sábado, 16 de outubro de 2010

Insônia das Almas - Capítulo IV




Insônia das Almas

Capítulo IV

Voltando da Zona Sul, Sônia Regina vai oscilando em si e no balançar do ônibus. Desistindo de esperar a amiga Raíssa, e sentindo-se outra folha seca naquela praça, onde uma mãe e um pai embalam uma criança e tantos sonhos, e um jovem, possivelmente universitário, lê um romance, o qual Sônia descobriu ser alemão, isso é, o romance, quando ela se levanta e atravessa a praça em direção a ele, lendo abaixo do imenso HESSE, o título “O Lobo da Estepe”. Quem é ele? De onde veio? Para onde vai? Será que vou reencontrar esse cara algum dia? Onde? E ele – quando vai morrer? Como será? Por que?

Agora, nos espasmos e estertores do coletivo, quando atravessa o bairro e suas silhuetas de edifícios, ela, Sônia, um tanto pensativa, não pode deixar de estender olhares aos seus companheiros de viagem, ali, sentada sozinha, em banco duplo, tendo, diante de si, um casal de idosos, acima dos sessenta, cabelos brancos ou grisalhos, pele de pergaminho, o espelho da finitude, mas em comportamento um tanto juvenil, iguais a jovens enamorados. O homem balbucia anedotas ou casos picantes, em gestos, em risos, com certo escândalo, e a mulher, sendo mais moderada, “Ora, mais compostura, meu velho. Estão nos olhando!”, mas seduzida ao clima dele.

Lá fora, as paisagens, em sua dicotomia, palavra erudita, que ela aprendera na aula de Biologia, mas com um sinônimo de contraste, de um lado, precisamente à sua direita, o bairro residencial classe média, do qual o ônibus emergira, e do outro lado, à sua esquerda, a “comunidade em risco social”, ou, vulgarmente, “favela”, tendo como ponte, transposição entre o fosso e o abismo, uma simples passarela. E o casal a incomoda, a velhice é outra máscara, e pior ainda, velhos agindo como se fossem jovens, “As coisas feias não merecem existir”, ela pensa, abraçando o seu caderno de desenhos, disposta seriamente a reduzi-los à fragmentos.

Sônia levanta-se, e resolve ir em pé, mais ao fundo, sem se expor aos olhares inquisidores dos demais passageiros, o que muito a intimidade, a sentir calafrios como se a vigiassem. Ao seu lado, uma garota atrai sua atenção, quando abre uma bolsa com flores, deixando leve aroma invadir o ambiente, e entrega-se a leitura de um livrinho, iguais aqueles de catecismo, aquele livretos com orações e preces já prontas, pré-cozidas, e tenta meditar, balbuciando sílabas, e Sônia sabe que a garota sofre com o ambiente do ônibus, igualzinho a ela mesma, que detesta embarcar em coletivos, se pudesse ela andava a pé, ou melhor, nem saía de casa, mas a garota, aquela ali com o tal “bonsai”, é fraca e recorre assim à auto-ajuda, ao misticismo, pois sem isso, possivelmente, a garota se desesperaria, não é do tipo Sônia, assim sobrevivendo sem essa de pensamento positivo ou coisa do tipo, simplesmente se abriga dentro de si mesma.

Então o ônibus emparelha com um ônibus e Sônia Regina tem a visão panorâmica do interior do outro coletivo, da parte traseira até o motorista, onde um jovem no penúltimo assento, sozinho, fones no ouvido, boné caído meio de lado na cabeça; adiante um senhor idoso com chapéu de cowboy; adiante duas garotas de pé, talvez se preparam para descer, e trocam palavras, e mascam chiclete; adiante uma mulher, de meia idade, tenta ler um livro, talvez um romance; do outro lado, um homem engravatado, terno e bem sério, a observa, quando ela vira a página; adiante duas senhoras idosas, sentadas lado a lado, conversam, talvez sobre a juventude de ambas, então a cobradora, de costas, junto a roleta, está olhando o homem de terno?, então, adiante, uma garota cochila, com a orelha esmagada contra o vidro da janela; então, o motorista, com seu olhar fixo, sonâmbulo, entediado – DELE DEPENDEM AS VIDAS DE TODOS AQUELES! O rapaz com os fones, o senhor idoso, as duas garotas, as duas velhas, a mulher com o livro, o elegante de terno, todos, todos, eles dependem da atenção e do profissionalismo daquele motorista, e caso ele se permita cochilar – então é o fim!

