quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Início do cap. VI de INSÔNIA DAS ALMAS





Insônia das Almas

Capítulo VI

A chave gira na porta e um grito lembra que mamãe Clara Selma está é toda alerta, e descendo os degraus, com um roupão daqueles fora-de-moda, mas é um presente da vovó e não importa se vai completar uma década de uso, visto que Clara Selma não pôde jamais digerir a perda da mãe, a quem ela se julgou sempre muito dedicada, e por isso ficar assim acusando a sua filha Sônia Regina de ser uma “filha ingrata” e outras considerações nada elogiosas, com uma mágoa acariciada por ter sido abandonada por seu marido Marcos Dalmas, sem nunca reconhecer o quanto tem sido possessiva e dominadora.
- Minha filha! Você não sabe dos perigos que corre chegando da rua uma hora dessas! É quase meia-noite! E com esse monte de depravado neste mundo de merda!
Ela, a mamãe Clara Selma, diz, enquanto desce a escada, com seu roupão que vovó presenteou, e Sônia Regina, com seus dez anos, acariciava o roupão e puxava uns fiozinhos que se destacavam, um roupão numa cor indecisa entre o bege e o laranja, sabe-se lá!, e ela desce, os passos ecoam degrau a degrau, parede a parede, e de cabelos soltos, ela toda gestos, está cada vez pior, e nunca perdoou a filha por seu abandono do lar, quando, uma ano antes, Sônia morara três meses com a amiga Raíssa.
- Minha filha! Você não me ouve! Depois eu sou a mãe chata e que não sai do seu pé, mas estas mulheres atacadas por aí, depois acham os corpos das coitadas no meio do mato, meu Deus!, como há gente cruel neste mundo!, os corpos daquelas coitadas, todos cobertos de sangue, com roupas rasgadas, com marcas de violências horríveis, os Céus me defendam!, os homens são uns brutos! Uns covardes!
E quase começa a chorar, a praguejar, ela, a mamãe Clara Selma, que apanhava do marido, o novo marido, o respeitado senhor César Souza, empresário do ramo de tecidos, estamparias, peças têxteis, ela agora toda angustiada porque a filha chegara do colégio, almoçou calada, e saiu depois, e nem disse um “até logo!”, e muito menos o seu destino e propósito, “Meu deus, uma filha ingrata que nem diz para a pobre mãe aonde pretende ir! Será que eu mereço isso?”
Sônia Regina guardou a chave no bolso da calça jeans e encarou a mãe, “Estou cansada, muito cansada. Será que eu posso me deitar?”, e a mãe olhava, indignada, “Mas o que é isso? Você tem que me ouvir, Sônia! Ah, quando eu tinha dezoito anos, e olhe que você logo vai fazer dezenove!, eu dizia tudo à minha mãe, que Deus a tenha!, e não ficava pelos cantos, com cara de quem chegou de um velório, ó, como sou coitada, como eu sofro!”, e Sônia, ainda em pé, diante da mãe, repetiu, “Mãe, dá um tempo! Estou cansada! Quero dormir, tá bom?”
E Sônia passou pela cozinha e encontrou uma luzente maçã no escuro e subiu a escada, mastigando voraz, rumo ao seu quarto. Sei que ela quer me assustar, e ela sempre faz isso, e ela consegue!, pior ainda, e aquele cara me olhando na Biblioteca da Praça, eu fico lembrando do “O Colecionador”, do Fowles, e a coitada da Miranda, lá , prisioneira daquele demente, o cara pensa que é dono da mulher, os homens pensam que são donos das mulheres, e pagam uma mulher, uma mulher sem outro recurso que não abrir as pernas, e eles se aproveitam e fazem as coisas mais bizarras!, e o cara estava me seguindo?, porque eu acho que já vi o sujeito antes, e a pobre Miranda, prisioneira de um colecionador obcecado, o cara, e ela igual a uma borboleta, e eu não estou com “síndrome de perseguição”, NÃO ESTOU COM PÔRRA DE SÍNDROME NENHUMA, o cara estava apenas procurando a estante de Literatura, e eu também, e assim quase de cara um com o outro, e ele se assustou e por isso me encarou daquele jeito, não é nenhum depravado, como mamãe diz, ela toda apavorada com homens, que amanheceu com uma marca vermelha, em forma de dedo, na base da orelha esquerda, e eu nem insinuei, nem pensei que ela tivesse levado um bofetão cara afora, que o senhor César, o respeitado e tal, mas eu preciso parar com essa paranóia de achar que estou sendo seguida e vigiada, por alguém louco por mim, querendo me sequestrar, ai, que ridículo, Soninha, e ai, deixe eu tirar este coturno, a meia maldita, já desfiando, ai, descasquei a unha, vou passar um rosa discreto da próxima, mas para quem vou mostrar estas unhas de preto luzente?, e minha toalha caiu atrás da cama – de novo!, mas será que o cara estava me seguindo?

