sexta-feira, 19 de novembro de 2010

fim do c. VI de Insônia das Almas



continua...
.
Onde deixei o robe escarlate?, aquele da Grande Besta do Apocalipse! Porque eu com meu robe escarlate, e só de calcinha, pareço a "Grande Meretriz do Apocalipse”, mas o que é isso?, é só eu puxar uma gaveta para cair um livro!, “Hamlet”, tinha de ser! E do Henrique!, e que eu já li e não devolvi até hoje!, e pobre da Ophelia! Morta nas águas, e o Hamlet com aquele blá-blá-blá, “words, words, words”, tenha paciência!, mas é Shakespeare, como diz o Henrique, que é fã do Bardo, que vivia lendo uns livros difíceis, igual aquele “Montanha Mágica”, que eu nem terminei de ler, o cara num sanatório, cheio de tuberculose, ai, que depressão!, e esse Anathema, com esse “Under a Veil (of a black lace)”! Que deprê! Acho que vou é ouvir este CD do Duran Duran, o presente da Raíssa, que me deu também aquele do Legião, “O Descobrimento do Brasil”, que eu ouvia sem parar, mas é a mesma coisa, fala muito de perda e morte, e já sei todas as letras na ponta da língua, ai, mas eu preciso devolver este “Hamlet” para o Henrique!, que vive me emprestando livros e às vezes nem devolvo, pô!, ele vai pensar o quê?, e ele deve ler muito tudo isso, por que fala e fala pra caramba, igual ao Hamlet, que fica dias caladão, mas quando começa a falar fica então horas falando, é uma enciclopédia em viva voz, igual aquelas aulas em CD-Rom, e vou trocar esse CD do Anathema, senão eu me atiro pela janela!, deixa rolar o Duran Duran, e esse pó na palma da mão, já que não tenho merecido outras carícias, outros prazeres, e o Henrique falando, ah, como ele falava, meu deus!
.
Eu estava na casa do Oto, esperando o cara, lendo, pensando, no meio daquele gatos, orgulhosos e estufados, e ouço um ruído no portão, uns rangidos, uns passos, seria o Oto, enfim?, mas fui surpreendida! Ali o Henrique, todo sombrio, imaginando que o Oto estava em casa, e aí nem se dera ao trabalho de chamar, “Não, ele não está”, eu respondo e, estranho, ele não parece decepcionado, e seu olhar é fixo e mergulha dentro da gente, “Posso entrar?”, ele pergunta, com um quase-sorriso gentil, e os gatos passeiam pela sala ou escapam para o quintal, quando atravessam a cozinha, e um gato preto salta no braço da poltrona, derruba um livro, e eu recoloco o livro na estante, e percebo que o Henrique acompanhou o movimento, e ele se senta e folheia o volume, “Espumas Flutuantes”, de Castro Alves, e ele lê um trecho por acaso, “Oh! Jardim solitário! Relíquia do passado! Minh'alma, como tu, é um parque arruinado!”, e sorri, “O que foi?”, eu pergunto, “Você aqui sozinha, entre versos e felinos”, e eu, toda sem jeito, ele diz, “Estudando para o vestibular?”, de surpresa assim, quase balbucio, “Estava lendo...”, “Ah, você já está na faculdade?”, “Não. Devia, mas não estou. Levei bomba no primeiro ano, quando mudei pra cá, quero dizer, pro Santa Tereza. Estudo pro vestibular, sim. Mas agora é só leitura mesmo.”, “Sei. E qual faculdade te interessa?”, “Ah, quero fazer psicologia, e na Federal.” “E o medo do vestibular?”, “É difícil, não é? E imagino o estresse da carreira acadêmica...”, “Sim?”, “Pois a minha amiga Raíssa estuda Administração e sempre lendo uma pilha de livros...”, “pois então! Estude!”, “Preciso me animar.”, “E isso?”, “É uma antologia do Baudelaire.”, “Ah, interessante”, folheia e lê um trecho de um soneto, “Que dirás, esta noite, ó alma solitária, que dirás, coração, peito outrora insensível?”, e eu toda atenta ao deslizar dos gatos, o que dizer?, e o Henrique percebe, não mostra timidez, desde que entrou ele domina e intimida, “Leu aqueles livros?”, sim, e dele o “Hamlet”, e o “Macbeth” e um do Lord Byron, “Manfred”, e um do Goethe, “Fausto”, onde a Margarida morria gritando “Henrique! Henrique!”, e eu comento isso, e ele se limita a sorrir, e também um diálogo de Platão, que ela levemente entendera, mas se ao menos fossem em versos, “Sim”, e não completa, engasgada?, e inclinada na poltrona, encolhida, a evitar seus olhos, mas atenda, e um odor pesado de lama úmida, e volto o olhar para a porta que está aberta, e lembro que chovera à tardinha.
.