E é assim que Sônia toma consciência de que sua situação é a mesma! E ela quer agora vislumbrar o vulto do motorista, muito ocupado, por sinal, ao encarar a maré de faróis, numa frenagem brusca, com alguém lá no fundão a gritar, “Desgraçado! Não é a sua mãe que 'tá aqui!”, e ela olha os passageiros, perdidos em indiferença e hostilidade, e ela olha através da janela, o São Pedro é aquele bairro ali à esquerda, e ela percebe em si um desejo louco de sair dali, saltar do coletivo, e percebe seu braço erguer-se e tensionar o cordão que dispara o sinal, e sabe que é inútil, que vai andar à toa, mas paciência tem limite, e salta na avenida, ainda distante, uns seis longos quarteirões, da Contorno, e daí?

Área mais arborizada, gemidos do vento entre os galhos, uma cascata de folhas, a primavera se inicia com frio e vento, lá em cima as estrelas, o traçado do escorpião, e mais uma vez Sônia se lembra da noite encima do telhado, ao lado do Stevam, a observar as estrelas que ela julgava eternas, até que o TH, não, TH o quê!, o Henrique, naquela visita, afagando os gatos do Oto, a revelar que tais estrelas, ele dizia “astros”, estão tão distantes que talvez nem estejam mais lá, somente a luz que emitiram viaja eras e eras até os nosso olhos. “Parece eterno? É mera aparência...”

O Henrique que surgira das sombras, diante do barzinho do Santa Efigênia, onde comentava com o Oto o eclipse de 11 de agosto, e as ameaças apocalípticas, mas já estamos em setembro e o mundo não acabou – ainda não. O eclipse do sol do Canadá à Índia, as profecias de derrocada planetária, as rezas e mantras – por que? Ah, o medo do fim! Do não mais existir! Mais medo da morte do que amor à vida! Henrique, com essas melancolias, a discutir com o Stevam sobre onde era o centro da “alma” : o cérebro ou o cerebelo? Um outro dizia que era na “medula espinhal” e só faltou o Elias, o gordo, para trazer seus livros de esoterismo, mas logo o outro falava sobre o filme “A Cidade das Sombras”, e fiquei interessada, eu que me assustei com o filme, verdade! Os ETs tiravam o “Eu” das cobaias, e procuravam a essência das pessoas, enquanto observam os comportamentos das cobaias a cada mudança de situação e posição social: um cara dormia médico e acordava policial! Seria a mesma pessoa?

Mas por que me lembrei do Henrique? Ah, o lance do eclipse, e o fim das estrelas – que as estrelas se perdiam na imensidão, talvez nem existissem mais, afundadas na escuridão do espaço, onde a luz era exceção, um milagre, “estamos rodeados pela escuridão”, o Henrique dizia, do jeito sombrio dele, que dava arrepios! Mas, arrepios, arrepios, eram as “aventuras” do Stevam com o louco do Germano, louco de pedra, mesmo!, e não me admira!

No telhado, Stevam deitado, agora, pois Sônia se lembrara de Germano, agora em narrativas de certa aventura ao lado de Germano e seus discípulos, antes qque ela se envolvesse... Entediados de ouvirem sonoridades apocalípticas e ásperas sinfonias, Ariel e Lino, os adeptos, concordaram com Germano, o Mestre, em um passeio no bosque, e Germano pedido lá na zona norte, pros lados do Jockey, guiaria os celebrantes trilhas adentro, rumo ao bosque, e Ariel gritava, naquela noite de lua cheia, na escuridão aliviada por um luar a furar a cortina de névoa, e Ariel por pouco não pisa num besouro, espécime rara, mas Germano elevara a voz, imperativo, que aquela pequena vida era parte integrante de Gaia e outros pensamentos elevados e ecológicos, cheios de espiritualidade Wicca, que era uma espécie de novo paganismo, ou ressurreição do velho e arcaico, não havia entendimento sobre o assunto, e ninguém discutiu, e Stevam apoiou Germano, apesar de nada entender, mas era mais contra aquela pose de Ariel, de brutal violador de donzelas, enquanto Lino silenciava, pouco se importando, um inseto a mais ou a menos, grande diferença!, em sua pose de “estou-acima-destas-questões”, como bom materialista que é, apesar de toda essa pose de “filho da Grande Besta”, a viver o macabro enquanto divertimento, diante dos filmes B na madrugada, quando não flagrado assistindo “Pânico/Scream”, com a pobre-jovenzinha, a assustada Neve Campbell.