(arrepios)

Ai, mas será que gostamos de ser pisadas?, pois o cara fica no pé, eu desprezo, mais ou menos assim, o Stevam, todo na minha mão, mas o desgraçado do Oto acha que faz um favor só em olhar pra mim!, e quanto mais o filho-da-mãe me pisa, mais eu fico arrepiada se eu encontro o tipo na rua, num bar, bebendo e enfiando a mão sob a saia da Carol, e ela sorrindo, e a mão se demorando lá embaixo, a puta sorrindo, com aquela mão maldita alisando a xana dela, aquela puta, mas sorrindo, em êxtase divino, angélico, arrebatada em glória!, malditas meias que desfiam, e vou comprar daquelas vermelhas de cabaré, só pra escandalizar, believe it or no!, e o Stevam vai cair aos meus pés e beijar minhas pernas, talvez assim ele consiga, porque daquela vez, que negação!, mas minha toalha caiu atrás da cama, de novo!, e sujei a calcinha de novo!, esse sangue vazando, vou vazando, parece que vou sangrar todinha, e a pôrra do absorvente não absorve!, ora!, e preciso parar para lavar a mancha na calcinha, não!, jogo fora no lixo!, não vou ficar lavando isso, e também não vai sair, e que cólicas malditas aquelas no cemitério, não conseguia nem ler direito e se aparecesse alguém ia querer saber o motivo das caretas, onde está a toalha verde?, na segunda gaveta? Foi onde eu guardei o livro dois de “As Brumas de Avalon”, com a pobre Morgause e a forte Viviane, sua irmã, e tem também a fada Morgana, que mulheres eram aquelas!, não essas submissas, todas cadelas, ou essas estressadas, uns “cão-de-guarda”, do tipo da Raíssa, que vivia falando que teria mais tempo para o noivo, para as amigas, mas trabalha o dobro de antes e ganha só um pouco mais, “Cadê o tempo livre? A hora do lazer?”, ela vive em ironias, “Com tanto barzinho, shows, diversão à beça, um milhão de lugares e festas e eu fazendo hora extra, trabalhando até 14 horas por dia, imagine só!”, e é mesmo, tudo doido!, é estresse para uns, é desemprego para outros, e eu preciso de um emprego, e a Raíssa aí, sob a “ditadura do relógio”, não pode nem gozar direito, de olhos nas horas, e são quase meia-noite, será que eu ligo pro Stevam?, mas ele deve estar no RPG , com aquele louco do Elias, e uma hora dessas!, com velas acesas e fantasiados de vampiros, uns ridículos!, Raíssa é quem tem razão, “eu perco meu valioso tempo” com esses caras, o Morrissey é quem tem razão, e se eu fico aqui dentro, olhando as paredes, é o puro tédio, aí eu saio é pra passar raiva, e encontrar ninguém, só desprezo, então sair pra quê? Pra sentir ódio? Maldito sabonete! Precisava cair?, também vou tomar a ducha mais quente, isso aqui vai virar uma sauna!

A gente sai e a única pessoa, com quem conversa na noite, nada significa pra mim e nem sei o nome dele, será Filipe?, e quem era aquele rapaz lendo aquele romance alemão?, e quem aquela jovem no ônibus? E aquele casal que se beijava diante do Maletta? E aquele casal que tocava no barzinho?, e eu toda por aí, a me perguntar “A quem eu vou entregar tudo o que sou?”, e volto pra casa e nada mudou, a mesma mãe, o mesmo quarto, a mesma toalha caída atrás da cama, e minha meia-irmã dorme, e meu meio-irmão dorme, e eu preferiria o outro sabonete, mas já acabaram com ele, é que caiu água, aí derrete todo, é um saco!, e amanhã mais exercícios de química, que eu sei que mamãe vai ficar de olho em mim, e ai de mim se ligar a pôrra da TV!, ai, que vontade de chorar!, mas ...