Uma questão de sentimento”, “a matter of feeling”, diz o Doktor Duran Duran, e naquela noite eu ouvia Cocteau Twins, e aquela voz divinal da Liz Fraser, a faixa “Lorelei”, e o Henrique folheava ora os meus livros, ou os dele mesmo, emprestados a mim, ou as revistas do Oto, todas sobre Rock, Hard Rock, Heavy Metal, Doom, esses estilos angustiosos, essa futilidade do Oto de se preocupar com tantas bandas, pois quer ser músico famoso também, e a querer saber quem são os músicos da banda tal, e ficar marcando endereços de sites na internet, e endereços de outros fanáticos, JACK, O SOMBRIO, existencialismo dark, ouço My Dying Bride e Melacholic Metal, segue o endereço, ou SIDNEY VAN DRAKUL, vampirismo, ocultismo, decadência espiritual, seres da noite, fã de Moonspell, ou ainda, SUELI DOCE AGONA, letras mórbidas, filmes de terror, documentários sobre a morte, movimento gótico, fã de Dead Can Dance, Anathema, Lacrimosa; e ele folheia as revistas, aqueles caras de preto, com jaquetas e coturnos, e pose de brutais, com cabeleiras enormes, e o Henrique no maior tédio, em gestos mínimos, eu pergunto então, para quebrar o silêncio, “Então vai esperar?', “O mesmo você, não?”, “É, eu também”, ele sabe, mas é discreto, “Ele virá, não é?”, “Espero”, e eu deixo escapar um suspiro, “E se ela vier também?”, eis, aí, Carol, amor e ódio, “Pode ser. Mas ele disse que terminaria tudo”, não sei por que confesso isso assim, e o Henrique diz, abandonando as revistas, “Se ele disse é porque não pensa em fazer. Oto, quando quer, vai e faz. E se quisesse...”, ele numa pausa, “Já o teria feito, não é?”, e eu completo, “Ele só fala e fala, e nada!”, e o Henrique se aproxima, “Não é assunto meu, mas uma coisa eu digo: Oto não mentiu. Eu sei, pois ele não promete fidelidade a garota alguma. Você sempre soube”, e ali estava o tapa na cara, também quem mandou deixar o fantasma entrar, “Tá, eu sempre soube disso. E daí?”, “Ele nunca te prometeu nada. E assim, ao menos, não mentiu. Ele é cruel, não um cínico”, e um gato saltou no colo do Henrique, em arrepios, a lamber o focinho, “Les chats puissants et doux, orgueil de la maison” e eu entendo o sussurro sobre gatos meigos, em versos de Baudelaire, e deixo passar, e observo os gatos, agora reunidos, a aguardarem, em aparente fila, uma quota de carícias, e o Henrique adora os gatos, o andar felino sob o trono da majestade egípcia, “em amor você acredita?”, eu ouso perguntar, e ele olha-me atento, “Depende do que considera amor. Viver e se unir ao outro, sob a perspectiva da Eternidade, é Amor?”, “Ah, que seja 'eterno enquanto dure'”, eu até esboço um sorriso, e continuo, “Viver com alguém cinquenta anos, bodas de ouro, é isso Amor? Não será hábito, resignação?”, “Vejamos então! Pra você, Amor é paixão, chama. À primeira vista, hein?”, “Não, não é isso, Amor sem contato, sem conhecer? De cara é mais uma curiosidade, um fascínio, enchantment. Amor envolve uma convivência. Mas por toda a eternidade? É o cárcere das almas!”, e um gato cinzento derruba a cesta de maçãs e persegue as frutas que rolam, “Levadinhos! Filhos-da-puta!”, às vezes irritam, esses esfregares, esses olhares brilhantes, de leiais nada, profundezas do capricho!
.
E enquanto o som viaja pelo quarto, “Light a candle...”, lembro o vulto do Henrique, diante da porta aberta, a encarar a noite úmida, “Acha que somos capazes de amar?”, eu pergunto, sob a sombra dele, que responde, sem se virar, “Se soubéssemos o que é amar. Você se confunde, notou? É encanto? Ou é convivência e apego? Tudo isso? Um desejo desviado da pronta satisfação? Amar o distante? Tudo delírio? Transar é amor? Amor é transar? Daí ser o tema universal, a pergunta milenar: o que é o inferno de amar? Não sei, mas deixo os indagares nos versos.”, eu deixo o silêncio, e ele se volta, estamos lado a lado na porta, lá encima estrelas e seus brilhos pálidos, “Mas, sabe?, o seu problema não é o amor. É o ressentimento.”, e me pega de surpresa, novamente, daí o meu silêncio inquebrado, “O ressentimento apodrece por dentro aquele que o nutre. Se sentíssemos ódio e, assim, explodíssemos o objeto de nossa ira! O caso é que tal não ocorre, e o outro continua a viver, a rir às nossas costas, e nós a envenenarmos a nós mesmos!”, “Explodir o outro? Não ia sobrar ninguém!” e ele estranha a minha explosão, e pensei na guerra, nos soldados que descarregam suas frustrações e medos sobre as pessoas indefesas, sobre uma mulher e uma criança, estas coisas horríveis de guerra, aquele horror na Iugoslávia, na África, ou as rebeliões nas cadeias, os massacres, mas não comentei, nada mencionei, tudo num flash!, e eu queria perguntar sobre quem havia magoado o Henrique, que mulher ousara tal infâmia, e hoje eu sei que não foi uma mulher, foi um homem, e