E seguiram até uma lagoa, coisa modesta, dentro de uma fazenda, evitando os cães raivosos, e uivaram para a lua e tiraram suas roupas, ao que Stevam ofereceu resistência, afinal não sabe nadar, e eles pularam na água e entoavam hinos que talvez julgassem pagãos, e se degladiaram, e se golpearam, e se esfregaram, e Stevam junto a margem, num silêncio pesaroso, temendo a aparição de alguém, e, pior!, armado de uma espingarda, e então eles saíram das águas, e passaram a correr em ladainhas no que talvez julgassem latim, sob uma alegado feitiço da lua, à espera do Grande Deus Cornudo, e depois ao redor de Germano, de braços erguidos, e se inclinavam, e cada um, a sua vez, depositou um fervoroso e devotado beijo em seu raseiro pálido de Mestre, OSCULUM OBSCENUM ! e depois passaram a procurar Stevam, a poucos metros, no escuro, vendo tudo, recostado no tronco de uma árvore a muito tempo morta.

E assim Stevam narrou o inusitado de como se recusou a prestar a homenagem ao Mestre e não fora aceito no “inner circle”, como eles diziam. E Sônia, de boca aberta, já pensava que ele daria um ótimo contista, “Já pensou em ser escritor, Stevam?”, e ele sorriu, e agora ela sorria, diante da praça, lá no outro lado da avenida, andando lentamente, afinal nenhum compromisso, ninguém a preocupar-se se ela estava viva ou não, afinal “na vida perdia muito tempo com pessoas que não se importam se estou vivo ou morto”, como cantava o Morrissey, e em passos sem pressa, diante da arquitetura gótica-urbana dos casarões antigos e adiante os arranha-céus, arranha-noite, ela a procura de uma lanchonete, sim, precisa de água, eis uma luz a cair na calçada, janelas iluminadas, é um restaurante. Sobe a escada, surge um garçom, e ela apenas deseja uma garrafa de água mineral, ele vem de um corredor lateral, e assim que ela diz “Boa Noite!”, ele estende a mão rapidamente, e alcança seu ombro, na base do pescoço, “Uma aranha aí, moça!”, e uma aranha, pequena e negra, cai ao chão e é esmagada pelo sapato lustrado do garçom. E Sônia ali a sorrir constrangida, toda envergonhada por mostrar-se desconfiada do gesto, e passa a nota para pagar a água e sai com todo o silêncio possível.

Gritar e onde estão os deuses? Deus ou o Diabo, quem atenderia? Aquela poeta europeu que Henrique elogiava tanto, numa elegia, “Se eu gritasse agora que anjo ouviria?” Rilke? Ah, sim! Andar pelas ruas e encarar esses vultos que de perto apresentam feições humanas, aquele ali posso segui-lo com o olhar, e imaginar quem seja, o que confere sentido a sua existência, será que algum dia o conhecerei? Trocaremos algumas palavras? Compartilharemos experiências? Seremos corteses ou seremos hostis? Em cooperação ou em competição?

Imagine que sou rica, e tenho consciência de que tenho o que muitos não tem, logo devo agradecer, não? A Deus, ou a quem quer que seja, agradecer semelhante dádiva, e logo agradeço, não importa uma enorme maioria que pouco, ou nada, possuem, assim agradeço por estar bem, e pouco me interessa se os outros apenas sobrevivem, mas se, por outro lado, se não agradeço, sou ainda mais mesquinha, por ser mal-agradecida, por não reconhecer que tenho, enquanto muitos não, e reconhecer que sou merecedora, abençoada pela Providência, e estou num impasse, agradeço ou não agradeço? Agradeço e sou culpada, não agradeço e sou culpada! Em todo caso a consciência de que tenho e os outros não! Em todo caso se sou consciente há a culpa!

Andando e falando, em resmungos, em colóquios íntimos, Sônia Regina percorre a Avenida, sob a penumbra dos galhos trêmulos, sob um vento onipresente, num redemoinho d folhas secas, pensando em cenas de outrora, cruzando com olhares indiferentes, ausentes, inclementes, dos transeuntes, sob o riso de mocinhas que se apressam às luzes do novo shopping, que por andarem em bandos, se sentem mais fortes, e atiram risadas aos que julgam diferentes, deixando à Sônia a incerteza de seus passos, se foge da ignorância ou se para esta se encaminha, no tropeçar de pensamentos, a gaguejar em sua língua cativa, a implorar um tempo ao ódio, pois odiar mais ela não pudia, ela tão fiel a si mesma, se é que tal “si mesmo” existe, a suportar estes olhares, estes risinhos de desprezo, ora , assim, desprezar para não precisar dar ouvidos, desprezar porque desisto de tentar compreender, sabendo que compreender não é aceitar, mas um tentar mudar, pois se compreendêssemos uns aos outros não haveria fingimentos, nem meias palavras, havendo um estender de mãos, mas ficar guardando mágoa, Aguentando essas idiotas rindo da minha cara, aí é demais!