Mas eu vou ficar bem quieta, assim, a água quente faz arder os olhos, entra nos ouvidos, quente, e escorre, ai, entre as minhas pernas, e quanto sangue, ai estou vazando!, mas é quente, e nunca transei debaixo do chuveiro, será que é bom?, o cara ensaboando o meu corpo, o meu peito, a mão massageando minhas coxas, minhas pernas, o dedo deslizando na minha racha, entrando de leve, e eu suspirando, mas agora está áspera, muito sangue, ai, detesto isso!, e será que esse cara, debaixo do chuveiro, é o Oto ou o Stevam, ai, será o Oto, sim, o Stevam é muito sério, sei lá, ia ficar pensando que eu sou depravada, enquanto o Oto entrou em mim e eu apoiada numa árvore do quintal da casa dele e ele dentro de mim, e folhas caíam, e ele levantou o meu vestido e desceu a calcinha e entrou e nem ligava, só abriu o zíper, e dentro de mim, mas vai o Stevam fazer isso!, há há!, e eu nem contei isso pra Raíssa, imagine se eu ia contar!, ela com papo de feminista e que mulher não pode ser humilhada!, mas ele queria, me encostou na árvore, me amassou toda, e eu queria, e ele entrou, nem ligava, em pleno quintal!, e isso de feminismo é a mulher ser inimiga do homem?, aí eu estou fora!, desde quando eu fico escandalizada com uma cantada?, o que não suporto é aquele olhar de safadezas, o cara pensando que a gente faz o que ele viu no filme pornô, onde viram a mulher de cabeça pra baixo, e abrem a racha dela e entram sem dó nem piedade ou invadem o traseiro da coitada!, que faz tudo isso porque o cachê, a grana, é irresistível!, e deixam os caras cuspirem nas rachas delas, pois entram rasgando, e elas nem molhadas ficam, as mulheres e suas xanas secas e haja lubrificante e eu não faria isso nunca!

Ah, se fazer sexo não fosse tão grotesco! Podia a gente tocar no corpo do outro e sair uma luz! Ou um gozo de corpos fundidos numa névoa prateada! Sei lá! Ah, que viagem! Ah, Soninha! Mas não é? E se a gente fantasia é porque quer coisa diferente, do jeito que é não satisfaz, humilha um, deixa o outro neurado! O lance não satisfaz então a gente fantasia mesmo – é uma forma de fuga!
A ducha mais quente do Hemisfério Sul!, e abaixo da linha do Equador, que corta a América do Sul, a África, a Oceânia, a Indonésia, e que mais?, e acho que estou estudando demais!, e a Raíssa quer que eu apareça na festa da irmã dela, a Paola, no domingo, e quem disse que mamãe vai deixar?, e eu digo, “A vida sem festas é um longo caminho sem pousadas”, e a Raíssa quer saber onde eu vi isso, e eu digo que se trata de um grego louco, e Paola vai fazer quinze anos! Nossa! E a minha festa de quinze anos, e o beijo do Hector, e aquela fuga, ah, meu deus!, que fuga o quê!, e o corpo branquelo da Helena, e muito bonito, e eu beliscando os peitinhos dela, ela toda arrepiada, e nem tinha cabelos lá embaixo, com aquela racha toda exposta, e quando o sabão escorria, ficava inchada, estufada até, uma racha linda a dela, mas por que lembro dessas coisas?, ah, Soninha, você está muito safada hoje! Não, não! É que estou no fundo do poço, e lembro de sacanagem só pra ver se me alegro um pouco, mas confesso que nem isso, viu?, e mais louca que a Helena, só a Carol, a vadia!

Por que se lembrar da Carol? Por que – se ela era aquela pedra no seu sapato?! Não foi a Carol quem acabou morando com o Oto? Que jogou e tramou até conseguir? As meninas de mãos dadas! Na praça! Uma ruiva e gorda. Uma morena e magrinha. A ruiva em exigências. Lembro agora. Aí pensei na Carol. Nunca liguei para a Carol, verdade! Ela queria ver a cor da minha calcinha? Acho que foi na festa dos “metal”, no casarão da Contorno. No banheiro. Disse que eu devia retocar o batom, juntinho assim de mim. Um cheiro forte de mulher. Os dedos na minha boca, Queria que eu mordesse? Quase mordi. E ajeitei a saia – ela viu a calcinha - “Que cor?”, e deslizou o dedo entre o elástico e a minha pele – em arrepios! Ela percebia? Riu lá com ela. Eu, presa fácil. Desconheço. Queria deslizar a mão toda – o peito arfando – mão na minha bunda! A Carol! Como eu saí dessa? Não fiz gesto brusco. Aceitei – até gostei. Como será beijar uma mulher? Namorar outra menina? Ah, aquela cena da orgia no castelo, do filme com a Nicole, onde as mulheres se beijam e se esfregam, num ritual, coisa assim, num sonho de luxúrias!