acabei não perguntando, e deixo-me a olhar as estrelas, e o fascínio pelo brilho das estrelas, sempre ali no céu noturno, quando vemos, no déu diurno, quando fogem ao olhar, no esplendor do dia, as estrelas num símbolo de permanência, as “estrelas fixas” dos antigos sábios e estudiosos, nas torres, nos telescópios dos observatórios de suas majestades, anotando, noite adentro, as posições dos astros, e comento tudo isso com o Henrique,o mesmo que desabafei ao Stevam, lá encima do telhado, uns meses antes, e o Henrique, não exatamente para me magoar, mas em nome da Verdade, com a qual ele tem um pacto, “Elas não estão mais ali.”, e sei que me limito a olhar com uma decepção nauseante, “Não estão lá?! Como? Eu vejo...”, “Sim, você vê. Só a luz que elas irradiam. Só a luz ainda vemos.”, “Só a luz?”, “Lembre-se que estrelas são sóis, até maiores que o nosso mais próximo, mas estão à distâncias longínquas, e a luz move-se rápida, rapidíssima, mas não é instantânea. Estes sóis, os globos de fogo, estão à anos-luz daqui, assim a luz chega com anos de atraso. O que você vê é uma foto do passado. Talvez nem mais existam!”, e não consigo esconder minha frustração, esse cara conseguiu desencantar o universo!, então não há Permanência!, pois tudo se transforma, tudo morre, até as estrelas!, e começa a recitar Rainer Maria Rilke, que eu sei que o Stevam adora, “A estrela que sigo a brilhar, / eu creio, neste instante / há milênios é morta.
.
Então folheio, arrasada, o “Espumas Flutuantes” do Castro Alves, “Sentir que a vida vai fugindo aos poucos / Como a luz, que desmaia no Ocidente...”, e o Henrique passeia pela sala, dedica carícias ao cortinado, e sabia que se a decoração andava em ordem, ali, era devido aos cuidados da dona Telma, a viúva, a abandonada, a mãe do Oto, com seus dedos senis e zelosos, a patrulhar o acumular da poeira, as nódoas nas cortinas, os arranhões nas almofadas, “Sônia, Sônia. Nome de heroína de romance.”, “De romance?”, “É. De um romance russo. Sim: Sônia. Um rapaz mata uma velha, e a irmã desta, e sofre uma crise de consciência, uma paranóia... Salva o pai de uma moça, uma família miserável, o homem vive bêbado, e a moça se prostitui. Aí o rapaz passa a visitar a moça, nada de malícia, sim? É um assassino e uma jovem prostituta, unidos na indignidade, diante de uma sílaba. No fim, ele confessa o crime e vai para a Sibéria, preso.”, “Eles ficam juntos? Digo, o assassino e a prostituta?”, “Sim, ela o acompanha, enquanto ele busca penitência.”, “Nossa, você já leu muito! Também, anda tão só! Lembro de um livro, um romance que li no colégio, no primeiro ano, sobre uma garota, que procura alguém pra brincar, vai para o jardim, onde um grupo de anões de pedra estão numa ciranda, e, por mais que ela deseje e tente, não abrem a ciranda para que ela entre. Poxa, mas é estar muito só!”
.
Depois lembrei que era o “Ciranda de Pedra”, da Lygia Telles, quando vi na Biblioteca, hoje à noite!, mas o Henrique já dizia outra coisa, ali a pegar um livro ou outro, “Heathcliff. Ele é mais triste, do que mau.”, “Hã? Quem?”, “Heathcliff. Digo que ele é um cara triste, oprimido. Não era para ele ser mau... Sofreu muito.”, “Ah, deste romance da Emily Brontë? Não era muto cortês, o cara...”, “Mas foi abandonado pelos pais, nas ruas de uma cidade grande, um bom-coração o resgata, e o filho do fazendeiro o espanca, é privado da companhia de quem mais ama. Se a história dele fosse outra, não seria mau. Foram as circunstâncias. Algo de Ortega y Gasset, um pensador espanhol, e penso naquele menino, também abandonado, um órfão, em “Os Miseráveis”, que recolhia as balas dos revoltados, ele defendia as crianças menores, queria sempre ser útil...”, e às vezes parece que o Henrique fala mais para si mesmo, até esquece da gente, “Já leu este conto da Clarice Lispector? 'Tempestade de almas'? Perceba este trecho, 'Nada mais tenho a ver com a validez das coisas. Estou liberta ou perdida. Vou-lhe contar um segredo: a vida é mortal. Nós mantemos esse segredo em mutismo cada um diante de si mesmo porque convém, senão seria tornar cada instante mortal.”, e tudo nasce disso, sabe, o auto-engano, o afastar a mortalidade, evitar pensar no fim, enquanto para outros é uma obsessão, e um exemplo, o clássico, claro, é Hamlet.”, “Que é muito complicado.”, “Nem tanto. Mas o problema é a distância: de idioma e de tempo. E começamos a ler com certa impressão de dificuldade e acabamos não entendendo. Há muito medo, mas gerado pelo academicismo. Shakespeare é para os espíritos livres, e para o povo! O caso é que ele foi usurpado pelos acadêmicos, e virou assunto de 'scholar', 'lecteur'! Como se só se entendesse o Bardo quem for devidamente 'iniciado' pelos intelectuais, devidamente 'formados', digo 'formatados'.”