Mas ela insistia, passos sem pressa, sob as sombras, a passos inseguros, mas em esforços de parecer segura, esbelta e completa, mas não!, surgia uma pedra, um buraco, uma sarjeta, um tropeçar e um ressoar de risos, como se o mundo todo não passasse de uma única e altissonante gargalhada! O mundo todo rindo, caçoando dela, o mundo a observar, a julgar, o mundo todo erguendo muros, recolhendo pedras para solene apedrejamento, enquanto ela, a sem rumos, a sem-lugar-no-mundo, segue vacilando, jogando a culpa de volta, sem sequer dispor-se a ouvir sua versão dos fatos, sem que ela saiba exatamente quem ergue acusações ou mesmo dos termos de tais acusações, condenada por um mundo que é promotor, juri e juiz, Às vezes, ela pensa, Sou igual, assim tipo o professor de filosofia, sempre hesitando, incerto das palavras, mergulhado em pensamentos, a gaguejar frases que nunca conclui, e ela não entende o motivo de tanta insegurança, mas é por pensar demais, pensar em abstrato, a escorregar nas esburacadas calçadas do Real, onde os padrões de linguagem e conduta parecem instáveis, incertos, meros joguinhos, sempre nebulosos e vazios.

As pessoas que andam tão seguras de si mesmas são amparadas por todo um pensamento pronto, comum e aceitável, que transmitem a superfície calma de um lago, onde apenas vez ou outra uma brisa ou uma ave aquática vem perturbar em arrepios e singelas ondas, são pessoas que caminham seguras por trilhas já comuns, a constarem nos mapas dos guias turísticos, sabendo onde pisar e quando, como falar e de que forma, não se preocupam muito, não pensam, somente em ação, e que elegância! Que eficiência! Em gestos prontos, palavras adequadas, mas, oh, meus pobres botões!, quão desastrados, quão deslocados são os que pensam! A não encontrarem a palavra, a expressão certa, e adequada, a transmitirem seus turbilhões de idéias, não sabendo como se adaptar as regras do jogo, sem os trajes adequados, incapazes de usarem a etiqueta, então rejeitados apesar de toda a novidade de seus gestos, mas temendo não ser engrenagem que se encaixe perfeita e eficientemente ao maquinário, e temendo ser a qualquer momento descartada.

Por que, meu atribulados botões, sou tão insegura, por que dou tanta importância ao olhar dos outros? Por que quero que me respeitem, me levem à sério? Por que não suporto o desprezo? E por que não desprezo, como as outras fazem? Quando um homem na rua acena ou sussurra que daria tudo para lamber a minha bunda, por que eu não consigo responder, ou rir na cara dele? Será que é por que julgo todos eles uns pobres cegos ignorantes? E ainda assim me importo com o que pensam ou dizem? Por que “deixo que suas mentes ridículas aumentem a minha agonia”?, não diz assim aquela canção do Anathema, que ouço em prantos? Eles, os pobres cegos ignorantes, não posso culpá-los por não me compreenderem, pois eu mesma não me compreendo!

Lembrem-se que só há vagas para os melhores!”, dizem os outdoors, dizem as apostilas, dizem os professores, como se o lance é ser “gerado para ganhar”, pisar cabeças, dominar e conquistar, sempre no pódio em primeiro lugar!, pois dizem que o mundo tem uma ORDEM, assim em garrafais, ORDNUNG!, gritava o Oto, com o Mein Kampf debaixo do braço, como se fosse Bíblia, mas tal ORDEM parece não passar de um imenso “Salve-se quem puder!” onde as poucas oportunidades são disputadas entre os enriquecidos e os desonestos, então por que nos ensinam desde criança a pensar em solidariedade, honestidade, não mentir, não ser invejoso, se os adultos são tudo isso e fazem o que vivem reprovando? Se formos seguir tais recomendações, vamos é morrer à míngua num mundo de competição, ganância e mentira, onde não se sabe onde há hipocrisia pior, essa de criar o jovem com ideais sublimes e depois jogar o pobre no mundo-cão, onde será destroçado junto com os seus altos ideais, sob os golpes dos adultos, aqueles mesmos que falavam em “amor ao próximo”, “justiça divina”, “igualdade de oportunidades”, tudo uma vergonhosa coleção de mentiras!, Por que não nos ensinam, tal faziam os pais da Raíssa, já dizendo “bem-vinda ao mundo cruel”?, de uma vez! que o mundo é essa desordem, essa flor da sarjeta, esse lamaçal de dejetos, esse inferno de desejos, no lugar de encherem as nossas mentes juvenis com fábulas e contos-de-fadas! Pois não temos a oportunidade de sermos bons e se ainda tentamos logo somos esmagados pelo fardo da corrupção!