E a Carol com a mão na minha, a chupar no meio das minhas pernas! Mais carinhosa que homem – sabe onde tocar, como fazer. Sem pressa. Devagar. Sem aquela pressa de homem, logo dentro, com fúria e pressão, e a gente nem pronta, eles passam cuspe, os nojentos! Não, mulher é mais manhosa – de enfiar a língua lá dentro! Ah, a cara da Carol no espelho – que máscara! Juro por minha alma! Ela queira era me humilhar! Eu precisava reagir – foi por isso aquele beliscar nos peitos dela, as pontinhas estufadas no corpete. Foi só um apertão, e ela gostou. Os peitos logo de fora. Carol tem belas mamas – que o Oto deve chupar toda noite. De boa! Chupar e chupar, lamber e morder. O bebezão! E a Carol sentada no colo do Oto, a bunda grande no pau do Oto! Ah, e eu aqui sozinha! Nem um vírus me quer – de olhar de homem: aquele cara na Biblioteca – me seguindo? O guitarrista da banda – me comendo com os olhos? Esses safados! Deviam se aliviar com as, ah, pobres, pobres mulheres vultos noturnos de pernas abertas! Não, não desejo isso pra ninguém! Nem pra inimigo! E eu tenho inimigo? Ia quase a dizer “Carol”, mas ela é minha inimiga? Desconsidera. É irmã. É vítima. Sofremos igual – eu na ausência de um corpo, e ela sob o peso de um corpo. Mas e as putas? De pernas abertas, dando o de dentro delas, para quem pagar a conta, a hora do programa? Nem do corpo são donas? Ou ao contrário: nada têm além do corpo? Um corpo: única fonte de renda. Ah, tenho é dó! E eu mandar os carinhas para um bordel, a zona da Guaicurus, ah, de dar nojo, elas são vítimas, de todos e de si mesmas, alugam os corpos com promessas de prazeres, a quem enganam mais?

E vamos à toalha verde, que nem é tão felpuda quanto a rosa, agora toda empoeirada, de novo!, e festas e festas, como passar sem as festas, mas o Stevam é a pior companhia numa festa, gente, que deprê, o cara!, e o Henrique então!, nem vou comentar!, e foi quando comecei a sair com o Stevam, nem tinha aparecido na casa dele, pois quando eu fui a gente subiu ao telhado, e depois a mãe dele,a dona Nádia, me atendeu, e depois, o quê?, ora! depois foi aquele vacilo na biblioteca, não?, mas na festa, que era o máximo, porque ele estava na rede comigo, na varanda e me beijava, e a gente tinha saído de um ensaio, e o Oto 'tava fora, e o Erik apareceu e também o Henrique, que chegara com o Erik, e depois chegou o Víctor, e claro que todo grogue, quase caindo, e anoiteceu e desceu todo mundo pra casa do Toni, porque o estúdio era alugado, a família do Víctor não suportava mais, e ele saiu de casa, e o Oto nem queria saber, e descemos todos, pros lados da ferrovia e o Toni mora ali na Niquelina e era noite escura, nada de lua, só escuridão, e eu de mãos dadas com o Stevam e depois o Henrique em conversa com o Erik, e depois o Víctor e o Toni, e uma garota que o Toni encontrou, uma amiga, ele dizia, sei lá, ela é até bonita, e o Víctor blasfemando contra as igrejas, e o Erik com suas imprecações, e o Henrique, na dele, e o Víctor dizendo que os góticos são inertes quanto a “protestarem contra os cristãos de merda” e o Henrique, num tom de voz monótono e frio, gravado no mármore, dizia, “Os góticos são materialistas”, e eu não entendi, por que?, e fiquei irritada e não me segurei: joguei um olhar hostil, e ele, se percebeu, não sei, ficou indiferente, e eu pensando, Será assim, materialistas, capitalistas, consumistas?