.
E o Henrique deixa sua amargura vazar, não que queira, mas não pode evitar, enquanto eu folheio “Espumas Flutuantes”: “Mas ai! Que treva interna – a dúvida constante – Deixaste assoberbar-me em funda escuridão!...”, e não posso sufocar um lamento, “Sempre cercados por dúvidas sempre.”, e não devia me expor assim, mas preciso saber!, diante de toda essa fleuma que ele transpira!, “Nada sabemos daqui, e ainda indagamos coisa de lá, do nevoento Além!”, “Nevoento Além, Misty the Beyond. Hum. Tétrico. Já esboço um preconceito na pergunta. Nevoento? Para alguns é claro como o dia, fulgurante sob o trono do Altíssimo! A menos que caía no Orco, no Umbral, no Aqueronte, no Astral Inferior...”, “E isso não te surpreende, não te assusta?”, e não posso evitar o assombro, e ele, todo pensativo, “Sim, muito. É um muito questionar. E não alcançar resposta alguma.”, “Nenhuma? Ninguém voltou, jamais? Nenhum relato?”, “Ora, isso há! Muitos. Mas, confiáveis? E depende da religião de quem relata, e de quem ouve o relato. Pois a resposta depende de como se faz a pergunta. Os mortos sabem ou não? Sabem mais do que nós, ou perambulam cegos? Nada sabem? Dante insinua que os mortos conhecem o futuro e ignoram o presente. Da pitonisa de Delfos, passando pelos sábios da Lemúria, pela bruxa de Endor, até as mesas dançantes do Kardec, os fenômenos não param. Mas em quem há sanidade suficiente para compreendê-los acima de perspectivas em nós entranhadas desde o berço e a água benta, desde a circuncisão e o incenso?”, “Acho, ah!, quando penso, quando me pergunto sobe tudo isso, acho que vou enlouquecer!”, “Realmente. A maioria das pessoas não pensam, e se, por ventura, pressentirem tal incômodo, se apegam às filosofias, ideologias, doutrinas, dogmas. Eu comecei a me interessar realmente por teologia – pois antes eu seguia a tradição da família, com um catolicismo severo – depois de ouvir uma discussão: entre o meu pai e o meu tio – o meu tio Valmir, antes seminarista, depois se dizia ateu, e depois espírita – e o meu tio com aquelas perguntas sobre sobrevivência da consciência e vidas passadas e vidas futuras e eu estava perturbado, e o meu tio também, pois era um anto alcoólatra – e acabou morrendo de complicações do fígado, a religião não foi cachaça o suficiente, veja – e ele, o meu tio, alternava períodos de ceticismo com outros de puro espiritualismo, quando conversava, ele dizia, com os espíritos sob as árvores, e quando o meu tio morreu, calmamente em seu leito, deixou a sua biblioteca para o meu pai, que vivia discutindo religião com o irmão, sem nunca chegarem a uma conclusão, um acordo mínimo, e assim meu pai recebeu o baú de livros, e não gostou, severo com o 'lixo' que o irmão lia, 'coisas demoníacas' sobre espíritos e reencarnação,e na noite seguinte, ele, o meu pai, fez uma fogueira no quintal, com os livros do tio Valmir, e observei a tristeza – misturada com o senso de dever cumprido – do meu pai, ao atirar cada livro na fogueira, e, no dia seguinte, fui contemplar as cinzas, os restos de palavras, e penso que meu pai vai fazer o mesmo com os meus livros.”
.