Nossa espécie é um parasita no corpo de Gaia”, dizia o Germano, todo sábio, em meditações, sem saber que a época dos hippies já passara, todo cheio de inquietações de pensares naturalistas, zombando dos ecologistas, “que nãopassavam de outros porcos burocratas”, e ela digerindo toda aquela sabedoria daquele homem alisando o esboço de barba, em sua imponência de Mestre em sua solidão de heremita, abordando o “complexo dos jovens dos países desenvolvidos, onde cada um polui o ambiente, a consumir inumeráveis produtos, no que acaba por equivaler a trinta jovens dos países subdesenvolvidos, e assim se consumíssemos tanto quanto eles, lá do Primeiro Mundo, o mundo inteiro já teria se tornado uma imensa lata de lixo, pois vivemos, insistimos em viver, e assim o mundo vai se poluindo” e ele já até defendia uma extinção da “pulga humana” e que a humanidade desistisse da insanidade que era aquilo de procriação!

E por que agora a lembrar-se de Germano, e seu ódio? Ali diante da fachada daquela igreja, atrás de suas grades, a subsistir como uma testemunha de gritos silenciados e penitências indignas, a lembrar-se daquela fachada do castelo do Conde no “Drácula de Bram Stocker”, filme do Coppola que ela assistira ao lado do Germano, em seu sítio, aliás da família dele, lá na região norte, em seus braços, sentindo o seu respirar quente em sua orelha direita, tendo calafrios quando o Conde Drácula mordia um pescocinho e Germano a apertava por trás só para ouvir seus gritinhos, noite em que acordou alta madrugada, a virar-se na cama, seminua, sentindo um frio onde deveria estar o corpo quente do Germano, assim tateando à sua procura, mas o vazio na cama acaba por despertá-la, e ainda meio sonâmbula, entorpecida pelos orgasmos, ela ouve a voz pesada dele, lá na sala. Levanta-se, tenta entender, Ligando pra mulher? Disc-sexo? Apoio à vida? CVV?, vai lentamente até a porta, o corredor às escuras, luz somente lá na cozinha, com a sala em penumbra, e ele ao telefone, em fala pausada, sombrio, a lamentar algo, mas não estava tão fogoso na cama, agarrando seus cabelos, quase mastigando seus mamilos, com estocadas a rasgarem dentro?, e não parece ser coisa com mulher, apesar de também não parece ser com homem, pois Germano não conversa tão abertamente assim com ninguém que ela conheça, muito menos com os ditos amigos, seja o Victor, ou aquele Ariel e Lino, o magrelo Marcelino, bolas!, não, não falaria assim, ou ouvindo em silencio atento, um interlocutor a despejar considerações e, pior!, conselhos, quando Germano é só megalomania, tendo sempre a última palavra, agarrando todas as mocinhas, mocinhas iguais a ela, uma trouxa!, uma otária de marca!, que se deixa seduzir, enquanto ele conversa noite adentro com um ser desconhecido, ouvindo um som deprê, cheio de violinos e sopranos, onde o vocalista macabro se revela “o poeta que eleva odes à morte”, e ela sabe que ele a notou, mas ele nem se importa, a dizer que “um dia eu senti que a minha única companheira é a solidão”, e ela precisa concordar com ele, pois ela vai embora, mas deixemos para amanhã, ela agora volta à cama e adormece, embalada pela tristeza dos violinos.

A água desce fria, e escorre em seus seios, quando Sônia pressente um leve engasgo, ali em pé diante da fachada do solene gótico-urbano, e vem um arrepio de frieza e desamparo, como sentia tantas vezes quando ligava para o Germano, depois de resistir a contar seus dramas, os acontecimentos de seu dia tedioso, mas enfim reclinando-se ao imperativo do telefone, e ele, como sempre, indiferente às inquietações dela, por exemplo, quando começa a falar de música, “O álbum Sin/Pecado do Moonspell tem fortíssima influência de The Sisters of Mercy, com um vocal denso, profundo, depressivo, declamatório, com bases eletrônicas, e mais, podemos até dizer que o teclado do Sisters inspirou certamente o Anathema, no álbum Alternative 4, com teclados ora clássico, ora barroco, ora sintetizado, bem deprê, com passagens melódicas e asperidades nos vocais, tudo sob a profundidade do baixo opressivo, ou solos de piano, assim trinados de rouxinóis na beira de uma cascata estrondosa” e aproxima o telefone das caixas de som e ela ouve por instantes a doce melodia, enquanto alguém promete tirar a “segunda pele”.