Passamos as trevas da ferrovia e seguimos rumo a Niquelina, e agora o Henrique e o Erik à nossa frente, e depois o Víctor e o casalzinho Toni e Alice, lembrei o nome dela!, e chegamos ao casarão do Toni e logo ele arrumou vinho e ligou o som, e fiquei na rede, abraçada ao Stevam, e circulava vodka e um 'baseado' e o Víctor voltou com mais cachaça e chegou dois amigos do Toni, todos com poses de brutais, e o Henrique ficou à entrada, conversando com um deles, enquanto o outro aproximou-se do Erik, e a rede balançava, e eu abraçava o Stevam e olhava o Henrique, que se aproxima da luz da varanda e começa a escrever num caderno, o Stevam diz que é letra de música que estavam ensaiando, e o Henrique vai rabiscando o esboço de letra, e entrega o caderno, e o Stevam comenta e elogia, e eu quero ver também, estava assim, lembro até hoje, “Vertendo lágrimas de sangue / Sugando o soro – o fluido vital / Na boca um gosto amargo / até o vórtice das entranhas / Uma tendência ao abismo / engolfado nas trevas” e observei o Henrique, o autor de tão densas, sombrias, depressivas linhas, ele que não fuma, não bebe, ou raramente bebe, e só bebe vinho, que eu saiba, não se agita, sempre alheio, mas é só a casca, ele é o mais sensível ali, acima de todos, e eu e o Stevam, abraçados na rede, lendo a sua poesia macabra, e o Víctor caindo de bêbado junto ao som, e Alice bebendo, comentando, de olho no Henrique, “Ele solta um palavrão, uma ofensa mesmo, mas com a mesma entonação de uma citação em latim!”, e logo o Toni e um amigo, o que conversava com o Henrique sobre justamente letras de músicas, entre um copo e outro de 'batida', e o Henrique alheio, exceto um momento, quando Toni ou Erik, sei lá, ironizam uma música nova de uma banda, não sei mais qual, e o Henrique defnde os músicos, e o compositor tem o direito de fazer o que quiser, e que se não gostam, que mudem de disco. E o Víctor ironiza, “Liga não, ele é assim mesmo! Sempre do contra!”, e o Toni parou, olhou bem nos olhos do Henrique, e disse “É que é um cara sério, logo vi! É que hoje eu já 'tô bêbado, mas um dia, nós vamos conversar numa boa”, e o Henrique foi gentil, e não sei se algum dia, ou noite, eles conversaram, afinal.

Henrique que fez de tudo para salvar a banda, porque o Víctor, agora só bem mesmo, não podia fazer é mais nada, e o Oto não leva, nem nunca levou, o Víctor à sério, e na verdade que diálogo é possível entre o arrogante e o zombador?, e assim só mesmo o Henrique para mediar, ousar uma ponte, e eu ouvi, atrás da porta, o Henrique, todo calma, “Você vacilou com o Víctor. O cara oferecia um local, e você só despreza, com essa sua rispidez”, e o Oto, todo cínico, “Ó, eu magoei os sentimentos dele!”, “Não seja irônico. Não é isso. Foi agressivo. O cara ficou ofendido. Poderia ser mais delicado...”, “Quer que agora eu comece a distribuir gentilezas? E é você quem vai me ensinar regras de etiqueta?”,Custa assumir a grosseria? Basta propor outro negócio. Não precisa ofender.”, mas o Oto não quis conversa e a banda acabou, e o Stevam arrastou o Erik, e o Oto ficou sozinho, e o Henrique ainda veio visitar o Oto, mas só encontrou a mim e ficamos conversando, a esperar, e o que eu poderia esperar, a banda era um sonho, e “the dream is over”! O sonho já era!