E com que tristeza o Henrique contou tudo! Ai, eu hoje 'tô horrível, só outra carreirinha mesmo, mas não vá cheirar numa noite o pó da semana toda, hein!, você não quer ir pro inferno, quer, Soninha?, mas nem o Duran Duran pra me animar, da próxima vez eu coloco um samba!, ah, não! “Ordinary World”!, e não esqueço aquela cara do Henrique, ah, isso arde o nariz!, não posso deixar sangrar, hein!, e aquela noite, na porta do bar, o do Santa Efigênia, o Henrique dizendo que o “gótico é um cristão que perdeu a fé, e manteve o sentimento de culpa, tendo perdido a esperança, e uma justificativa para o sofrer”, esqueceu de dizer que só sobrou a estética!, mas na casa do Oto, o Henrique continuava, após lembrar do tio, e da fogueira com os livros, aqueles espíritas, logosóficos, sei lá!, e ele dizia “A religião mata a religiosidade, a doutrina inibe o questionar. Você tem as respostas ants de esboçar as perguntas.”, e eu disse “Ora, é consolo antes de tudo. Evita o sofrer. Eu queria crer em algo. Mas é tão complicado, tantas voltas no caminho, e o destino se distancia tão logo nós chegamos”, “Tântalo.”, “Quem?”, “Tãntalo. E sua maldição. Ter fome e sede, e ter diante de si fartas macieiras e água pura de uma fonte, e não poder alcançar. Nunca.”, “Pô, cada suplício que esses antigos inventaram! Cruéis!”, “cruéis, realmente.”, o Henrique todo solene, “Um tem o fígado devorado por um abutre. Outro empurra uma rocha ladeira acima, para quando chegar lá, a rocha cair novamente. Um tal voa até às alturas do céu e a cera das asas derrete, e ele cai no mar. Outro enlouquece de remorosos e fura os próprios olhos. Outra enlouquece de ciúmes e mata os próprios filhos. Para lembrar alguns...”, “Mais violentos que os videogames do meu irmão!”, “E eu ainda não te emprestei a “Commedia” de Dante, “Nenhuma dor maior do que se recordar do tempo feliz na miséria”, e eu que lia Dante em minhas caminhadas no campo, para resguardar a minha sanidade, isto é, para evitar o maior distanciar entre o idealizado e o que sou obrigado a viver, e o tio Hélvio, marido da tia Antonieta, irmã do meu pai – veja que família! - tem um sítio lá em Betim, e eu andava até as colinas, e uma em especial me agradava, e eu a chamava de “A Colina de No More Tears”, e me deitava sob uma árvore enorme, de sombra imensa, a “Árvore do Mundo”, e ouvia “Serenades” do Anathema, e batizei a árvore de “Serenades”, mas também ouvia Joy Division, ao entardecer, e chamei o lugar de “campina de Ian”, e assim eu batizava o meu mundo, o novo mundo, onde descansei por quase um ano, uns dez meses, antes de ficar louco de vez, nas salas e corredores da faculdade, e lia toda a obra do italiano, que volta da Morada dos Mortos”, e eu ouvi tudo, como um sonho, e disse “Não me empreste! Deve ser horrível!”, “É um desfile de horrores, mas com uma poesia magistral!”, “E pessoas que viraram árvores!”, “Loucura, não?”, e o Henrique parece ironizar o meu horror, “Onde leu isso?”, “O Stevam me disse. Tem um RPG com esse tema...”, “Jogam com o tema do poema?”, “Sim. Jogam com tudo! Uns loucos. Quanto horror! Por isso vivemos, insistimos em viver: não sabemos se do outro lado é pior!”, “Vivemos por medo da morte.”, “Da morte eterna?”, “É. Deus esquecerá de ti.”, “Deus: a Memória Absoluta?”, “É.”
.
E cai o silêncio, pesou mesmo. E eu ofereço água, ou bebidas, mas o Henrique se limita a fechar os olhos e recusar, e continua, em tom de monólogo, “A vida não tem sentido. Um acaso: e existimos. Só os fortes aceitam tal afirmação, e seguem em frente, e reafirmam o acaso que são! Aceitar o estar-vivo! Mas os fracos não aceitam o acaso, e precisam de um “Sentido” para assumirem suas vidas, seja religião, fé, dogma, ideologia, doutrina, psicoterapia, missão divina, pois sem tais justificativas, se sentem num “vácuo”, eles se matam, por falta de sentido. E às vezes não sei o que é pior: o desamparo diante da gratuidade, do acaso, onde seguimos à deriva, em livre desordem, um sem-sentido, OU a suspeita de um cosmos ordenado, criado, com uma intenção, havendo uma luta entre forças antagônicas, luz e trevas, bem e mal, onde há uma 'narrativa'. O que será mais indigesto? O Caos ou a Ordem? Para muitos o mundo é mau, então uns se afastam, vão para os conventos, monastérios; e outros querem interferir, pregar a Boa-Nova da Redenção, ou da revolução social, e outros querem aumentar o “mal” do mundo, a cultuarem o lado sombrio de si mesmo, e ainda outros se abstém de atuar, de serem cúmplices, e se matam, ou vivem de luto, ou em melancolia. Sim, e lembro do tio Valmir, quando dizia essas coisas, e mesmo quando se dizia 'ateu', não era materialista, e dizia 'Mesmo se somando todas as teorias materialistas, de Darwin, Marx, Nietzsche, Freud, Einstein, isso tudo, ainda não explica a somatória de forças, Há algo mais a interferir. Coisas sobrenaturais? Não sabemos. Até os espiritualistas, os religiosos, alegam que tudo é natural, isto é, obedece às leis físicas, e quando a religião recorre à ciência, então é porque ambas estão capegando', dizia o meu tio, e eu queria saber quem eram aqueles, cujos nomes ele citou, e encontrei os agnósticos e os gnósticos, digamos. Os primeiros pensam que o conhecimento é inacessível, as respostas são inalcançáveis, não se pode se afirmar nem negar. E os segundos, mais numerosos, acreditam no conhecimento, que há respostas para as velhas perguntas “Quem somos? De onde viemos? Para onde