o cumprimentou) remanescentes do grupo de quase cinqüenta! (Aproveita o tempo ocioso para calcular: cinqüenta pessoas se apresentam, umas cinco desistem por causa do horário ou insatisfação com o salário, e umas dez são eliminadas por não satisfazerem o perfil traçado pela instrutora; depois, a prova acaba por eliminar mais uns dez. Sobraram quantos? Uns vinte e cinco. E quantos escolheram o mesmo cargo e horário? Talvez uns dez. Ou nem isso. Veremos.)

Três e meia, quinze horas e trinta minutos, e nada. Fila da Previdência Social? O aconselhado é indagar (quem tem boca vai às ruínas de Roma...) apenas para receber a resposta de que outra turma está sendo avaliada, e que a Dinâmica de grupo incluirá os que passarem nesta avaliação. Esperemos portanto. Deixa-se ficar ali na sala principal, ouvindo fragmentos de conversas fúteis e diálogos patéticos de todos aqueles que esperam a porta do paraíso celeste da vaga de emprego se abrir e anunciar o próximo redimido que deverá passar pelo fogo purificador do teste de digitação e então encontrar-se apto para entregar seus documentos. Todos aqueles documentos exigidos!

Comentários sobre o filme ianque da temporada, sobre as novelas globais, sobre os seriados made in USA (“McGywer salvou fulano com um barbante, uma goma de mascar, e um pedaço de papel laminado, daqueles de bombom... hahaha!”), até que uma voz se sobressai, “Ele acredita que o que fez o bolo foi o acidente da caminhonete”, trata-se de um jovem de uns dezoito anos, com uma camiseta de banda de rock pesado made in USA (uma geração antes e ele estaria com uma camiseta do IRON MAIDEN) e em plena dissertação entusiástica sobre o criacionismo versus evolucionismo diante da platéia de duas garotas e um outro rapaz (o que se diz ateu)

Continua o rapaz com a camiseta da banda de rock pesado made in USA (e dificilmente saiba o que a banda diz!), “Pois, vocês devem saber, existem duas idéias: o bolo foi feito por alguém, no caso um Deus, que criou tudo, ou, então, o bolo foi uma coisa casual, por geração espontânea, tipo assim, haviam uma fôrma e um saco de farinha na caminhonete, aí ela tombou junto a um poço, a farinha caiu na forma, onde caiu água, havia também um saco de açúcar que derramou também, et cetera, até que apareceram uns ovos e eis o bolo prontinho! Isso porque a massa caiu no asfalto quente...” Aí uma das garotas não hesita em perguntar: “Mas existia uma fôrma, não existia? Por que uma fôrma? Não havia já o propósito de se fazer um bolo?” e aí a conversa segue entre o sério e o jocoso.

Impressionante a capacidade dos jovens de tornar cômico qualquer assunto, por mais solene e filosófico que seja! Pensa um HD querendo entender. Mas logo dois membros do grupo são chamados e a conversa esfria. HD resolve voltar ao seu cantinho, nas bases da escadaria, junto aos lavatórios.

Desce os degraus e lá estão os dois jovens que passaram na avaliação da manhã (um dos quais o cumprimentou, observemos...) e HD logo esclarece que nada de Dinâmica e “Olhem que já são quatro horas”, e o outro comenta, “Vou trazer um colchonete da próxima vez!” Mas o assunto não rende e HD debruça-se sobre umas tantas folhas impressas, em suas leituras sobre o marxismo.

O tempo passa (pois não é que precisa passar?) e meia hora depois uma voz desce aos sobreviventes. É a instrutora que vem chamar o grupo. Na sala de teste, eis mais cinco pessoas, todas jovens entre dezoito e vinte e sete anos, são três moças e dois rapazes, todos advindos da avaliação que findara minutos antes. Assim são , ao todo, oito pessoas depois de duas turmas serem avaliadas! (O cidadão, ao lado, esclarece que, devido ao horário, poucas pessoas se interessaram, além de que existem outras áreas de atuação em telemarketing, etc) Adentram a instrutora (outra) e dois supervisores da Empresa.

Informam que terá início a Dinâmica de grupo – e logo torna-se visível ao apreensivo HD a mesmice da situação, “eu já vi essa antes...”, inclusive essa de “seja você mesmo”, “temos pouco tempo para avaliar vocês”, “não queremos qualquer tipo de representação, maquilagem aqui”, etc – e sugerem logo aquele tipo de apresentação cruzada (e HD já participara de outras) onde o grupo é dividido em pares e um se apresenta ao outro, que apresentará o primeiro. Assim, HD está frente a frente com um DH, e ele se apresenta. “HD, 21 anos, mineiro, solteiro, estudante, gosto de ler...” , e em seguida o outro. “DH e etc etc” e vê-se que é de classe média, bem educado, bem falante, bem nutrido, branco e musculoso, pratica esportes radicais (no entanto fuma) e já trabalhou com vendas, em lojas, ao mesmo tempo em que tentou montar uma banda ( de que?) mas acabou deixando as vendas e transformando a música em hobby.