E onde deixei os cotonetes?, acho que esta aqui é mais macia, ou aquela azul?, acho que vou ficar nua, cadê o meu celular?, quase meia-noite, acaba-se o vinte e quatro de setembro, esta noite de lua mórbida e ventos gementes, “Alô, desculpe, dona Nádia, desculpe, Nádia, mas o Stevam está? Não? Saiu com o Elias? Ah, sei... Pro RPG... Sei... Ele não levou o celular... Tá bom então... Obrigada, viu? Tchau!”, e estou aqui deitada e nua e de calcinha bege e ninguém em casa, “nobody home”, na casa de quem eu ligo, porque aqui está todo mundo e ressonando, zzzzzzzzz, ou se amando, loveluvlove, se o senhor César estiver em cima e dentro da senhora Clara Selma, ai, que gosto ela tem, hein!, eu que nunca deiei ele chegar perto de mim!, e o meu pai é muito mais bonito, não é?, mas fazer o quê?, meu pai não suportou, e eu é que vou suportar?, a mãe do Stevam é que é um amor de mãe, nem gosta que a gente seja formal, e diga “dona Nádia”, “Dona, o quê, menina!”, e eu lia os livros do seu marido, o jornalista, deixados sobre a mesinha da sala, enquanto o Stevam não chegava, e ele não chegou, e ficou tarde, e fui embora, mas eu lia, folheava, diante dela, e ela corrigindo umas provas, e descobri que ela é professora de francês, e ela anotava, copiava, reescrevia, folheava um imenso dicionário Larousse, e ainda conversava comigo, em comentários sobre os gatos, igual a mãe da Helena e do heleno, a tanto tempo atrás!, a Joana, toda simpática, mas a comentar sobre os cachorrinhos no quintal, e heleno preparava misto-quente e falavam que o Hector era o menino mais “certinho” que conheciam e ele fazia uma dessas, “fugir assim”, mas eu disse que eu é que queria fugir de casa, e tal, mas com a Nádia, eu não falava do Stevam, mas dos gatos que pulavam no sofá, ou derrubavam os anjinhos na mesinha, e era estranho imaginar o passado hippie daquela senhora ali, ainda que se vestisse com vestidos longos, e ainda queimasse um incenso, saudosa dos tempos esotéricos, quando nos anos 60, em passeatas de estudantes, conheceu o socialista Olavo Lucena, do Partidão, e passaram uma noitada na antiga FAFICH, com muita viola e 'baseado', e Nádia é dessas que conversam francamente, nada dessas mães reprimidas que ficam despejando amargura vida afora, e fiquei imaginando isso, a mística, a roupa cigana, naturalismo wicca, e Stevam dizia que ela fazia horóscopo e jogava tarot, rodeada de anjos e duendes, em meditações, em mantras indianos, tudo isso ao lado de um jornalista, socialista, ateu convicto, materialista!

E logo o pai do Stevam chegou, sério, todo evasivo, e foi para o escritório, aliás, a biblioteca, que eu só conheceria, e como!, na próxima visita, e notei nos olhos da Nádia uma frustração, uma dor íntima com a amargura do marido, que quando ela o conheceu, o Olavo, era muito gentil, muito animado, queria mudar o mundo, fazer a “revolução”, até mexeu com política, nos anos 80, ao lado dos Trabalhistas, e aí nada mudou, veio a amargura, e o Stevam assistia brigas ridículas e se uniu à uns rapazes estranhos, todos sombrios, gente sem calor humano, mesmo meio místico, o Stevam, ela achava, e é o Alfonso quem ficou racional igual ao pai, e quer trabalhar na área de comunicação, fazer jornalismo, e literatura, “E espero que ele não acabe frustrado igual ao Olavo”, e Nádia voltava aos textos, e o Stevam não chegava e os gatos não paravam, e derramavam o pires com leite ou destruíam uma estopa velha e o Sr. Olavo foi à cozinha requentar um café e nem trocou uma palavrinha com a esposa, e eu fiquei sem jeito, e fui embora.

Perdi o sono, só pode ser!, lá encima o teto todo branco, uma escuridão me agasalhando, está quente e estou nua e não fecho os olhos! Talvez um som relaxante, mas com volume bem baixo, senão a casa cai!, e cadê o botão, ah, este abajur é uma droga mesmo!, cadê o meu CD do Theatre Of Tragedy, o “Velvet Darkness”? Inclusive um presente do Stevam!, tem dois meses que eu ganhei e já está arranhado de tanto eu ouvir, e estes violinos são lindos, e a voz dela é encantadora, e a voz dele é um horror! Nesse escuro a beleza tão áspera e golpeante! Como é que eu consigo ouvir isso?, mas tudo me invade, ou eu deixo me invadir e o que eu posso fazer?, e claro que vou me lembrar da outra visita ao Stevam, pois quando cheguei ele ouvia o álbum, este!, que eu conhecia, pois a Carol ouvia sempre, e ela até queria fazer o vocal feminino na banda, mas eu sei inglês, e ela não sabe, e aí pronto!, sem olhares de ódio, ou algo assim, sempre numa boa, o que não significa que ela seja minha amiga, e o Stevam me mostrou o CD e o encarte, e “Quer de presente?” e não recusei, afinal é um presente e o irmão dele chegou, bateu na porta, colocou a cabeça pra dentro do quarto, “Ei, Steve, o-quê-cê-tá-fazendo?”, ele, o Alfonso, é dois anos mais moço e é um poço de ironia, ainda que seríssimo, no geral, ótimo estudante, segundo dizia o Stevam, que o respeitava, pois o mais moço era o mais decidido, mais engajado, “Vamos fazer e tal!”, e o Stevam fazia!, mas é na fineza da ironia do Alfonso é que está o seu charme, e o Stevam sabia, e nada tinha daqueles irmãos mais velhos que se julgam os sabidos, os experientes, os veteranos, era o oposto: é até possível o Alfonso dar “lição de moral” ao Stevam!, coisa que nunca presenciei, mas não duvido nada!, onde está o álbum do Anathema, o “Serenades” é o mais deprê, mas é sonífero para mim, com cantoras angelicais e guturais macabros das criptas dos pesadelos! E o Stevam também ouvia no mais altissonante som!, mas o Stevam a atraiu por seu olhar de “preciso-de-vossa-piedade” e não tinha nada da arrogância do Oto ou a frieza do Henrique, pois o Stevam nutria o sonho maluco de entender as mulheres!