vamos?”, e o mundo material faz parte de um imenso mundo espiritual, e não importa que nome eles ostentem, julgam que só entre eles, com seus livros, seja Bíblia, Alcorão, Sutra, Evangelho, Doutrina, Teosofia, Revelação, está a Verdade e a Salvação.”, e o Henrique lembra de uma pausa, em carícias no gato preto de mancha branca na orelha esquerda, e lembra-se que eu existo, “E então eu li aqueles citados, e muitos outros. Eu entendo pouco Nietzsche, mas consigo senti-lo. E é diferente com Marx, o qual consigo entender, mas não sentir. Nietzsche fala de um libertação dionisíaca, e Marx, de uma mudança social. Mas ambos se mostraram incomprendidos – e sistemas sociais foram erguidos em nome deles, e sistemas cruéis, assassinos, e homens sem escrúpulos usaram os nomes dos pensadores, e mancharam, agora e para o futuro, toda a real compreensão do que disseram”, e o fôlego dele acabava, e eu li no livro de história que Mussolini citava Nietzsche, que o Oto lê muito, não sei se entende, sei lá, e que Lênin, e o tal Stálin, liam e diziam ser discípulos de Marx, e depois o Oto disse que o louco do Hitler lia e citava Nietzsche, e só aí, então, é que entendi o Henrique, pois naquela noite ele flava mais para si mesmo do que para mim, que não li nem um quinto dos livros que ele já leu, que o cara é rato de biblioteca, e eu sei só falta sair comendo papel, há há!, imagina que louco! o Henrique entrando numa biblioteca e agarrando os livros e rasgando as folhas e enfiando na boca e mastigando com os olhos assim esbugalhados, há há, muito louco! E falta o Henrique começar a cantarolar “God” do John Lennon, “I don't believe in Jesus. I don't believe in Hitler” ha ha! “I don't believe in Elvis!”, em Elvis, é demais! Eu não acredito em Elvis! rebolando na casa do Oto! em cima da mesa, em cima da pia da cozinha! há há! Elvis é demais!
.
Ah, eu preciso de água, água no rosto, beber água, joga água no corpo, molhar os peitos, molhar as pernas, deixar a racha molhadinha, ai que falta faz um homem em cima da gente! e o Oto não estava em casa, aquele bode, encima de mim! Eu toda aberta, e ele... que falta faz um homem! Lá dentro... mas essa água fria vai me sossegar, tem muito tempo que não cheiro, por isso então... pensando no Oto... porque o Stevam nem pra armar aquele troço, todo frouxo, pode até ser um gênio, igual ao Henrique, mas são uns frouxos! Não dão conta de uma mulher! Enquanto a toupeira do Oto enraba quantas quiser! Ah, água divina!
.
Mamãe diz que beber água da torneira faz mal! Que me importa! Pra essa velha tudo faz mal, tudo é horrível! “Não faça isso, não faça aquilo! Não e não!”, ela só sabe dizer não e não, a velha!, ai, mas ela não é velha, não diz isso, filha ingrata! não diz isso da sua mãe! Ai, que vontade de chorar! E eu me jogo na cama assim... e cadê a almofada, ninguém deve me ouvir chorar! Não vou dar espetáculo! “I just believe in me... the dream is over”, ah, só faltava o Henrique cantarolar essa, pois o Henrique não foi embora, ele está ali diante de mim!, oi, Henrique! Como você está pálido, o quê?, você acha que eu estou louca, que eu estou ficando louca, que eu estou morrendo?
.
Se a vida é desventura, por que para nós dura?”, o Leopardi, que o Henrique leu! Um louco lendo outro louco! Eu só ando no meio de loucos! E eu me ajoelho aos pés do Henrique, aos pés da Sabedoria, e eu ouso pedir um conselho, “como é que a gente faz para se dar bem na vida?”, e o Henrique todo pensativo, calou a boca! Agora cheio de pausas, assim “Tem muitas respostas. Depende de para quem você perguntar. Uns vão dizer que é preciso agradar a todos, e outros que você não deve tentar agradar gregos e troianos, e outros que você deve fazer o que quiser e desprezar os demais, e outros ainda vão ressaltar a ambição e o egoísmo como mola-mestre, um trampolim para a ascensão social. Ainda uns vão procurar te distrair desse esforço e outros vão te sufocar antes que comece”, e depois e ele falando e falando e tudo se embaralha, às vezes parece que vejo um gato preto caindo da manga da camisa dele!, não é – o gato saindo da barriga dele! Um alien-oitavo-passageiro saía miando aos pulos do senhor umbigo dele! E ele dizia “As pessoas não gostam de extremos. Vivem na média, na mediana, desprezam os devotos e os libertinos. Querem viver tanto na devoção quanto na libertinagem. Não admiram nem Francisco de Assim nem Marquês de Sade, não são iguais ao Goetz, da peça do Sartre, que queria fazer o Mal totalmente, fazer o Bem totalmente. Estão em cima do muro. Servem aos dois senhores, não servindo a nenhum deles.” e dizia “A Bondade é não pisar no outro? Bondade é algo passivo: tipo não fazer o Mal, não prejudicar o próximo? Digamos que isso foi tão repetido, e não contestado, que gerações, mil gerações, creram nisso, o Bem é lucro, o Mal é prejuízo. Então rogar aos deuses é desculpar-se, insistir que não fez o mal. É negação, assim a Bondade é negação da maldade. Sou bom pois não sou mau. Assim está no Livro dos Mortos, aquele livro de orações egípcias, “Não provoquei sofrimento entre os homens. Não usei de força ou violência para com os próximos. Não... Não...” e ele recita e recita e eu vejo um gato na barriga dele! Um gato sabichão igual aqueles diante da sabedoria do Henrique, “Henrique, eu te contemplo!”, Henrique eu não te reconheço, e gatos brotam do seu corpo, do seu corpo de corvo, do seu corpo de abutre, “Henrique, estou horrorizada!”