As duplas se apresentam – um apresenta o outro – e os supervisores, ao anotarem os dados, vão perguntando os pontos positivos e negativos de cada um (todas as dinâmicas coletivas serão iguais? Desde a faculdade de Psicologia os agentes de RH aprendem as mesmas coisas, os mesmos testes?) e HD consegue deixar a instrutora confusa, quando revela ser seu ponto positivo a calma, e o ponto negativo, a ansiedade, e ela: “Como é isso? Calmo e ansioso?”, e ele: “Como todos podemos ver, aqui entre os candidatos, a ansiedade é algo comum, e mesmo os mais tranqüilos atravessam fases de ansiedade. Um contra-balanceia o outro. É difícil ser sempre calmo ou sempre ansioso... Existem situações de mais ansiedade, esta agora , por exemplo...”

Agora, a Dinâmica inclui um teste de aptidão vocacional par vendas. Dois grupos (cada um com quatro pessoas) e cada grupo deverá fazer a promoção de um produto – inventado. A instrutora e os supervisores serão os compradores. No grupo do HD (onde participa o DH, que além de esportista, músico, é fã de quadrinhos, e já leu “O Mundo de Sofia”, além de duas mocinhas: uma toda fofinha, lindinha, meiguinha, tímida, e outra morena, vivida, feia e arrogante, com certa experiência em vendas) surge a proposta de um secador de perucas (idéia do DH que, além de tudo, já foi vendedor numa conhecidíssima rede de sapatarias!) e HD contrapõe com a idéia de um tênis (ou sapato) com ar condicionado! A idéia é prontamente acatada pelas mocinhas, mas sofre resistência por parte de DH, de quem HD esperava plena aprovação, já que o cara conhece de calçados...

Mas HD não desiste, resolve convencer o outro com leveza, sutileza, como quem não quer nada, com bom humor, e DH acaba por concordar em apresentar o produto, “com toda a minha experiência, como você mesmo disse...”, enquanto HD preocupa-se com as vantagens, e as mocinhas abordam as formas de pagamento.

Já o outro grupo tenta vender a idéia de uma nova bebida tonificante sem álcool (ao estilo redbull) e o tal ex-garçom ( o tal que saudou HD antes) é o que mais fala. Tentam ‘vender’ a bebida para os instrutores e alegam que entre os efeitos da bebida encontra-se o de melhor audição para atendentes de telemarketing, além de tonificar a voz para quem fala muito ao telefone!

Os avaliadores (principalmente a instrutora) inventam todo tipo de dificuldades e apontam mil defeitos nos produtos, testando assim o poder de convencimento dos ‘vendedores’. Ainda mais quando se oferece um tênis com ar condicionado! Com refil lateral para troca de ar, com bateria removível e recarregável, menor que a de um celular, isso tudo DH segue falando, mostrando toda a sua experiência com venda de calçados, insistindo na relação custo-benefício, e segue com a lábia mesmo depois de HD apresentar as vantagens reais do produto, indicado para quem sofre de suor excessivo nos pés e odores desagradáveis. E as mocinhas são diplomáticas quando falam de valores, abusam de eufemismos, avolumam parcelamentos, amontoam garantias, e aceitam tudo – cartão de crédito, débito, sabe-se-lá-mais!, e cheque para até sessenta dias! Além de negociarem um seguro (afinal quem vai correr o risco de sair por aí com um tênis de quase mil reais?!)

Tudo é avaliado: atitude, poder de argumentação, apresentação pessoal, liderança, etc. Os avaliadores logo se retiram para uma sala contígua e passam a deliberar quem vai ficar e quem vai ser eliminado (sem direito àquela ‘espiadinha’...) , pois o processo continua (vai anotando: teste de digitação, documentação, depois exame médico, treinamento intensivo seis dias por semana, ufa!) Impressionante! O currículo fica quinze dias parado lá na gaveta e quando o RH convoca, quer resolver tudo em 48-horas! Vá se entender! Deixa-se pensar o atordoado HD.

Uma lista de nomes nas mãos da instrutora, eis o veredicto. Apenas cinco nomes. As mocinhas inexperientes são logo dispensadas, só a morena (a que trabalhara com telefonia em bancos) permanece. Outra coordenadora distribui uma lista (enorme!) de documentos exigidos. No olhar de HD pode se ver: É nesse pântano que vou atolar!