A questão é: o que faz com que ela, a pobrezinha Sônia Regina Dalmas, busque aquele Germano? O que ela vê nele? Não mais que um egoísta, egocêntrico o suficiente para não compreender, para nem tentar entender, assim ela toda confissão ao telefone, e ele aumentando o volume do som, a julgar certamente que não tem obrigação de entendê-la, afinal não são namorados, não têm compromisso, ela aparece vez ou outra, “Dias chuvosos são perfeitos para se ouvir música triste, numa cripta úmida”, ela dizia, e lembra dos dias de chuva, passados no sítio do Germano, ouvindo música lúgubre e as gotas atingindo a vidraça, a água escorrendo, o céu cinzento, o cheiro de terra úmida, as gotas caindo lá dos galhos, ou certo crepúsculo, ouvindo música medieval, nas mentes desfilam cavaleiros, cruzados de faces pouco penitentes, com suas armaduras a reluzirem ao sol poente, em marcha para libertarem Lisboa das garras dos mouros, e vai escurecendo e estrelas surgem, e ela insiste em compartilhar essas imagens, os marinheiros cansados de tanto ver água, cruzando o oceano, descendo nas costas brasileiras, e mocinhas orfãs enviadas de terras lusitanas para casarem-se com os fidalgos locais e disseminarem descendência branca, na origem de todo um povo, inclusive ela e ele, os dois ali juntos, filhos da longa travessia, tal ela lera num livro chamado “Desmundo”.

Talvez o que ela procure em Germano é a segurança, de uma mente que observa, mas detesta classificações, igual a ela mesma, ambos incapazes de suportarem os colecionadores, os calibãs, os catalogadores, os rotuladores, os funcionários, os burocratas, os classificadores, que agridem a reduzida estética do mundo com uma obsessiva frieza cientifica, ofertando uma estética artificial de mundo artificial, enquanto as flores e as borboletas e as aves e seus cantos são belezas para os olhos e ouvidos, numa beleza gratuita, não para serem arrancadas, capturadas, ressecadas, dissecadas, coladas em herbários ou espetadas em isopor com alfinetes entomológicos, mas ela sabe mesmo assim que vai abandoná-lo, que não vai ficar entregue aos seus caprichos, serva disposta a agradá-lo, e corda antes da aurora, dormira pesado após ouvi-lo ao telefone, agora já vestindo a calça jeans e atenta ao ar adormecido dele, ela vai se vestindo, não quer acordar o anfitrião, mas ele não dorme, apenas deixa-se fingir, e logo a voz dele soa forte e clara, “indo embora sem se despedir?”, “Preciso ir, já vai amanhecer.”, e foi embora e não voltou mais.

As buzinas assustam Sônia Regina quando ela se encontra na foz da Avenida que deságua na Contorno e seu olhar gira em busca de apoio, e nenhum conhecido está ali na faixa de pedestre, e nenhuma face amiga está ali na casa de vinhos, e nenhuma mão se estende quando ela atravessa ao sinal vermelho, nenhum carinho a espera do outro lado da rua. Ela que frequentava tanto aquela babilônia noturna de cores piscantes e anúncios em hipnoses coletivas de “beba isso” e “compre aqui”, ela que já devia estar acostumada!, não pode evitar arrepios de terror, pois ela sabe intimamente que pode se comprar muitas coisas, mas nunca se poderá comprar um amigo.
Percebe-se na praça da Savassi, onde se reúnem os desgarrados da noite, vultos noturnos que flutuam nas ruas sob as luzes difusas, com pupilas cansadas cheias de luzes artificiais e sonhos sem futuro, entregues, com suas almas juvenis já maculadas, aos desvarios dos gestos inúteis e das palavras vazias, lugar muito frequentado pelos amigos do Stevam Lucena.