Esse é o problema do Stevam: o de querer entender as mulheres! De ver o mundo a partir da perspectiva das mulheres, e por isso ele é tão fraco, e por isso ele falhou aquela noite, quando o irmão saiu, e não havia mais ninguém, pois o Sr. Olavo Lucena levara a esposa Nádia Cristina Lucena ao teatro, pois tratava-se de uma peça de Bertolt Brecht, e logo imperdível, e era noite de domingo e o silêncio, pois o CD do Theatre tinha rodado e o Stevam a convidou para conhecer a casa, e saímos da reclusão do claustro do quarto onde ele se exilava dentro da própria casa, igual eu fazia na minha, e o Stevam soltava aquela fumaça toda, e eu apontava o cigarro, “Stevam, você está morrendo!”, e ele se voltava, todo magro, todo inofensivo, “E quem não está?” e continuava o fumacê, e o quarto antes até parecia uma sauna, igual a que deixei no banheiro, tudo branco, um fog londrino!, e imaginei uma neblina, e, branco por branco, o que encontro?, uma cheiradinha, por que não?, só uma unha, ora, Soninha!, uma unha só, isso: uma linha fina, e o Stevam é que não dispensa, até tenho medo dele, e aquela mania de pentear a cabeleira e deixa ros fios arrebentados, ajuntados, em algum lugar, e o irmão podia gritar, “Não é que fui atender ao telefone e em cima do aparelho aquele monte de cabelo embaraçado!”

Ah, a frustração amorosa, em “Lovelorn Rhapsody”!, e naquela noite Stevam comentava o filme “O Corvo” (The Crow), onde Eric Draven presencia o estupro e a morte de sua namorada Dana Shelley e é jogado pela janela, de um sexto andar, e sua última sensação, os fragmentos de vidro cortando seu corpo, e no mundo numa superfície aquosa, e num tronco de árvore, uma ponte sobre o nada, ele reencontra Dana e um corvo, “um corvo pode trazer a alma de volta”, e Dana diz ao amado que volte afim de “endireitar as coisas”, e o Stevam vai falando, e mostraa a sala, e na estante a fita com uma cena do filme, um corvo de asas abertas, e então Eric Draven, na noite de Halloween, volta à terra, isso após um ano, e vai vingar-se, é um gótico, e tem uma banda, e anda de luto, todo maquilado, e suga as memórias das pessoas, e eu dizia que preferia “Ghost – o outro lado da vida”, por ser mais romântico, mas acho que ele ficou decepcionado, e ele lembrou que Eric, em momentos difíceis, é consolado pelo espírito de Dana, entrando em sintonia com o Além, e aí ele abriu a porta da bilbioteca e avançamos na atmosfera de ar seco cheirando à papel antiquíssimo.