.
E o Henrique não percebia os gatos brotando de seus braços e de sua barriga, pois continua falando “No mundo em que vivemos, encontramos os que se adaptam e os que se excluem, uns são a favor, outros são do contra, uns encima, outros embaixo, uns excluídos horizontalmente, conscientes ou não, voluntariamente ou não, muitos excluídos verticalmente, curvados sob o peso da Máquina, ah, claro! Uns poucos, bem acima, que julgam mover e puxar os cordões, no comando das rédeas da Aberração” e olhava a porta, e o Oto não chegava, e não chegou! “Henrique! Henrique!” eu grito e grito, “Henrique! Henrique!” mas eu dizia “Henrique, você pode me ajudar. É tão conhecido. Tem amigos.” e eu preciso de um emprego, um homem decente, um homem sério, não esses loucos que me rodeiam! E o pai do Henrique é advogado, renomado advogado, e a família é tradicional: os Avelar, “Henrique, você pode me ajudar.”, “Não, Sônia. Não é comigo. Sou um marginal nesse mundo.”, “Você, um marginal?! E eu, então? O que eu sou então? Eu sou alguém? Diga!” e gritos inúteis, “Henrique, Henrique!” ele vai embora, cheio de tédio, farto de esperar o grogue do Oto, que chegou de madrugada e quis cair pra cima de mim e eu joguei ele no chão, onde ele acabou dormindo, é que eu não queria, hoje eu quero! Mas aquela noite, não! Cansei de ser humilhada! E quando eu vou pedir ajuda as pessoas se afastam, igual ao Sr. Thales Henrique Avelar, filho de advogado, fugindo para dentro da noite, o vulgo TH, o sempre insatisfeito, “Somos seres de insatisfação”, o sempre morto de tédio, “Agarrei uma gótica e morri de tédio”, quando eu vou pedir ajuda, ele se afasta, mergulha na escuridão, não espera, mesmo que eu grite “Henrique, Henrique!” e nenhum coro angélico, nem mesmo um único anjo! me responde!
.
Notorius! Notorius!”, Uau! ei: não posso gritar! mas fodas! mas não grite, por favor! enfie esta almofada na boca! almofada? mas isso mais parece um polvo! uma barata gigantesca! Cruz-e-credo! Olhe a sua car no espelho: e nem ouse pular na cama e se você aumentar o som a S.W.A.T. vai invadir o quarto e te encher de porrada! E vão pisar na barata gigantesca! Ai, ela anda! ou é eu que estou chutando? “Notorius! Notorius!”, olhe-se no espelho:o seu nariz! Sangue! o seu nariz sangra, Soninha! E você vai morrer! Ora, deixe disso, nada de pânico! quer acordar a casa toda? quer levar tapa na cara? Olha a sua cara no espelho? cuidado para não pisar na barata, isto é, na almofada! não bagunça a roupa de cama, ai, preciso parar de dar ordens a mim mesma! Ai, acho que molhei a calcinha, deixa eu sentar... quem é aquela ali no espelho? O corpo tão jovem, a alma tão complicada? O corpo envelhece mas a alma se renova: a cada nova edição revista e ampliada, e o mundo ainda não acabou, velho bruxo, todo mundo dizia, o mundo acaba em agosto! E já estamos em setembro: primavera e o mundo ainda não acabou – esta pôrra de mundo não acaba nunca! e eu é que vou morrer? Ah, eu vou gritar! foi o pó: nunca cheirei tanto! A alma, o ser-consciente, não nasce pronta, mas vai se evoluindo, imagine se alma começasse pronta! e ela se desgastando e ficando velha, igual ao corpo! Que horror! “Tu és pó e ao pó voltarás!” e vou virar cinzas! será que vão mesmo me cremar? para quem mamãe vai doar as minhas roupas? e os meus livros? o que vai acontecer comigo? eu vou gritar!
.