Mas, da última vez, não encontrou o Stevam, naquele universo paralelo junto ao borbulhar do transito, e sim o Víctor todo soturno, reclamando atenção, do tipo “ninguém se importa, não é?” e ela se sentou junto dele, mesmo querendo ir embora e gente saindo, saindo do serviço, gente saindo para a noite, gente indo para as compras, outros para as labutas noturnas, alunos fugindo às aulas, garotas oferecendo seus corpos, e um som, de um carro de portas abertas, flutuava até a Praça e era uma banda irlandesa, voz feminina envolvente, com certa estridência e certa tristeza, narrando idílios, dramas e fracassos, à la Joni Mitchell, com narrativas de tom Lou Reed, “Percebe o que ela diz? Nada a ver com o que vivemos , não é?”, ela diz, mas Víctor desconhece o idioma britânico e está mais preocupado com o solo de guitarra, daquelas baladas hard rock dos anos 80, dos programas românticos-saudosistas nas madrugadas, “É como se começássemos a recitar poesia árcade meio ao trânsito enfurecido, ou lêssemos as baladas de Ossian na avenida central, ou declamássemos estâncias de Shelley meio a estridência de buzinas”, ela ainda insiste, quer ser compreendida, mas Víctor saberia algo de Ossian ou Shelley?, certamente o Henrique, mas o Víctor?!, e a voz triste canta seus fracassos e frustrações, e jovens aqui nos trópicos ouvem e não compreendem meio a aspereza urbana, longe das campinas irlandesas, longe das sagas célticas, desconhecendo quem tenha sido Yeats, longe de paisagens de filmes épicos, lugares onde jamais ela pisará, mas onde uma jovem lamenta o sangue derramado de seus ancestrais.

Mas agora nem Víctor nem Stevam nem qualquer vulto conhecido ali está, e Sônia Regina continua a se refugiar em lembranças, ainda a se indagar seriamente: por que saíra de casa? Para andar e andar e não encontrar? Sentada sob o brilho néon das noites urbanas, estou aqui, a observar o menino com o skate, o menino com vestes funéreas, a menina com olhos egípcios, e a pensar que o mundo é mesmo ridículo, não “mau” como eu pensava, entregue ao Demo e seus asseclas, pois isso mamãe dizia, eu sofria, como ser feliz se o mundo é só crueldade?, mas meu ódio matou o Cristo em mim, aceitaria o mundo mau, tornaria-me “um-com-o-mundo” para ver se assim eu me sentia em casa, assim aliando-me com o Mal estaria aliada ao mundo, teria então prazer em viver aqui, mas nada disso aconteceu, tudo quimera, isso de “mau”, “bom”, tudo fantasia, é cada um por si, não há potestades, exceto os banqueiros e os que “algarismam os amanhãs” como diz o Henrique, folheando antologias do modernista paulista, e o mundo é uma selva tanto para os hedonistas quanto para os cristãos, tanto para os satanistas quanto para os ateus!

O Henrique ainda que ressentido mas com razão pois o pai não sai do pé do cara que “todos aqueles que despertam, com um mínimo de consciência, sofrem aqui; só aqueles adormecidos no mundo, e que nunca acordam, vivem em conformidade, tal o diretor naquele filme do Truman, “Aceitamos como natural o mundo onde vivemos”, e quem era Truman? Nada mais que um homem com vocação para navegador, mas preso, sem saber, numa redoma de vidro, vigiado por câmeras de TV, mas se Truman fosse um cara acomodado, feliz com o que lhe dessem, jamais descobriria a farsa toda.

“Não é que me percebo dizendo o mesmo que Neo para Morpheus, 'Não gosto de pensar que não tenho controle sobre a minha vida', e a pensar se há algum destino, e se misericordioso...”, ela dizia ao pensativo Henrique, ocupado em acariciar os gatos, quando comentou o filme “Matrix”, coisa gótica e industrial, terror tecnológico, que ela assistira recentemente, ou outro filme qualquer, “Será que estamos representando uma peça qualquer para alguém? Para os deuses talvez! Ou pra os anjos? Eu vi um filme, um tempo atrás, um anjo rebelde (o próprio Gabriel??), lá no alto de um prédio, a observar lá embaixo, num beco-sem-saída, um jovem casal, a menina ao volante do carro, e o cara ao lado, prontos para se matarem, e o anjo contemplando o jovem casal de suicidas, será que os anjos se prestam a isso? Não têm mais o que fazer? Seríamos atores ridículos num palco ainda mais ridículo? Olha, pode a coisa toda ser um filme, ou atuamos num sonho na mente divina, mas não! Acho que Deus já se esqueceu de nós..”

O morcego, em círculos, voeja em torno da árvore. Os galhos filtram um luar despedaçado – lu a em estilhaços. E cada um com sua diversão. As meninas de mãos dadas. A ruiva, gorda, com a mochila, e gestos de homem. A moreninha pequena de tênis de cano longo. De coturnos pesados me lembra a Poliana. Com suas roupas de velório, e discman no bolso do vestido da era vitoriana, diga-se, com as bandas mais moderninhas, sem sequer suspeitar que um dia existiu um Joy Division ou um Sister of Mercy, nessas coreografias de casais apaixonados, por que nos apaixonamos?, a Carol nos braços do Oto, e a Poliana, o que tem a Poliana?, nem conheceu o Oto, lá no mundo dela. Shows nas noitadas e bandas obscuras, que só ela conhecia. Quando a banda fica famosa – ela renega. Nisso até me faz lembrar o Oto. No mundo lá dele. Quer ser o único, o diferente, o Eleito. Com seu sobretudo e cabelos rubros – um corvo em chamas. Hilárico. Ele se julga sombrio, mas não passa de uma peça cômica. Onde o limite entre o trágico e o cômico? O drama e o dramalhão? O sacro e o profano?