Assistindo a debandada geral dos funcionários, os candidatos esperam as detalhadas explicações da coordenadora. “Onde estão os colchonetes?” quer HD logo saber do colega ao lado, o DH. Afinal, são sete horas e a agência já fechar a muito tempo! Os minutos parecem escoar lentamente, mas escoam. Todos saem juntos, trocando votos de amizade e acariciadas esperanças, principalmente o ex-garçom, o muito falante rapaz, ali ao lado de HD, perguntando pelo almejado destino do ‘colega’, enquanto na esquina com a Amazonas, tumultuada avenida de outdoors nova-iorquinos, o grupo se reparte em despedidas.

O ex-garçom, acompanhando os passos de HD, rumo a downtown, também está preocupado com a lista de documentos e HD expõe o desconforto que o golpeia, “ Vou perder a vaga não porque falta aptidão – afinal passei em todos os testes – mas porque exigem documentos para 48 horas! Assim, o excesso de exigências mantém a empresa sem empregados, e os profissionais ficam sem empregos, aumentando assim o mercado informal, onde nada é assinado e,no entanto, o trabalhador tira uma grana, mesmo sem qualquer garantia, ou direitos”.

Logo HD quer saber do ex-garçom se ele tem real interesse pela vaga, se pode realmente se imaginar trabalhando dois anos ou mais naquilo. O ex-garçom pensa com um sorriso e diz estar acostumado a lidar com pessoas, cara a cara, e até braço a braço! Vez ou outra precisava expulsar um ou outro cliente que passa dos limites – “Lembro sempre que é preciso consumir com moderação!” – sem perder o rebolado.

Descendo ao boulevard da avenida Barbacena, HD comenta meio irônico que quem sobreviver ao trabalho de garçom, está pronto para qualquer outro. “Também não é assim!”, o ex-garçom sorri. HD não desiste, “Mas a imagem que você pintou!” E o ex-garçom gosta de falar (percebe-se) e HD lembra que realmente o falante amigo poderá mesmo passar dois anos e mais pendurado lá nos fios da tlefonia, até porque lá tem a facilidade de não haver a presença física do cliente...

E o ex-garçom prossegue com o desfile de lembranças, os tipos de fregueses, e principalmente de um que fosse até de madrugada, bebendo e jogando xadrez. “Jogava xadrez, o cara bêbado?”, HD pergunta. “E eu também!”, responde o ex-garçom. E comentam jogadas de xadrez, que HD conhece das tantas derrotas diante de Flávio, e o ex-garçom explica seus lances prediletos, enquanto contornam a praça Raul Soares, e HD confessa precisar de um mestre, ao que o falante companheiro replica “Melhor um bom adversário que um mestre! Um bom adversário que te obrigue a lances mais táticos, e originais”, e HD, dado ao aforisma, “Adversário é o outro nome para mestre.”

O ex-garçom ainda explica lances inusitados, quando se separam na esquina Augusto de Lima com São Paulo. “Será que algum dia eu o verei novamente? Por que ele quis se aproximar?”, pensa HD já na escalada da ladeira da Rio de Janeiro.

No “Castelinho”, isto é, o Centro de Cultura, ex-Câmara Municipal, ex-museu, ex-etc, HD encontra a imagem dos colossais e vetustos portais de ferro – fechados. Portais que décadas antes, em brumoso passado, se abriram para o rato-de-biblioteca Pedro Nava, assombrado por memórias! Mas uma gentileza do porteiro permite seu acesso ao balcão interior, onde se dedica a conferir informes e escolher folhetos. Nada de interessante e não saiu a programação do mês. Mas, não pretendendo sair de mãos vazias, leva dois exemplares do “Suplemento Literário” do mês recém-finado.

Desce a rua da Bahia, povoado de ruídos, pessoas, passos apressados e pensamentos soltos. A imagem da mocinha de seus afetos ali se faz presente. Pensa em parar no próximo orelhão, um simples telefonema... Não, ainda não. Assim, passo a passo, atinge o viaduto Santa Teresa, onde o Poeta se alçava às alturas, sim, os versos de Drummond ressoam nos vórtices sonoros de buzinas e motores, “o rio de aço do tráfego”, sim, o inchaço das metrópoles – o que restava da Belo Horizonte dos relatos do Memoralista, dos poemas do Poeta? O racional projeto das cidades – onde? Só resta a “racionalidade instrumental”, aquela dos escritos de Weber, o sociólogo, lado a lado com a “irracionalidade inercial” das tantas misérias e superstições, seitas e lucros excusos, consumismos mil, enquanto pensa em soluções socialistas na fila da bilheteria do metrô e soluções literárias quando uma senhorita abre um livro de crônicas na tumultuada plataforma da estação.

Sabe que pensará na mocinha, sabe que seu desejo é real e crescente, sabe e sabe, mas tudo para deixar-se relaxar e cochilar, antes de descer duas estações rumo ao oeste, enquanto um casal troca olhares e carícias, pois a vida continua.






final do Capítulo 4

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LdeM