Será que vou ouvir o álbum todo?, é tão triste, tão mórbido, só animo se experimentar mais do branco, que nem lembrava mais, e esse vocal feminino de “J'ai fait une promesse” é m sonho, antes do funeral de “They (will always) die”, e aí o Stevam abriu a porta da bilbioteca e aquele ar de papel velho, e havia uma pilha de discos, vinis mesmo – as bolachas! Que o pai dele nem ouvia mais, The Beatles, Rolling Stones, The Who, Greatful Dead, Joan Boaz, o clássico Bob Dylan, o nacional Mutantes, e outros, que nem me lembro e o Stevam gostava de alguns, tipo Velvet Underground ou Frank Zappa ou Nick Cave, e o Stevam lembrando um sonho, que ele estava atrás de uma parede, onde, através de um furo, ele observa uma jovem, muito charmosa, deliciando-com a leitura de um denso in-folio, e que ela, antes de sair do quarto, coloca o livro sobre o criado-mudo e ele pôde ler “Salomé – Oscar Wilde”, e eu não entendi, e ele apontou o livro na estante, “e foi assim que comecei a frequentar a biblioteca do meu pai, e descobri qe ele escreve, ou escrevia, olhe os originais, muitos poemas, é um literato, quem diria!” e todo orgulhoso mostrava uma pilha de folhas já amareladas, com poemas datadas de 1975, 1980, 1986, e coisas entulhada que, impressa, daria uns três livros, e o Stevam entendia a frustração do pai, que nunca passara de jornalista, quando abrigava dentro de si um poeta, “preciso mostrar tudo isso ao TH!”, o Stevam se empolgava e soltava nuvens de fumo, e eu contei um sonho, onde se via uma procissão de mortos, onde eu estava morta e saía a procura do meu corpo, e acordei toda arrepiada, e os olhos dele bem abertos, em silêncio, e estende um volume de poesia simbolista francesa, e eu vi na estante uma coleção, uns sete livros do autor MARCEL PROUST e era “Em Busca do Tempo Perdido”, e folheei o primeiro e eis o protagonista acordando, achei o máximo e por isso fui a Biblioteca Pública procurar o livro, pois não ousava pedir emprestado aquele ali, coisa sagrada, e só hoje terminei de ler a tumultuada e irônica paixão de Swann, e naquela noite, diante da mesa e a máquina de escrever e das pilhas de papéis, eu desejei o Stevam.

Ai, “no more war!”, seria tão fácil se não houvessem disputas e guerras, se pudéssemos nos entender, sem traumas e agressões! E o mundo seria menos estressado, e eu sei que desejei o Stevam, e não sei se foi o lugar, o silêncio, o romântico diálogo meio aos livros, as pilhas de narrativas e beijos em papel que nos envolvia, ali na segunda estante á direita, a “Anna Karenina”, de Tolstói, e acima da minha cabeça, “Madame Bovary”, de Flaubert, e do outro lado, também em cima, “Helena” e “Dom Casmurro” de Machado de Assis, e ainda havia um volume de “Eugenie Grandet”, de Balzac, e um volume de “O Idiota” de Dostoiévski, e outros, muitos outros, que o pai dele é fanático por literatura, nisso influenciou os filhos, que ambos vivem lendo, e eu sei que eu desejei o Stevam, e o Stevam desejava o mesmo e ele se inclinou sobre mim e me prensou contra a estante, e eu soltei um gemido, e esbocei uma resistência, coisa feminina e teatral...!

E o problema foi que ele não entendeu assim, ou ao contrário, tentou me entender, não queria de forma alguma me forçar, ou me constranger, e se preocupou tanto comigo, e me respeitou tanto, que falhou!, pois eu me esfreguei e o apertei e fiz ele se sentar na cadeira do pai e sentei em seu colo e beijei toda desesperada e ele não tão empolgado como eu esperava, pois ele parecia temeroso quanto da chegada do pai!, não sei o que aconteceu, mas ele não respondia, nem quando exibi os meus peitos palpitantes, e ele beijou e quase mordeu, e quase mordeu a minha língua, mas o pau não subia, só inchava e inchava, ms não se decidia e ele já estava tenso e eu tirei a minha blusa e ele lambeu os meus peitos e beijou o meu pescoço, mas eu queria mais ação e puxei a calça dele e abri o zíper e puxei pra fora e tal, mas não muito animado, diga-se, e apertava e tal, e o troço inchava mas não subia de todo e não entraria em mim e ficamos em mudo desespero e ele olhando a porta, temendo que esta se abrisse de súbito e não transamos e ele cabisbaixo me convidou para um lanche.

Lanchamos, constrangidos, e não voltei a visitar o Stevam e depois o Oto me agarrou, me jogando contra a árvore e foi uma viagem! E o Oto nem se importava, ele poderia transar em plena rua, sob um poste apagado, ou no mictório da rodoviária, enquanto o Stevam não se atrevia a transar dentro da própria casa, vazia, no escritório empoeirado do pai, o literato frustrado, e o que eu posso pensar de tudo isso?, que o Stevam me respeita, porque me ama, ainda que um fraco, um hesitante,e que o Oto nada sente por mim além de tesão e por isso ele transa comigo onde quer?, e nada tenho contra o Stevam, mas ele é que me evita, ele é que me encontra junto ao Oto e abaixa os olho, cheio de vergonha, mas eu nunca disse nada, nunca comentei, nunca acusei, fico na minha, não o procuro, e acho que se arrependeu, que me julga uma vagabunda qualquer, dessas que ficam por aí sentadas no colo dos caras nas portas de bar ou atacando os rapazinhos na reclusão solene de uma biblioteca.




continua...







LdeM



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