Oh, Henrique, por que sofremos tanto? você que é tão sábio devia saber! você que já leu tantos livros, bibliotecas e bibliotecas, e não sabem responder uma questão simples, mas alegam que existem muitas respostas, e “cada cabeça, uma sentença”, grande novidade! isso minha avó já dizia, e não precisa ficar um Henrique todo abutre deixando gatos em brotos na sua perna direita para me dizer isso, e eu dispenso! não adianta nada esses livros todos! Ai, acho que vou puxar a coberta, tá frio, de repente, e as pernas moles – deve ser o sono, mas e se for a morte? e eu conto pra minhã mãe sobre o pó na gaveta? ela me arranca a pele, igual aquele gato arranca a pele do Henrique e o Henrique é um esqueleto! Ha ha! um esqueleto! e o gato arranca a pele da barata gigante, gigantesca, ciclópica, ai, que sono! Mas que nada, não é sono – é como se fosse pancada na cabeça, e vou seguir com as folhas da praça, que caem e caem, e ninguém dá a mínima, não percebe! Um corpo desses, novinho, e vai mudando, enrugando, é horrível, é horrível ver os velhos, com suas doenças, peles medonhas, encurvados, se arrastando, e então é morrer jovem, die young! pra não aceitar, pra não ver a beleza murchar! antes ver a minha donzela morta, igual no poema do Henrique, “Junto a ela fenecem esmaecidos botões Lágrimas orvalhando as pétalas murchas Límpida beleza jovem a se perder Envolta no manto de sombrio sono”, ai, lembrei, lembrei! e eu tinha esquecido! mas por que agora? por que sou bonita, eu me acho bonita, os caras me olham com aquela cara de sacanagem, e sou bonita, talvez nunca seja tão bonita, talvez nunca mais tão bonita, talvez agora só me resta envelhecer – após o ápice, vem a queda, não? Cair, cair, isso, não consigo me erguer! Preciso de água – vou gritar! Mas quem vai me ajudar? E preciso de outro beijo, “another kiss”, antes de cair na inconsciência, esse cover do Doors, eu sei, um barco de cristal, tão frágil! vai zarpar do meu espelho, que é o meu ESPELHO, e quem é aquela toda pálida flutuando no espelho? sou eu mesma? Viagem! não sou eu, sou uma folha, e vou caindo caindo caindo sobre uns caras sombrios, todos de roupas pretas, e sou folhas, todas as folhas, e todas as flores, não importa se mortas se murchas se sem forma, caindo num bosque de galhos torcidos, e a lua cheia invade os meus sonhos – ou serão pesadelos?, e em cenários de outonos de cinema com trilha sonora de violinos gementes, e folhas caindo, e eu vou caindo, “and filled with pain”, isso!, dias tão brilhantes e cheios de dor! a gente aí jovem e cheia de dor, e devemos esperar mais dor e mais reumatismos? mas morrer jovem é apagar-se cedo, e “os bons morrem jovens”, mas não morro jovem, estou num barco de cristal, não! Sou uma chuva de pétalas roxas a cair sobre uns caras numa banda, e todos com a cara do Ian Curtis! Há há há ! todos iguaizinhos ao Ian Curtis com crise epiléptica, todo vestido de luto e no meio de um bosque de folhas secas, e vôos de borboletas, ou estou no barco de cristal – e quem vai comigo? Ó Ian Curtis, você está me acenando? nós vamos nos encontrar de novo, “We'll meet again”? e o morrer é findar uma navegação, hein? Poético isso! Eu preciso de água, “Oh diga-me onde jaz sua liberdade”, onde eu vou? para onde? Preciso de água! vou ficar esperando a morte chegar? “sentado esperando a morte chegar” e o Raulzito também está no barco de cristal? Não sou as folhas? que bóiam no mar do barquinho de cristal brilhante, onde me acenam! acenam pra mim! até Raíssa com seu vestido escarlate, o meu robe de Puta Sagrada, de Besta Escarlate, de Grande Meretriz, até a Fla, quem diria! com seus vestidos de decotes de seios à mostra e biquinhos rosados e arrepiados e só falta a boca cheia de dentes do Erik para morder e deixar um riozinho quente de cor rubra que goteja num barco de cristal sem rumo nem destino, e quando eu chegar lá eu envio lembranças e todos acenam quando eu estou tão perto e podem jogar um bote pra mim mas eu não passo de uma folha ou uma flor seca boiando pra lá e pra cá e quem vai me recolher para o barco de cristal onde o Oto suspende a âncora com toda aquela força onde o Stevam comanda o leme com toda aquela incerteza onde o Germano procura um jovem pescoço para sangrar onde o Henrique consulta mapas e mapas e acaba por queimar todos e chamas e chamas se alastram no cristal em mil reflexos e ainda bem que o barco é de cristal e não tem mais mapas de navegação e nada mais de mapas e sinais e rotas e caminhos e direções e cruzinhas de tesouros e tracinhos de recifes e o cristal em reflexos e reflexos e vai indo indo todos acenam Henrique! Henrique! não há mapa! é só amadurecer para logo apodrecer numa lívida caveira no espelho no cristal amadurecer e apodrecer na palidez no cristal e indo indo sem mapas sem sinais sem rumos eles sempre morrem indo indo indo e então as trevas

(fim do Capítulo VI)

romance
Insônia das Almas
Parte 2 de DESENCONTROS GRAFADOS
.
.
escrito em jul e ago 2006
revisado em abr 2007
datilografado em jul 2007
digitado em dez 2007 e jan 2008
.
.
by Leonardo de Magalhaens
.
.

Nenhum comentário:

Postar um comentário