O que sobrou para eles? Ídolos de videoclipes, músicos com poses de vampiros, frankensteins com moda pop, e pareço o Henrique, que está distante séculos disso tudo, com a amargura lá dele, outro que não entendo – mas quem entende alguém? Todo mundo numa luta, num confronto só. Com suas crenças, o bem e o mal, e para haver uma luta tem de ter o bem e o mal? E o Oto é culpado? Ele que já sofreu o inferno lá dele! Perdeu o pai, precisou suportar o padrasto, conheço bem de perto o inferno!, de levar lá uns tapas – tapas?, o padrasto não quebrou um cabo de vassoura nas costas dele?!, e depois o padrasto deixou a mãe, não é?, acho que o Oto atirou o carrasco contra a porta da cozinha, a cabeça contra o vidro, e sangue e estilhaço pra todo lado, porque o padrasto chegou bêbado e pesou a mão na cara do Oto, que não represou mais o ódio lá dele e “cara, não encosta a mão em mim não!” e desceu a pancada! E assim o Oto, que culpa ele tem? Ele é mau? Ele que me bateu! Eu até perdoei. Não o tapa, isso não! Mas a condição dele, do Oto. Afinal, o que ele sofria! O que fazia? Retribuía a agressão! Em mim, que nem culpa tenho dos lances na casa dele! Oto que não sabe ser gentil, nunca se esforça por compreender – viveu a vida num inferno.

Ah, e a outra garota, junto a garota que lembra a Poliana, assim tão íntimas, a outra garota, de pernas abertas igual homem, e se abraçam, velhas amigas?, quase cúmplices, e sei que logo se beijam. Garotas que se gostam. Não suportam os caras – e se beijam. Num abraço, juntas, em carícias leves – longe da brutalidade dos homens! Sem aquela pressa dos caras, com as mãos nos peitos da gente – e elas se beijam. A Carol num jeito assim – do jeito da que beija mais. Por que a Carol? Ah, daquela vez! Quase a gente nuns amassos! Faltava ela rasgar a minha calcinha com os dentes! Quase! E se eu deixasse? Como será transar com uma mulher? Namorar uma mulher – mansamente. Os lábios e as mãos dela entre as minhas pernas... Ah, essa praça cheia de putaria! E nem um carinha aqui pra mim! Só esses meninos de quatorze, quinze, matando aula. Até meninas juntas e eu sozinha! Ah, elas apertam os peitos, alisam as barrigas, a que tem jeito da Poliana senta-se no colo da outra, a com o jeito da Carol, e são abrigo uma para a outra. A ruiva com jeito de homem, mas com voz derramada de mulher, em exigências, quer ser o que não é.

Cada um com sua diversão. Aos beijos. Em quedas. Os skates em disputa de manobras suicidas de braços quebrados narizes em sangue pele esfolada e os ciclistas caindo de suas duas rodas sem controle nos pneus contra o asfalto no obstáculo do meio-fio em quedas. A ruiva, gorda, com gestos de homem. A moreninha, submissa. Os assobios. E dois mocinhas trocam olhares, e logo carícias, com suas calças jeans justinhas. Cada um se diverte como pode.

E um rapaz lê um livro na praça, se deixando sepultar por folhas em queda, e outro rapaz rabisca versos, escreve poemas, e os meninos com suas bicicletas, seus potros enfurecidos de duas rodas, assim cavaleiros com seus corcéis sem bridas, com patas de borracha, de corpo metálico, quem será o mais ousado, contra os outros – e contra si mesmo! Um rasga a bermuda no cimento, o outro golpeia o braço contra um galho, ainda um outro vai quebrar o nariz num poste. Amam o perigo, a queda possível – e uma possível fratura. Tudo é adrenalina. Nada mais.

Outro acaba de cair. A menina ri nos braços da outra. Os meninos trocam beijos, se sentem observados. Temem o que? Que alguém atire pedras? Acabam por se afastar. E que tal uma troca de casais? A menina-mais-menino com o menino-mais-menina! Que química! Cada um com sua diversão. Por que sexo precisa ser feito à dois? Deixar o corpo se divertir! Seduzir, usar o outro... somos objetos? Deixar o corpo por conta própria? E a alma? A alma vai para onde?

(fim do Capítulo IV)
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LdeM
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